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Canto geral

1950

Pablo Neruda

Pablo Neruda

Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.

1904-07-12 Parral, Chile
1973-09-23 Santiago, Chile
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Canto X - O Fugitivo

I
O fugitivo (1948)

Pela alta noite, pela vida inteira,
de lágrima a papel, de roupa em roupa,
andei nestes dias angustiados.

Fui o fugitivo da polícia:
na hora de cristal, na mata
de estrelas solitárias,
cruzei cidades, bosques,
chácaras, portos,
da porta de um ser humano a outro,
da mão de um ser a outro ser, a outro ser.

Grave é a noite, mas o homem
dispôs seus signos fraternais,
e às cegas por caminhos e por sombras
cheguei à porta iluminada, ao pequeno
ponto de estrela que era o meu,
ao fragmento de pão que no bosque os lobos
não haviam devorado.


Uma vez a uma casa, na campina,
cheguei à noite, a ninguém
antes daquela noite havia visto,
nem adivinhado aquelas existências.

O que faziam, as suas horas
eram novas a meu conhecimento.

Entrei, eram cinco da família:
todos como na noite dum incêndio
se haviam levantado.


Apertei uma
e outra mão, vi um rosto e outro rosto,
que nada me diziam: eram portas
que antes não vi na rua,
olhos que não conheciam meu rosto,
e na alta noite, apenas
recebido, me entreguei ao cansaço,
para adormecer a angústia de minha pátria.


Enquanto vinha o sonho,
o eco inumerável da terra
com seus roucos ladridos e suas fibras
de solidão, continuava a noite,
e eu pensava: “Onde estou? Quem
são? Por que me abrigam hoje?
Por que eles, que até hoje não me viram,
abrem suas portas e defendem meu canto?”
E ninguém respondia
a não ser um rumor de noite desfolhada,
um tecido de grilos se construindo:
a noite inteira mal
parecia tremer na folhagem.

Terra noturna, a minha janela
chegavas com os teus lábios,
para que eu dormisse docemente,
como a cair sobre milhares de folhas,
de estação em estação, de ninho em ninho,
de ramo em ramo, até ficar de súbito
adormecido como um morto em tuas raízes.




II
Era o outono das uvas.

Tremia o parreiral numeroso.

Os cachos brancos, velados,
escarchavam seus doces dedos,
e as negras uvas enchiam
seus pequenos ubres repletos
de um secreto rio redondo.

O dono da casa, artesão
de magro rosto, me lia
o pálido livro terrestre
dos dias crepusculares.

Sua bondade conhecia o fruto,
o ramo principal e o trabalho
da poda que deixa à árvore
sua despida forma de taça.

Com os cavalos conversava
como com imensas crianças: seguiam
atrás dele os cinco gatos
e os cachorros daquela casa,
alguns arqueados e lentos,
outros a correr loucamente
sob os frios pessegueiros.

Conhecia ele cada ramo,
cada cicatriz das árvores,
e sua antiga voz me ensinava
acariciando os cavalos.




III
Outra vez aí à noite recorri.

Ao cruzar a cidade a noite andina,
a noite derramada abriu a sua rosa
sobre minha roupa.

Era inverno no sul.

A neve havia
subido a seu alto pedestal, o frio
queimava com mil pontas congeladas.


O rio Mapocho era de neve negra.

E eu, entre rua e rua de silêncio
pela cidade manchada do tirano.

Ai! era eu como o próprio silêncio
olhando quanto amor e amor caía
através dos meus olhos em meu peito.

Porque essa rua e a outra e o umbral
da noite nevada, e a noturna
solidão dos seres, e meu povoado
enterrado, obscuro, em seu arrabalde de mortos,
tudo, a última janela
com seu pequeno ramo de luz falsa,
o apertado coral negro
de casa em casa, o vento
jamais gasto de minha terra,
tudo era meu, tudo
para mim no silêncio levantava
uma boca de amor cheia de beijos.




IV
Um jovem casal abriu uma porta
que antes tampouco conheci.

Era ela
dourada como o mês de junho,
e ele era um engenheiro de altos olhos.

Desde então com eles pão e vinho
compartilhei,
pouco a pouco
cheguei a sua intimidade desconhecida.

Me disseram: “Estávamos
separados,
nossa dissensão já era eterna:
hoje nos unimos para receber-te,
hoje te esperamos juntos”.

Lá, na pequena
casa reunidos,
fizemos uma silenciosa fortaleza.

Guardei o silêncio até no sonho.

Estava no pleno
centro da cidade, quase escutava
os passos do Traidor, junto aos muros
que me apartavam, ouvia
as vozes sujas dos carcereiros,
suas gargalhadas de ladrão, suas sílabas
de bêbados metidos entre balas
na cintura da minha pátria.

Quase roçavam por minha pele silenciosa
as eructações de Holgers e Pobletes,
seus passos, arrastando-se, tocavam
quase o meu coração e suas fogueiras:
eles mandando os meus para o tormento,
eu reservando a minha saúde de espada.

E outra vez, na noite, adeus, Irene,
adeus, Andrés, adeus, amigo novo,
adeus aos andaimes, à estrela,
adeus talvez à casa inconclusa
que diante de minha janela parecia
povoar-se de fantasmas lineares.

Adeus ao ponto ínfimo de monte
que recolhia em meus olhos cada tarde,
adeus à luz verde néon que abria
com seu relâmpago cada nova noite.




V
Outra vez, outra noite, fui mais longe.

Toda a cordilheira da costa,
a vasta margem do mar Pacífico,
e logo entre as ruas retorcidas,

rua e ruela, Valparaíso.

Entrei numa casa de marinheiros.

A mãe me esperava.

“Só soube ontem”, me disse; “meu filho
me chamou, e o nome de Neruda
me percorreu como um calafrio.

Falei com ele: que conforto,
meus filhos, podemos dar a ele?” “Ele pertence
a nós, os pobres”, me respondeu,
“ele não zomba nem despreza
a nossa pobre vida, ele a exalta
e defende.
” “Eu falei: está bem,
e esta é a sua casa a partir de hoje.

Ninguém me conhecia nessa casa.

Olhei a límpida toalha, a jarra d'água
pura como essas vidas que do fundo
da noite como asas
de cristal a mim chegavam.

Fui à janela: Valparaíso abria suas mil pálpebras
que tremiam, a aragem
do mar noturno entrou em minha boca,
as luzes dos morros, o tremor
da lua marítima na água,
a escuridão como uma monarquia
enfeitada de diamantes verdes,
todo o novo repouso que a vida
me entregava.

Olhei: a mesa estava posta,
o pão, o guardanapo, o vinho, a água,
e uma fragrância de terra e ternura
umedeceu os meus olhos de soldado.

Junto a essa janela de Valparaíso
passei dias e noites.

Os navegantes de minha nova casa
cada dia procuravam
um barco em que partir.

Eram
enganados uma vez e mais outra vez.


O Atomena
não podia levá-los, o Sultana
também não.
Me explicaram:
eles pagavam a gorjeta ou o suborno
a esse ou àquele chefe.
Outros
davam mais.

Tudo estava podre
como no palácio de Santiago.

Aqui se abriam os bolsos
do capitão, do secretário,
não eram tão grandes como os bolsos
do presidente, porém roíam
o esqueleto dos pobres.

Triste república chicoteada
como uma cadela por ladrões,
uivando sozinha nos caminhos,
espancada pela polícia.

Triste nação gonzalizada,
arrojada pelos trapaceiros
ao vômito do delator,
vendida nas esquinas rotas,
desmantelada num arremate de leilão.

Triste república na mão
do que vendeu sua própria filha
e sua própria pátria entregou
ferida, muda e manietada.

Voltavam os dois marinheiros
e partiam carregando nos ombros
sacos, bananas, comestíveis,
com saudade do sal das ondas,
do pão marinho, do alto céu.


