Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
1902-10-31 Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil
1987-08-17 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Lira Pedestre
Vamos — eis um projeto de domingo —
legalizar nosso prezado bingo?
Boa ideia: cartões fiscalizados,
prendas, prêmios, carinhos e cuidados,
o azar livre de fraude — e de capricho.
(Outlaw, coitado, só jogo do bicho,
que, por ser instituto nacional,
bem merecia trânsito legal.)
A rima em al lembra outra rima em ília:
Amigos, que faremos de Brasília?
Ela é e não é: no shakespeariano
dilema, junta engano e desengano,
e tendo tão bonita arquitetura
vai ser tapera de ouro na planura?
Já de volta o Governo se pretende,
já cessa a dobradinha, já se estende
o véu de sombra sobre o róseo sonho
da terra do futuro… Os olhos ponho
em ti, Brasília, em tuas avenidas,
trevos, jardins e quadras doloridas.
Nunca te vi de perto; agora vejo
e sinto e apalpo e todo o meu desejo
é que sejas em tudo uma cidade
completa, firme, aberta à humanidade,
e tão naturalmente capital
como o Rio é uma coisa sem igual.
Cresce e viceja, pois, e ministérios
e seus papéis, tapetes e mistérios,
IAPês, siglas, telex, senadores,
ministros, embaixadas, assessores
e tudo mais que é símbolo de mando,
comando e glória, fique te adornando,
pois ao Rio nos basta a praia clara,
o gosto de viver, a joia rara
de um modo especialíssimo de ser,
de amar o amor, amar até morrer…
Eia, Brasília, luta por teu título!
E tenho despachado este capítulo.
Mas resta o subsídio do petróleo,
que, se não cortam, dizem que ele engole o
Brasil e toda a nossa economia.
E, se cortam, é fogo… Virg’Maria!
O dr. Rui de Almeida telefona
e, como se pedisse uma azeitona,
aos colegas sugere: Um trilhãozinho
ao pobre do Tesouro, coitadinho.
A turma não escuta: Alô? Alô?
Ah, que aparelho! Pronto: desligou.
10/05/1964
legalizar nosso prezado bingo?
Boa ideia: cartões fiscalizados,
prendas, prêmios, carinhos e cuidados,
o azar livre de fraude — e de capricho.
(Outlaw, coitado, só jogo do bicho,
que, por ser instituto nacional,
bem merecia trânsito legal.)
A rima em al lembra outra rima em ília:
Amigos, que faremos de Brasília?
Ela é e não é: no shakespeariano
dilema, junta engano e desengano,
e tendo tão bonita arquitetura
vai ser tapera de ouro na planura?
Já de volta o Governo se pretende,
já cessa a dobradinha, já se estende
o véu de sombra sobre o róseo sonho
da terra do futuro… Os olhos ponho
em ti, Brasília, em tuas avenidas,
trevos, jardins e quadras doloridas.
Nunca te vi de perto; agora vejo
e sinto e apalpo e todo o meu desejo
é que sejas em tudo uma cidade
completa, firme, aberta à humanidade,
e tão naturalmente capital
como o Rio é uma coisa sem igual.
Cresce e viceja, pois, e ministérios
e seus papéis, tapetes e mistérios,
IAPês, siglas, telex, senadores,
ministros, embaixadas, assessores
e tudo mais que é símbolo de mando,
comando e glória, fique te adornando,
pois ao Rio nos basta a praia clara,
o gosto de viver, a joia rara
de um modo especialíssimo de ser,
de amar o amor, amar até morrer…
Eia, Brasília, luta por teu título!
E tenho despachado este capítulo.
Mas resta o subsídio do petróleo,
que, se não cortam, dizem que ele engole o
Brasil e toda a nossa economia.
E, se cortam, é fogo… Virg’Maria!
O dr. Rui de Almeida telefona
e, como se pedisse uma azeitona,
aos colegas sugere: Um trilhãozinho
ao pobre do Tesouro, coitadinho.
A turma não escuta: Alô? Alô?
Ah, que aparelho! Pronto: desligou.
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