No meu dia solitário o mar
se afastava: olhava então
a chama vital dos morros,
cada casa pendurando, o
pulsar de Valparaíso:
os altos morros a transbordar
de vidas, as portas pintadas
de turquesa, escarlate e rosa,
as escadas desdentadas,
os cachos de portas pobres,
as vivendas frouxas,
a névoa, a fumaça estendendo suas
redes de sal sobre as coisas,
as árvores desesperadas
agarrando-se às quebradas,
a roupa pendurada nos braços
das mansões desumanas,
o rouco silvo de repente
filho das embarcações,
o som da salmoura,
da névoa, a voz marinha,
feita de golpes e sussurros,
tudo isso envolvia meu corpo
como um novo traje terrestre,
e habitei a bruma de cima,
a alta aldeia dos pobres.




VI
Janela dos morros! Valparaíso, estanho frio,
partido em um e outro grito de pedras populares!
Olha comigo do meu esconderijo
o porto cinzento tachonado de barcas,
água lunar apenas movediça,
imóveis depósitos de ferro.

Em outra hora longínqua,
povoado esteve teu mar, Valparaíso,
pelos delgados navios do orgulho,
os Cinco Mastros com sussurro de trigo,
os disseminadores do salitre,
os que dos oceanos nupciais
a ti vieram, transbordando tuas adegas.

Altos veleiros do dia marinho,
comerciais cruzados, estandartes
inflados pela noite marinheira,
convosco o ébano e a pura
claridade do marfim, os aromas
do café e da noite em outra lua,
Valparaíso, a tua paz perigosa
vieram envolvendo-te em perfume.

Tremia o Potosí com os seus nitratos
avançando no mar, pescado e flecha,
turgência azul, baleia delicada,
para outros negros portos da terra.

Quanta noite do sul sobre as velas
enroladas, sobre os empinados
peitos da máscara do barco,
quando sobre a Dama do navio,
rosto daquelas proas balançadas,
toda a noite de Valparaíso,
a noite austral do mundo, baixava.




VII
Era o amanhecer do salitre nos pampas.

Palpitava o planeta do adubo
até encher o Chile como um navio
de nevadas adegas.

Hoje olho quanto ficou de todos
os que passaram sem deixar sinal
nas areias do Pacífico.

Olhai o que eu olho,
o hostil detrito
que deixou na garganta de minha pátria
como um colar de pus, a chuva de ouro.

Que te acompanhe, caminheiro,
este olhar imóvel que perfura,
atado ao céu de Valparaíso.


Vive o chileno
entre lixeira e vendaval, escuro
filho da dura Pátria.

Vidraças despedaçadas, tetos partidos,
paredes aniquiladas, cal leprosa,
porta enterrada, piso de barro,
sujeitando-se apenas ao vestígio
do solo.

Valparaíso, rosa imunda,
pestilencial sarcófago marinho!
Não me firas com tuas ruas de espinhos,
com tua coroa de azedas ruelas,
não me deixes olhar o menino ferido
por tua miséria de mortal pântano!
Me dói em ti meu povo,
toda a minha pátria americana,
tudo o que roeram de teus ossos
deixando-te cingida pela espuma
como miserável deusa despedaçada,
em cujo doce peito partido
urinam os cachorros famintos.




VIII
Amo, Valparaíso, tudo o que encerras,
tudo o que irradias, noiva do oceano,
até mais além de teu nimbo surdo.

Amo a luz violenta com que socorres
o marinheiro na noite do mar,
e aí és - rosa de laranjeiras -
luminosa e nua, fogo e névoa.

Que não venha ninguém com um martelo turvo
para golpear o que amo, para defender-te:
ninguém senão meu ser pelos teus segredos:
ninguém senão minha voz pelas tuas abertas
fileiras de rocio, pelas tuas escadarias
onde a maternidade salobre
do mar te beija, ninguém senão meus lábios
em tua coroa fria de sereia,
elevada na aragem das alturas,
oceânico amor, Valparaíso.

Rainha de todas as costas do mundo,
verdadeira central de ondas e navios,
és em mim como a lua ou como
a direção da brisa no arvoredo.

Amo as tuas ruelas criminosas,
a tua lua de punhal sobre os morros,
e entre as tuas praças a marinhagem
a revestir de azul a primavera.

Que se entenda, te peço, porto meu,
que tenho eu o direito
de escrever-te o bom e o perverso
e sou como lâmpadas amargas
quando iluminam garrafas quebradas.




IX
Eu percorri os afamados mares,
o estame nupcial de cada ilha,
sou o mais marinheiro do papel
e andei, andei, andei,
até a última espuma,
mas teu penetrante amor marinho
foi marcado em mim como nenhum outro.

És a montanhosa
cabeça capital
do grande oceano,
e na tua celeste garupa de centaura
teus arrabaldes reluzem a pintura
vermelha e azul dos brinquedinhos.

Caberias num frasco marinheiro
com tuas pequenas casas e o “Latorre”
como uma prancha cinzenta num lençol
se não fora a grande tormenta
do mais imenso mar,
o golpe verde
das rajadas glaciais, o martírio
de teus terrenos sacudidos, o horror
subterrâneo, a marulhada
de todo o mar contra a tua tocha,
te fizeram magnitude de pedra sombria,
ciclônica igreja da espuma.

Te declaro meu amor, Valparaíso,
e tornarei a viver a tua encruzilhada,
quando tu e eu formos livres
de novo, tu em teu trono
de mar e vento, eu em minhas úmidas
terras filosofais, veremos como surge
a liberdade entre o mar e a neve.

Valparaíso, Rainha só,
só na soledade do solitário
sul do oceano,
olhei cada penhasco
amarelo de tua altura,
toquei teu pulso torrencial, tuas mãos
de portuária me deram o abraço
que minha alma te pediu na hora noturna
e te relembro reinando no brilho
do fogo azul que teu reino respinga.

Não há outra como tu sobre a areia,
Albacora do sul, Rainha da água.




X
Assim, pois, de noite em noite,
aquela longa hora, a treva
mergulhada em todo o litoral chileno,
fugitivo passei de porta em porta.

Outras casas humildes, outras mãos
em cada ruga da Pátria estavam
esperando os meus passos.

Tu passaste
mil vezes por essa porta que nada te disse,
por essa parede sem pintura, por essas
janelas com flores murchas.

Para mim era o segredo:
estava para mim palpitando,
era nas zonas do carvão,
empapadas pelo martírio,
era nos portos da costa
junto ao antártico arquipélago,
era, escuta, talvez nessa
rua sonora, entre a música
do meio-dia das ruas,
ou junto ao parque essa janela
que ninguém distinguiu entre as outras
janelas, e que me esperava
com um prato de sopa clara
e o coração sobre a mesa.

Todas as portas eram minhas,
todos disseram: “É meu irmão,
queiram traze-lo a esta casa pobre”,
enquanto minha pátria se tingia
com tantos castigos
como um lagar de vinho amargo.

Veio o pequeno latoeiro,
a mãe daquelas raparigas,
o camponês desajeitado,
o homem que fazia sabões,
a doce romancista, o jovem
cravado como um inseto
ao escritório desolado,
vieram e em sua porta havia
um signo secreto, uma chave
defendida como uma torre
para que eu entrasse de imediato,
à noite, de tarde ou de dia,
e sem conhecer ninguém
dissesse: “Irmão, já sabes quem eu sou,
parece que me esperavas”.




XI
Que podes tu, maldito, contra o ar?
Que podes tu, maldito, contra tudo
o que floresce e surge c cala e olha,
c me espera e te julga?
Maldito, com as tuas traições
está o que compraste, o que deves
regar a cada instante com moedas.

Maldito, podes
expatriar, apresar e dar tormentos,
e apressadamente pagar prontamente,
antes de que o vendido se arrependa,
poderás dormir apenas
rodeado de compradas carabinas,
enquanto no regaço de minha pátria
vivo eu, o fugitivo da noite!

Como é triste tua pequena e passageira
vitória! Enquanto Aragon, Ehrenburg,
Éluard, os poetas
de Paris, os valentes
escritores
da Venezuela e outros c outros e outros
estão comigo,
tu, Maldito,
entre Escanilla e Cuevas,
Peluchoneaux e Poblete!
Eu por escadas que o meu povo assume,
em socavões que o meu povo esconde,
sobre a minha pátria e sua asa de pomba
durmo, sonho e derrubo as tuas fronteiras.




XII
A todos, a vós,
os silenciosos seres da noite
que tomaram a minha mão nas trevas, a vós,
lâmpadas
de luz imortal, linhas de estrela,
pão das vidas, irmãos secretos,
a todos, a vós,
digo: não há obrigado,
nada poderá encher as taças
da pureza,
nada pode
conter todo o sol nas bandeiras
da primavera invencível
como vossas caladas dignidades.

Somente
penso
que fui talvez digno de tanta
singelez, de flor tão pura,
por eu ser vós talvez, isso mesmo,
essa migalha de terra, farinha e canto,
essa massa natural que sabe
de onde sai e onde fica.

Não sou um sino de tão longe,
nem um cristal enterrado tão profundo
que não possas decifrar, sou apenas
povo, porta escondida, pão escuro,
e quando me recebes, recebes
a ti mesmo, a esse hóspede
tantas vezes batido
e tantas vezes
renascido.

A tudo, a todos,
a quantos não conheço, a quantos nunca
ouviram este nome, aos que vivem
ao largo de nossos grandes rios,
ao pé dos vulcões, à sombra
sulfúrica do cobre, a pescadores e labregos,
a índios azuis na margem
de lagos cintilantes como vidros,
ao sapateiro que a esta hora interroga
pregando o couro com antigas mãos,
a ti, ao que sem saber me esperou,
eu pertenço e reconheço e canto.




XIII
Areia americana, solene
plantação, cordilheira,
filhos, irmãos debulhados
por velhas tormentas,
juntemos todos o grão vivo
antes que torne à terra,
e que o novo milho que nasce
haja escutado as tuas palavras
e as repita e se repitam.

E se cantem de dia e de noite,
e se mordam e se devorem,
e se propaguem pela terra,
se façam, de súbito, silêncio,
se afundem debaixo das pedras,
encontrem as portas noturnas,
e outra vez voltem a nascer,
a repartir-se, a conduzir-se
como o pão, como a esperança,
como a brisa dos navios.

O milho leva o meu canto,
saído das raízes
de meu povo, para nascer,
para construir, para cantar,
e para ser outra vez semente
mais numerosa na tormenta.


Aqui estão minhas mãos perdidas.

São invisíveis, mas tu
as vês através da noite,
através do vento invisível.

Dá-me tuas mãos, eu as vejo
sobre as ásperas areias
de nossa noite americana,
e escolho a tua e a tua,
essa mão e aquela outra,
a que se levanta para lutar
e a que volta a ser semeada.


Não me sinto só na noite,
na escuridão da terra.

Sou povo, povo inumerável.

Tenho em minha voz a força pura
para atravessar o silêncio
e germinar nas trevas.

Morte, martírio, sombra, gelo,
cobrem de repente a semente.

E o povo parece enterrado.

Mas o milho volta à terra.

Atravessaram o silêncio
suas implacáveis mãos vermelhas.

Da marte renascemos.

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Canto II - Alturas de Machu Picchu

I
Do ar ao ar como uma rede
vazia, ia eu entre as ruas e a atmosfera chegando e despedindo,
no advento do outono a moeda estendida
das folhas, e entre a primavera e as espigas,
o que maior amor, como dentro duma luva
que cai, nos entrega qual uma longa lua.


(Dias de vivo fulgor na intempérie
dos corpos: aços convertidos
ao silêncio do ácido:
noites desfiadas até a última farinha:
estamos agredidos da pátria nupcial.
)

Alguém que me esperou entre os violinos
achou um mundo como uma torre enterrada
fundindo sua espiral mais abaixo de todas
nas folhas de cor de roxo enxofre:
mais abaixo, no ouro da geologia,
como espada envolta em meteoros,
mergulhei a mão turbulenta e doce
no mais genital do terrestre.


Meti o resto entre as vagas profundas,
desci como gota entre a paz sulfúrica,
e, como um cego, regressei ao jasmim
da usada primavera humana.




II
Se a flor à flor entrega o alto germe
e a rocha mantém sua flor disseminada
em seu castigado traje de diamante e areia,
o homem franze a pétala da luz que recolhe
nos determinados mananciais marinhos
e verruma o metal palpitante em suas mãos.

E logo, entre a roupa e o fumo, sobre a mesa enterrada,
como embaralhada quantidade, fica a alma:
quartzo e desvelo, lágrimas no oceano
como lagos de frio: mas ainda
mata-a e agoniza-a com papel e com ódio,
submerge-a no tapete cotidiano, dilacera-a
entre as vestimentas hostis do arame.


Não: pelos corredores, ar, mar ou caminhos,
quem guarda sem punhal (como as encarnadas
amapolas) seu sangue? A cólera extenuou
a triste mercadoria do vendedor de seres,
e, enquanto nas alturas da ameixeira, o orvalho
há mil anos deixa a sua carta transparente,
sobre o mesmo ramo que espera, ó coração, ó rosto triturado
entre as cavidades do outono.


Quantas vezes nas ruas de inverno duma cidade
ou num ônibus ou num navio ao crepúsculo, ou
na solidão mais espessa, a da noite de festa,
sob o ressoar de sombras e sinos, na própria gruta
do prazer humano, quis parar e procurar o eterno
veio insondável que antes toquei na pedra ou no
relâmpago que o beijo desprendia.


(O que no cereal como uma história amarela
de pequenos peitos grávidos vai repetindo um número
que sem cessar é ternura nas capas germinais,
e que, idêntica sempre, se debulha em marfim
e o que na água é pátria transparente, sino
desde a neve isolada às ondas sangrentas.
)

Só pude unir um cacho de rostos ou de máscaras
precipitadas, como anéis de ouro falso,
como roupas dispersas filhas dum outono enraivecido
que fizesse tremer a miserável árvore das raças assustadas.


Não tive lugar para descansar a mão
e que, corrente como água de manancial acorrentado,
ou firme como lasca de antracite ou cristal,
tivesse devolvido o calor ou o frio de minha mão estendida.

Que era o homem? Em que parte de sua conversação aberta
entre os armazéns e os assovios, em qual de seus movimentos metálicos
vivia o indestrutível, o imperecível, a vida?



III
O ser como o milho se debulha no inesgotável
celeiro dos feitos perdidos, dos acontecimentos
miseráveis, do um ao sete, ao oito,
e não uma morte, mas muitas mortes chegadas para cada um:
cada dia uma morte pequena, pó, verme, lâmpada
que se apaga no lodo do subúrbio uma pequena morte de asas grossas
entrava em cada homem como curta lança
e era o homem assediado pelo pão ou pela faca,
o ganadeiro: o filho dos portos, o capitão escuro do arado,
ou o roedor das ruas espessas:
todos desfaleceram esperando sua morte, sua curta morte diária:
e seu quebranto aziago de cada dia era
como uma taça negra que bebiam a tremer.




IV
A poderosa morte me convidou muitas vezes:
era como o sol invisível nas ondas,
e o que seu invisível sabor disseminava
era como metade de afundamentos e altura
ou vastas construções de vento e nevasca.


Eu ao férreo gume vim, à estreiteza
do ar, à mortalha de agricultura e pedra,
ao estelar vazio dos passos finais
e à vertiginosa estrada espiral:
porém, largo, mar, ó morte! de onda em onda não vens,
senão como um galope de claridade noturna
ou como os totais números da noite.


Nunca chegaste a vasculhar o bolso, não era
possível tua visita sem uma roupa vermelha:
sem auroral alfombra de cercado silêncio:
sem altos ou enterrados patrimônios de lágrimas.


Não pude amar em cada ser uma árvore
com seu pequeno outono às costas (a morte de mil folhas),
todas as falsas mortes e as ressurreições
sem terra, sem abismo:
quis nadar nas vidas mais largas,
nas mais desatadas desembocaduras,
e quando pouco a pouco foi o homem me negando
e foi fechando a passagem e a porta para que não tocassem
minhas mãos mananciais sua inexistência ferida,
então fui de rua em rua, de rio em rio,
de cidade em cidade, de cama em cama,
e cruzou o deserto minha máscara salobre,
e nas últimas casas humilhadas, sem lâmpada, sem fogo.

sem pão, sem pedra, sem silêncio, sozinho,
rolei morrendo de minha própria morte.




V
Não és tu, morte grave, ave de plumas férreas,
o que o pobre herdeiro das habitações
levava entre alimentos apressurados, sob a pele vazia:
era algo, uma pobre pétala de corda exterminada:
um átomo do peito que não veio ao combate
ou o áspero orvalho que não caiu no rosto.

Era o que não pôde renascer, um pedaço
da pequena morte sem paz nem território:
um osso, um sino que morriam nele.

Eu levantei as vendas do iodo, mergulhei.
as mãos
nas pobres dores que matavam a morte,
e só achei na ferida uma rajada fria
que entrava pelos vagos interstícios da alma.




VI
Então na escada de terra subi
entre o emaranhado atroz das selvas perdidas
até a ti, Machu Picchu.

Alta cidade de pedras escalares,
por fim morada do que o terrestre
não escondeu nas adormecidas vestimentas.

Em ti, como duas linhas paralelas,
o berço do relâmpago e do homem
embalavam-se num vento de espinhos.


Mãe de pedra, espuma de condores.


Alto arrecife da aurora humana.


Pá perdida na primeira areia.


Esta foi a morada, este é o lugar:
aqui os largos grãos do milho subiram
e de novo tombaram como granizo vermelho.


Aqui a fibra dourada saiu da vicunha
para vestir os amores, os túmulos, as mães,
o rei, as orações, os guerreiros.


Aqui os pés do homem descansaram à noite
junto aos pés da águia, nas altas guaridas
carniceiras, e na aurora
pisaram com os pés do trovão a névoa rarefeita,
e tocaram as terras e as pedras
até reconhecê-las na noite ou na morte.


Olho as vestes e as mãos,
o vestígio da água na cavidade sonora,
a parede suavizada pelo tato dum rosto
que olhou com os meus olhos as lâmpadas terrestres,
que aceitou com as minhas mãos as desaparecidas
madeiras: pois tudo, roupagem, pele, vasilhas,
palavras, vinho, pães,
se foi, rolou pelo chão.


E o ar entrou com dedos
de flor de laranjeira sobre todos os adormecidos:
mil anos de ar, meses, semanas de ar,
de vento azul, de cordilheira férrea,
que fora m como suaves furacões de passos
lustrando o solitário recinto da pedra.




VII
Mortos de um só abismo, sombras de uma ribanceira,
a profunda, é assim como do tamanho
de vossa magnitude,
veio a verdadeira, a mais abrasadora
morte, e das rochas verrumadas,
dos capitéis escarlates,
dos aquedutos escalares
vos desmoronastes como num outono
numa única morte.

Hoje o ar vazio já não chora,
já não conhece os vossos pés de argila,
já esqueceu vossos cântaros que filtravam o céu,
quando o derramavam os punhais do raio,
e a árvore poderosa foi comida
pela névoa, e cortada pela rajada de vento.


Ela susteve a mão que caiu de repente
das alturas até o fim do tempo.


Já não sois mãos de aranha, débeis
fibras, teia emaranhada:
caiu tudo o que fostes: costumes, sílabas
gastas, máscaras de luz deslumbrante.


Mas uma permanência de pedra e de palavra:
a cidade como um copo levantou-se nas mãos
de todos, vivos, mortos, calados, sustentados
por tanta morte, um muro, por tanta vida um golpe
de pétalas de pedra: a rosa permanente, a morada:
este arrecife andino de colônias glaciais.


Quando a mão da cor de argila
se converteu em argila, e quando as pequeninas pálpebras se fecharam
cheias de ásperos muros, povoadas de castelos,
e quando todo o homem se arredou em seu buraco,
ficou a exatidão desfraldada:
o alto local da aurora humana:
o mais alto vaso que conteve o silêncio:
uma vida de pedra depois de tantas vidas.




VIII
Sobe comigo, amor americano.

Beija comigo as pedras secretas.


A prata torrencial do Urubamba
faz voar o pólen de sua copa amarela.

Voa o vazio da trepadeira,
a planta pétrea, a grinalda dura
sobre o silêncio do caixão serrano.

Vem, minúscula vida, entre as asas
da terra, enquanto - cristal e frio, ar batido
apartando esmeraldas combatidas,
ó, água selvagem, baixas da neve.


Amor, amor, até a noite abrupta,
desde o sonoro pedernal andino
até a aurora de joelhos vermelhos,
contempla o filho cego da neve.


Ó, Wilkamayu de sonoros fios,
quando rompes teus trovões lineares
em branca espuma, como neve ferida,
quando teu vendaval escarpado
canta e castiga despertando o céu,
que idioma trazes à orelha do mal
arrancada de tua espuma andina?

Quem apresou o relâmpago do frio
e o deixou nas alturas acorrentado,
repartido em suas lágrimas glaciais,
sacudido em suas rápidas espadas,
golpeando seus estames aguerridos,
conduzido em seu leito de guerreiro,
sobressaltado em final de rocha?

Que dizem suas chispas acossadas?
Teu secreto relâmpago rebelde
viajou antes povoado de palavras?
Quem vai partindo sílabas geladas,
idiomas negros, estandartes de ouro,
bocas profundas, gritos subjugados,
em tuas delgadas águas arteriais?

Quem vai cortando pálpebras florais
que chegam para espiar da terra?
Quem precipita cachos mortos
que descem em tuas mãos de cascata
a debulhar a sua noite debulhada
no carvão da geologia?

Quem despenha o ramo dos vínculos?
Quem outra vez sepulta os adeuses?

Amor, amor, não toques na fronteira,
nem adores a cabeça submersa:
deixa que o tempo cumpra sua estatura
em seu salão de mananciais partidos,
e, entre a água veloz e as muralhas,
recolhe o ar do desfiladeiro,

as paralelas lâminas do vento,
o canal cego das cordilheiras,
a áspera saudação do orvalho
e sobe, flor por flor, pela mata
pisando a serpente despenhada.


Na escarpada zona, pedra e bosque,
pó de estrelas verdes, selva clara,
Mantur explode como um lago vivo
ou como um novo piso de silêncio.


Vem ao meu próprio ser, à minha alba,
até as soledades coroadas.

O reino morto ainda vive.


E no Relógio a sombra sangüinária
do condor cruza como uma ave negra.




IX
Águia sideral, vinha de bruma.

Bastião perdido, cimitarra cega.

Cinturão estrelado, pão solene.

Escada torrencial, pálpebra imensa.

Túnica triangular, pólen de pedra.

Lâmpada de granito, pão de pedra.

Serpente mineral, rosa de pedra.

Nave enterrada, manancial de pedra.

Cavalo da luz, luz de pedra.

Esquadra equinocial, vapor de pedra.

Geometria final, livro de pedra.

Timbale entre as lufadas lavrado.

Madrépora do tempo submerso.

Muralha peles dedos suavizada.

Teto pelas plumas combatido.

Ramos de espelho, bases de tormenta.

Tronos revirados pelas trepadeiras.

Regime de garra encarniçada.

Vendaval sustentado na vertente.

Imóvel catarata de turquesa.

Sino patriarcal dos adormecidos.

Anel das neves dominadas.

Ferro deixado sobre suas estátuas.


Inacessível temporal fechado.

Mãos de puma, rocha sanguinária.

Torre encapelada, discussão de neve.

Noite erguida em dedos e raízes.

Janela das névoas, pomba endurecida.

Planta noturna, estátua dos trovões.

Cordilheira essencial, teto marinho.

Arquitetura de águias perdidas.

Corda do céu, abelha das alturas.

Nível sangrento, estrela construída.

Borbulha mineral, lua de quartzo.

Serpente andina, rosto de amaranto.

Cúpula de silêncio, pátria pura.

Noiva do mar, árvore de catedrais.

Ramo de sal, cerejeira de asas negras.

Dentadura nevada, trovão frio.

Lua arranhada, pedra ameaçadora.

Cabeleira do frio, ação do ar.

Vulcão de mãos, catarata escura.

Onda de prata, direção do tempo.




X
Pedra sobre pedra, o homem, onde esteve?
Ar no ar, o homem, onde esteve?
Tempo no tempo, o homem, onde esteve?
Foste também o pedacinho partido
do homem inconcluso, de águia vazia
que pelas ruas de hoje, que pelas pegadas,
que pelas folhas do outono morto
vai remoendo a alma até o túmulo?
A pobre mão, o pé, a pobre vida .
.
.

Os dias da luz desfiada
em ti, como a chuva
sobre as bandeirinhas das festas,
deram pétala por pétala de seu alimento escuro
na boca vazia?

Fome, coral do homem,
Fome, planta secreta, raiz dos lenhadores,
fome subiu a tua arraia de arrecife
até estas altas torres desprendidas?

Eu te interrogo, sal dos caminhos,
mostra-me a colher, deixa-me, arquitetura,
roer com um palito os estames de pedra,
subir todos os degraus do ar até o vazio,
esfregar a entranha até tocar o homem.


Machu Picchu, puseste
pedras na pedra, e na base, um trapo?
Carvão sobre carvão, e no fundo a lágrima?
Fogo no ouro, e nele, tremendo, o rubro
goteirão do sangue?
Devolve-me o escravo que enterraste!
Arroja das terras o pão duro
dos miseráveis, mostra-me as vestes
do servo e sua janela.

Dize-me como dormiu quando vivia.

Dize-me se foi seu sonho
rouco, entreaberto, como um oco negro
feito pela fadiga sobre o muro.

O muro, o muro! Se sobre o seu sonho
gravitou cada piso de pedra, e se caiu debaixo dela
como debaixo de uma lua, com o sonho!
Antiga América, noiva submersa,
também teus dedos
ao saírem da selva para o alto vazio dos deuses,
sob os estandartes da luz nupcial c do decoro.

mesclando-se ao ribombo dos tambores e das lanças,
também, também os teus dedos,
os que a rosa abstrata e a linha do frio, os
que o peito sangrento do novo cereal trasladaram
até a teia de matéria radiante, até as duras cavidades,
também, também, América enterrada, guardaste no mais baixo,
no amargo intestino, como uma águia, a fome?



XI
Através do confuso esplendor,
através da noite de pedra, deixa-me enfiar a mão
e deixa que em mim palpite, como ave mil anos prisioneira,
o velho coração do esquecido!
Deixa-me esquecer hoje esta sorte mais vasta que o mar,
pois o homem é mais vasto que o mar e suas ilhas,
e há que cair dentro como dentro dum poço para subir do fundo
com um ramo de água secreta e de verdades submersas.

Deixa-me esquecer, pedra vasta, a proporção poderosa,
a transcendente medida, as pedras da colméia,
e do esquadro deixa-me hoje roçar
a mão sobre a hipotenusa de áspero sangue e cilício.

Quando, qual uma ferradura de élitros rubros, o condor furibundo
me golpeia as têmporas na ordem do vôo
e furacão de plumas carniceiras varre a poeira sombria
das escalinatas diagonais, não vejo o bicho feroz,
não vejo o cego ciclo de suas garras,
vejo o antigo ser, servidor, o adormecido
nos campos, vejo um corpo, mil corpos, um homem, mil mulheres.

sob a rajada negra, negros de chuva c de noite,
com a pedra pesada da estátua:
Juan Cortapiedras, filho de Wiracocha,
Juan Comefrío, filho de estrela verde,
Juan Piesdescalzos, neto de turquesa,
sobe para nascer comigo, irmão.
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Canto III - Os Conquistadores

I
Chegam pelas ilhas (1493)

Os carniceiros desolaram as ilhas.

Guanahaní foi a primeira
nesta história de martírios.

Os filhos da argila viram partido
seu sorriso, ferida
sua frágil estatura de gamos,
e nem mesmo na morte entendiam.

Foram amarrados c feridos,
foram queimados e abrasados,
foram mordidos e enterrados.

E quando o tempo deu sua volta de valsa
dançando nas palmeiras,
o salão verde estava vazio.


Só ficavam ossos
rigidamente colocados
em forma de cruz, para maior
glória de Deus e dos homens.


Das gredas ancestrais
e da ramagem de sotavento
até as agrupadas coralinas
foi cortando a faca de Narváez.

Aqui a cruz, ali o rosário,
aqui a Virgem do Garrote.

A jóia de Colombo, Cuba fosfórica,
recebeu o estandarte e os joelhos
em sua areia molhada.




II Agora é Cuba

E foi logo o sangue e a cinza.


Depois ficaram as palmeiras sozinhas.


Cuba, meu amor, te amarraram ao potro,
te cortaram a cara,
te apartaram as pernas de ouro pálido,
te partiram o sexo de romã,
te atravessaram de facas,
te dividiram, te queimaram.


Pelos vales da doçura
desceram os exterminadores,
e nos altos montes a cimeira
de teus filhos se perdeu na névoa,
mas ali foram atingidos
um por um até a morte,
despedaçados no tormento
sem sua terra tépida de flores
que fugia sob os seus pés.


Cuba, meu amor, que calafrio
te sacudiu de espuma a espuma,
até que te fizeste pureza,
solidão, silêncio, mato,
e os ossinhos de teus filhos
fossem disputados pelos caranguejos.




III
Chegam ao Mar do México (1519)

A Veracruz vai o vento assassino.

Em Veracruz desembarcaram os cavalos.

As barcas vão atochadas de garras
e barbas vermelhas de Castela.

São Arias, Reyes, Rojas, Maldonados,

filhos do desamparo castelhano,
conhecedores da fome no inverno
e dos piolhos nos albergues.


Que olham debruçados nos navios?
Quanto do que vem e do perdido
passado, do errante
vento feudal na pátria açoitada?

Não deixaram os portos do sul
para colocar as mãos do povo
no saque e na morte:
eles enxergam terras verdes, liberdades,
cadeias rompidas, construções,
e do alto do navio as ondas que se extinguem
sobre as costas do compacto mistério.

Iriam morrer ou reviver atrás
das palmeiras no ar quente
que, como um forno estranho, a total baforada
para eles dirigem as terras abrasadoras?
Eram povo, cabeças hirsutas de Montiel,
mãos duras e quebradas de Ocaña e Piedrahita,
braços de ferreiros, olhos de meninos
a mirar o sol terrível e as palmeiras.


A fome antiga da Europa, fome como a cauda
dum planeta mortal, povoava o brigue,
a fome lá estava, desmantelada,
errante machado frio, madrasta
dos povos, a fome lança os dados
na navegação, sopra as velas:
“Mais além, senão te como, mais além,
senão regressas
à mãe, ao irmão, ao juiz e ao cura,
aos inquisidores, ao inferno, à peste.

Mais além, mais além, longe do piolho
do chicote feudal, do calabouço,
das galeras cheias de excremento”.


E os olhos de Núñez e Bernales
fixavam na ilimitada
luz o repouso,
uma vida, outra vida,
a inumerável e castigada
família dos pobres do mundo.




IV
Cortés

Cortés não tem povo, é raio frio,
coração morto na armadura.

“Ferazes terras, meu Senhor e Rei,
templos em que o ouro, coalhado
está por mãos de índio.


E avança mergulhando punhais, ferindo
as terras baixas, as escarvantes
cordilheiras dos perfumes,
parando a sua tropa entre orquídeas
e coroações de pinheiros,
atropelando os jasmins,
até as portas de Tlaxcala.


(Irmão aterrado, não tomes
por amigo o abutre cor-de-rosa:
do musgo te falo, das
raízes de nosso reino.

Vai chover sangue amanhã,
as lágrimas serão capazes
de formar névoa, vapor, rios,
até derreteres os teus olhos.
)

Cortés recebe uma pomba,
recebe um faisão, uma cítara
dos músicos do monarca
mas quer a câmara do ouro,
quer mais um passo e tudo cai
nas arcas dos vorazes.

O rei assoma aos balcões:

“É meu irmão”, diz.
As pedras
do povo voam respondendo,
e Cortés afia punhais
sobre os beijos traídos.

Volta a Tlaxcala, o vento trouxe
um surdo rumor de dores.




V
Cholula

Em Cholula os jovens vestem
seu melhor tecido, ouro e plumagens,
e calçados para o festival
interrogam o invasor.


A morte lhes deu resposta.


Lá estão milhares de mortos.

Corações assassinados
que ali palpitam estendidos
e que, na úmida furna que abriram,
guardam o fio daquele dia.

(Entraram matando a cavalo,
cortaram a mão que fazia
a homenagem de ouro e flores,
fecharam a praça, cansaram
os braços até o arrocho,
matando a flor do reinado,
metidos até os cotovelos no sangue
de meus irmãos surpreendidos.
)



VI
Alvarado

Alvarado, com garras e facas,
caiu sobre as choupanas, arrasou
o patrimônio do ourives,
raptou a rosa nupcial da tribo,
agrediu raças, prédios, religiões,
foi a caixa caudal dos ladrões,
o falcão clandestino da morte.

Até o grande rio verde, o Papaloapan,
rio das Borboletas, foi mais tarde
levando sangue em seu estandarte.


O grave rio viu os seus filhos
morrerem ou sobreviverem escravos,
viu arder nas fogueiras perto d'água
raça e razão, cabeças juvenis.

Mas não se esgotaram as dores
como à sua passagem endurecida
para novas capitanias.




VII
Guatemala

Guatemala, a doce, cada laje
de tua mansão leva uma gota
de sangue antigo devorado
pelo focinho dos tigres.

Alvarado massacrou tua estirpe,
violou as estrelas austrais,
espojou-se em seus martírios.


Em Yucatán entrou o bispo
atrás dos pálidos tigres.

Reuniu a sabedoria
mais profunda ouvida no ar
do primeiro dia do mundo,
quando o primeiro maia escreveu
anotando o tremor do rio,
a ciência do pólen, a ira
dos Deuses do Envoltório,
as migrações através
dos primeiros universos,
as leis da colméia,
o segredo da ave verde,
o idioma das estrelas,
segredos do dia e da noite
colhidos nas margens
da evolução terrestre!



VIII
Um bispo

O bispo ergueu o braço,
queimou os livros na praça
em nome de seu Deus pequeno
tornando em fumaça as velhas folhas
gastas pelo tempo escuro.


E a fumaça não volta do céu.




IX
A cabeça num pau

Balboa, morte e garra
levaste aos rincões da doce
terra central, e entre os cães
caçadores, o teu era a tua alma:
leãozinho de beiço sangrento
apanhou o escravo que fugia,
enfiou caninos espanhóis
nas gargantas palpitantes,
e das, unhas dos cachorros
saía a carne para o martírio
e a jóia caía na bolsa.


Malditos sejam cão e homem,
o uivo infame na selva
original, a desafiante
passagem de ferro do bandido.

Maldita seja a espinhenta
Coroa da sarça agreste
que não saltou como um ouriço
para defender o berço invadido.


Mas entre os capitães
sangüinários se ergueu na sombra
a justiça dos punhais,
o acerbo ramo da inveja.


No regresso estava a meio
de teu caminho o apelido
de Pedrarias qual uma corda.


Te julgaram entre os latidos
de cães matadores de índios.

Agora que morres, ouves
o silêncio puro, partido
por teus lebréus açulados?
Agora que morres nas mãos
dos torvos chefes,
sentes o aroma dourado
do reino destruído?

Quando cortaram a cabeça
de Balboa, ficou enfiada
num pau.
Seus olhos mortos
decompuseram seu relâmpago
e rolaram pela lança
numa grande gota de imundice
que desapareceu na terra.




X
Homenagem a Balboa

Descobridor, o vasto mar, minha espuma,
latitude da lua, império da água,
depois de séculos te fala pela minha boca.

Tua plenitude chegou antes da morte.

Ergueste até o céu a fadiga,
e da noite dura das árvores
conduziu-te o suor até a beira
da soma do mar, do grande oceano.

Em teu olhar se fez o matrimônio
da luz estendida e do pequeno
coração do homem, encheu-se a taça
jamais antes erguida, uma semente
de relâmpagos chegou contigo
e um trovão torrencial encheu a terra.

Balboa, capitão, quão diminuta
a tua mão na viseira, misterioso
boneco do sal descobridor,
noivo da oceânica doçura,
filho do novo útero do mundo.


Por teus olhos entrou como um galope
de flores de laranjeira o aroma escuro
da roubada majestade marinha,
caiu em teu sangue uma aurora arrogante
até povoar-te a alma, possesso!
Quando voltaste às terras rudes,
sonâmbulo do mar, capitão verde,
eras um morto que esperava
a terra para receber os teus ossos.


Noivo mortal, a traição cumpria-se.


Não em vão pela história
entrava o crime espezinhado, o falcão devorava
seu ninho e se juntavam as serpentes
que se atacavam com línguas de ouro.


Entraste no crepúsculo frenético
e os passos perdidos que levavas,
ainda empapado de profundidades,
vestido de fulgor e desposado
pela maior espuma, te traziam
às praias de outro mar: a morte.




XI
Dorme um soldado
Extraviado nas fronteiras espessas
chegou o soldado.
Era total fadiga
e caiu entre os cipós e as folhas
ao pé do grande deus emplumado:
este
estava só com o seu mundo mal
surgido da selva.

Olhou o soldado,
estranho nascido do oceano.

Olhou seus olhos, sua barba sangrenta,
sua espada, o brilho negro
da armadura, o cansaço tombado
como bruma sobre essa cabeça
de menino carniceiro.


Quantas zonas
de obscuridade para que o Deus de Pluma
nascesse e enroscasse seu volume
sobre os bosques, na pedra rosada,
quanta desordem de águas loucas
e de noite selvagem, o transbordado
leito da luz sem nascer, o fermento raivoso
das vicias, a destruição, a farinha
da fertilidade e logo a ordem.

a ordem da planta e da seita,
a elevação das rochas cortadas.

a fumaça das lâmpadas rituais,
a firmeza do solo para o homem,
a fundação das tribos,
o tribunal dos deuses terrestres.


Palpitou cada escama da pedra,
Sentiu o pavor que tombou
Como uma invasão de insetos,
Recolheu todo o seu poderio,
fez chegar a chuva às raízes,
falou com as correntezas da terra,
escuro em sua vestimenta
de pedra cósmica imobilizada,
e não pôde mover nem garras nem dentes,
nem rios, nem tremores.

nem meteoros que silvaram
na abóbada do reinado,

e ali ficam, pedra imóvel, silêncio,

enquanto Beltrán de Córdoba dormia.




XII
Ximénez de Quesada (1536)

Tá vão, já vão, já chegam,
coração meu, olha as naus,
as naus pelo Magdalena,
as naus de Gonzalo Jiménez
já chegam, já chegam as naus,
detém-nas, rio, fecha
tuas margens devoradoras,
submerge-as em teu palpitar,
arrebata-lhes a cobiça,
lança-lhes tua trompa de fogo,
teus vertebrados sanguinários,
tuas enguias comedoras de olhos,
atravessa o jacaré espesso
com os seus dentes cor de lodo
c sua primitiva armadura,
estende-o como ponte
sobre tuas águas arenosas,
dispara o fogo do jaguar
do alto das árvores, nascidas
de tuas sementes, rio mãe,
atira-lhes moscas de sangue,
cega-os com estercos negro,
afunda-os em teu hemisfério,
submete-os entre as raízes
na escuridão de teu leito,
apodrece-lhes o sangue todo
devorando-lhes os pulmões
e os lábios com teus caranguejos.


Já entraram na floresta:
já roubam, já mordem, já matam.

Ó Colômbia! Defende o véu
de tua secreta selva rubra.


Já ergueram o punhal
sobre o oratório de Iraka,
agora agarram o cacique,
agora o amarram.
“Entrega
as jóias do deus antigo”,
e brincavam com o orvalho
da manhã da Colômbia.


Agora atormentam o príncipe.

Degolaram-no, sua cabeça
me espia com olhos que ninguém
pode fechar, olhos amados
de minha pátria verde e nua.

Agora queimam a casa solene,
agora seguem os cavalos,
os tormentos, as espadas,
agora restam umas brasas
e entre as cinzas os olhos
do príncipe que não se fecharam.




XIII
Encontro de corvos

No Panamá uniram-se os demônios.

Foi aí o pacto dos furões.

Uma vela apenas iluminava
quando os três chegaram por um.

Primeiro chegou Almagro antigo e torto,
Pizarro, o velho porcino
e o frade Luque, cônego entendido
em trevas.
Cada um
escondia o punhal para as costas
do associado, cada um
com ensebado olhar nas escuras
paredes adivinhava sangue,
e o ouro do longínquo império os atraía
como a lua às pedras malditas.

Quando pactuaram, Luque ergueu
a hóstia na eucaristia,
os três ladrões amassaram
a obréia com torvo sorriso.

“Deus foi dividido, irmãos,
entre nós”, garantiu o cônego,
e os carniceiros de dentes
roxos disseram “Amém”.

Bateram na mesa cuspindo.

Como não sabiam de letras
encheram de cruzes a mesa,
o papel, os bancos, os muros.


O Peru, escuro, submerso,
estava marcado de cruzes,
pequenas, negras, negras cruzes
pelo sul saíram navegando:
cruzes para as agonias,
cruzes peludas e afiadas,
cruzes com ganchos de réptil,
cruzes salpicadas de pústulas,
cruzes como pernas de aranha,
sombrias cruzes caçadoras.




XIV
As agonias

Em Cajamarca começou a agonia.


O jovem Atahualpa, estame azul,
árvore insigne, ouviu o vento
trazer rumor de aço.

Era um confuso
brilho e tremor desde a costa,
um incrível galope
- patear e poderio -
de ferro e ferro entre a relva.

Chegaram os capitães.


O Inca saiu da música
rodeado pelos senhores.


As visitas
de outro planeta suadas e barbudas,
iam prestar reverência.

O capelão
Valverde, coração traidor, chacal podre,
avança um estranho objeto, um pedaço
de cesto, um fruto
talvez daquele planeta
de onde vieram os cavalos.

Atahualpa o segura.
Não sabe
de que se trata: não brilha, não soa,
e o deixa cair sorrindo.


“Morte,
vingança, matai, que vos absolvo”,
grita o chacal da cruz assassina.

O trovão acode aos bandoleiros.

Nosso sangue em seu berço é derramado.

Os príncipes rodeiam como um coro
o Inca, na hora agonizante.


Dez mil peruanos caem
debaixo de cruzes e espadas, o sangue
molha as vestimentas de Atahualpa.

Pizarro, o porco cruel de Extremadura,
faz amarrar os delicados braços
do Inca.
A noite desceu
sobre o Peru como brasa negra.




XV
A linha avermelhada

Mais tarde ergueu a fatigada
mão o monarca, e acima
das caras dos bandidos,
tocou os muros.

Aí traçaram
a linha avermelhada.

Três câmaras
era preciso encher de ouro e prata,
até essa linha de seu sangue.

Rodou a roda de ouro, noite e noite.

A roda do martírio dia e noite.


Arranharam a terra, retiraram
jóias feitas com amor e espuma,
arrancaram o bracelete da noiva,
desampararam os seus deuses.

O lavrador entregou a sua medalha,
o pescador sua gota de ouro,
e as relhas tremeram respondendo
enquanto voz e mensagem nas alturas
ia a roda de ouro rodando.

Aí tigre e tigre se juntaram
e repartiram o sangue e as lágrimas.


Atahualpa esperava levemente
triste no escarpado dia andino.

Não se abriram as portas.
Até a última
jóia os abutres dividiram:
as turquesas rituais, salpicadas
pela carnificina, o vestido
laminado de prata: as unhas bandoleiras
iam medindo e a gargalhada
do frade entre os verdugos
o rei escutava com tristeza.


Era seu coração um vaso cheio
de uma angústia amarga como
a essência amarga da quina.

Pensou em suas fruteiras, no alto Cuzco,
nas princesas, em sua idade,
no calafrio de seu reino.

Maduro estava por dentro, sua paz
desesperada era tristeza.
Pensou em Huáscar.

Viriam dele os estrangeiros?
Tudo era enigma, tudo era faca.

Tudo era solidão, só a linha rubra
palpitava vivente,
tragando as entranhas amarelas
do reino emudecido que morria.


Entrou Valverde então com a morte.

“Te chamarás Juan”, lhe disse
enquanto preparavam a fogueira.

Gravemente respondeu: “Juan,
Juan me chamo até morrer”,
já sem compreender nem mesmo a morte.


Ataram-lhe o pescoço e um gancho

penetrou na alma do Peru.




XVI
Elegia

Só, nas soledades
quero chorar como os rios, quero
escurecer, dormir
como tua antiga noite mineral.

Por que chegaram as chaves radiantes
até às mãos do bandido? Levanta-te,
materna Oello, descansa teu segredo
na fadiga longa desta noite
e deita em minhas veias teu conselho.

Não te peço ainda o sol do Yupanquis.

Te falo adormecido, chamando
de terra a terra, mãe
peruana, matriz, cordilheira.

Como entrou em teu arenoso recinto
a avalanche dos punhais?

Imóvel em tuas mãos,
sinto estenderem-se os metais
nos canais do subsolo.


Estou feito de tuas raízes,
mas não entendo, não me entrega
a terra a sua sabedoria.

Vejo apenas noite e noite
sob as terras estreladas.


Que sonho sem sentido, de serpente,
arrastou-se até a linha avermelhada?
Olhos do luto, planta tenebrosa.

Como chegaste a este vento vinagre,
como entre os penhascos da ira
não ergueu Capac a sua tiara
de argila deslumbrante?

Deixai-me sob os pavilhões
padecer e afundar-me como
a raiz curta que não dará esplendor.

Sob a dura noite dura
descerei pela terra até chegar
à boca do ouro.


Quero estender-me na pedra noturna.


Quero chegar aí com a desgraça.




XVII
As guerras

Mais tarde ao Relógio de Granito
chegou uma chama incendiária.

Almagros e Pizarros e Valverdes,
Castillos e Urías e Beltranes
se apunhalaram repartindo
as traições adquiridas,
se roubavam a mulher e o ouro,
disputavam a dinastia.

Enforcavam-se nos currais,
debulhavam-se na praça,
agarravam-se aos Cabildos.

Tombava a árvore do saque
entre estocadas e gangrena.


Desse galope de Pizarros
nos territórios linhosos
nasceu um silêncio estupefato.


Estava tudo cheio de morte
e sobre a agonia arrasada
de seus filhos desventurados,
no território (roído
até os ossos pelas ratazanas),
sujeitavam-se as entranhas
antes de matar e se matarem.


Magarefes de cólera e força,
centauros tombados na lama
da cobiça, ídolos
partidos pela luz do ouro,
exterminastes vossa própria
estirpe de unhas sanguinárias
e junto às rochas murais
do alto Cuzco coroado.

diante do sol de espigas mais altas,
representastes no pó
dourado do Inca, o teatro
dos infernos imperiais:
a Rapina de focinho verde,
a Luxúria azeitada em sangue,
a Cobiça de unhas de ouro,
a Traição, avessa dentadura,
a Cruz como um réptil rapace,
a Forca mm fundo de neve,

e a Morte fina como o ar

imóvel em sua armadura.




XVIII Descobridores do Chile

Do norte trouxe Almagro sua rugosa centelha.

E sobre o território, entre explosão e ocaso,
inclinou-se dia e noite como sobre uma carta
Sombra de espinhos, sombra de cardo e cera,
o espanhol reunido com a sua seca figura,
mirando as sombrias estratégias do solo.


Noite, neve e areia fazem a forma
de minha pátria delgada,
todo o silêncio está em sua longa linha,
toda a espuma sai de sua barba marinha,
todo o carvão a enche de beijos misteriosos.

Como brasa o ouro arde em seus dedos
e a prata ilumina como lua verde
sua endurecida forma de tétrico planeta.

O espanhol sentado junto à rosa um dia,
junto ao azeite, junto ao vinho, junto ao antigo céu,
não imaginou este ponto de colérica pedra
nascer sob o esterco da águia marinha.




XIX
A terra combatente
Primeiro resistiu a terra.


A neve araucana queimou
como uma fogueira de brancura
a marcha dos invasores.

Caíam de frio os dedos,
as mãos, os pés de Almagro
e as garras que devoraram
e sepultaram monarquias
eram na neve um ponto
de carne gelada, eram silêncio.

Foi no mar das cordilheiras.


O ar chileno chicoteava
marcando estrelas, derrubando
cobiças e cavalarias.


Cedo, a fome andou atrás
de Almagro como invisível
mandíbula que atacava.

Os cavalos eram comidos
naquela festa glacial.


E a morte do sul debulhou
o galope dos Almagros,
até que voltou seu cavalo
para o Peru, onde esperava
o descobridor rechaçado,
a morte do norte, sentada
no caminho, com um machado.




XX
Unem-se a Terra e o Homem

Araucania ramo de carvalhos torrenciais,
c5 Pátria despiedosa, amada escura,
solitária em teu reino chuvoso:
eras apenas gargantas minerais,
mãos de frio, punhos
acostumados a cortar penhascos,
eras, Pátria, a paz da dureza
e teus homens eram rumor,
áspera aparição, vento bravio.


Não tiveram os meus pais araucanos
elmos de plumagem luminosa,
não descansaram em flores nupciais,
não fiaram ouro para o sacerdote:
eram pedra e árvore, raízes
dos matagais sacudidos,
folhas com forma de lança,
cabeças de metal guerreiro.

Pais, apenas levantastes
a orelha ao galope, apenas no cimo
dos montes, cruzou
o raio de Araucania.

Tornaram-se sombra os pais de pedra,
ataram-se ao bosque, às trevas
naturais, tornaram-se luz de gelo,
asperezas de terras e espinhos,
e assim esperaram nas profundezas
da solidão indomável:
um era uma árvore vermelha que olhava,
outro um fragmento de metal que ouvia,
outro uma lufada de vento e verruma,
outro tinha a cor do caminho.

Pátria, nave de neve,
folhagem endurecida:
aí nasceste, quando o homem teu
pediu à terra o seu estandarte,
e quando terra e ar e pedra e chuva,
folha, raiz, uivo, perfume,
cobriram como um manto o filho
que amaram e defenderam.

Assim nasceu a pátria unânime:
a unidade antes do combate.




XXI
Valdivia (1544)

Mas voltaram (Pedro se chamava).

Valdivia, o capitão intruso,
cortou minha terra com a espada
entre ladrões: “Isto é teu,
isto é teu.
Valdés, Montero,
isto é teu, Inés, este lugar
é o cabido”.

Dividiram minha pátria
como sé fosse um asno morto.

“Leva
este pedaço de lua e arvoredo,
devora este rio com crepúsculo”,
enquanto a grande cordilheira
erguia bronze e brancura.


Assomou Arauco.
Adobes, torres,
ruas, o silencioso
dono da casa levantou sorrindo.

Trabalhou com as mãos empapadas
de sua água e de seu barro, trouxe
a greda e verteu a água andina:
mas não pôde ser escravo.

Então Valdivia, o verdugo,
atacou a fogo e morte.

Assim começou o sangue,
o sangue de três séculos, o sangue oceano,
o sangue atmosfera que cobriu a minha terra
e o tempo imenso, como guerra nenhuma.

Saiu o abutre iracundo
da armadura enlutada
e mordeu o chefe, rompeu
o pacto escrito no silêncio
de Huelén, no ar andino.


Arauco começou a ferver seu prato
De sangue e pedras.

Sete príncipes
vieram para lamentar.

Foram presos.

Diante dos olhos da Araucania,
cortaram as cabeças dos caciques.

Animavam-se os verdugos.
Toda
empapada de vísceras, uivando,
Inés Suárez, a mercenária,
subjugava os pescoços imperiais
com os seus joelhos de infernal harpia.

E as lançou sobre a paliçada,
banhando-se de sangue nobre,
cobrindo-se de barro escarlate.

Acreditaram assim dominar Arauco.

Porém aqui a unidade sombria
de árvore e pedra, lança e rosto,
transmitiu o crime ao vento.

Soube disso a árvore da fronteira,
o pescador, o rei, o mago,
soube disso o lavrador antártico,
souberam-no as águas mães
do Bío-Bío.

Assim nasceu a guerra pátria.

Valdivia enfiou a lança gotejante
nas entranhas pedregosas
de Arauco, meteu a mão
no palpitar, apertou os dedos
no coração araucano,
derramou as veias silvestres
dos labregos,
exterminou
o amanhecer pastoril,
ordenou martírio
ao rei do bosque, incendiou
a casa do dono do bosque,
cortou as mãos do cacique,
devolveu os prisioneiros
com orelhas e narizes cortados,
empalou o toqui, assassinou
a moça guerrilheira
e com a sua luva ensangüentada
marcou as pedras da pátria,
deixando-a cheia de mortos
e solidão e cicatrizes.




XXII
Ercilla


Pedras de Arauco e desatadas rosas
fluviais, territórios de raízes,
encontraram-se com o homem que chegou de Espanha.

Invadem a sua armadura com gigantesco líquen.

Atropelam a sua espada as sombras do feto.

A hera original põe mãos azuis
no recém-chegado silêncio do planeta.

Homem, Ercilla sonoro, ouço o pulso da água
de teu primeiro amanhecer, um frenesi de pássaros
e um trovão na folhagem.

Deixa, deixa a tua pegada
de águia rubra, destroça
a tua face contra o milho silvestre,
tudo será na terra devorado.

Sonoro, somente tu não beberás a taça
de sangue, sonoro, só ao rápido
fulgor de ti nascido
cm vão chegará a boca secreta do tempo
para dizer-te: em vão.

Em vão, em vão
sangue pelas ramagens de cristal salpicado,
em vão pelas noites do puma
o desafiador passo do soldado,
as ordens,
os passos
do ferido.

Tudo torna ao silêncio coroado de plumas
onde um rei remoto devora trepadeiras.




XXIII
Enterram-se as lanças

Assim ficou repartido o patrimônio.

O sangue dividiu a pátria inteira.

(Contarei em outras linhas
a luta do meu povo.
)
Mas foi cortada a terra
pelas facas invasoras.

Depois vieram povoar a herança
usurário de Euzkadi, netos
de Loyola.
Da cordilheira
do oceano
dividiram com árvores e corpos
a sombra recostada do planeta.

As comendas sobre a terra
sacudida, ferida, incendiada,
o reparte de selva e água
nos bolsos, os Errázuriz
que chegam com seu escudo de armas:
um chicote e uma alpargata.




XXIV
O coração magalhânico (1519)

De onde sou, às vezes me pergunto, de que diabos
venho, que dia é hoje, que acontece,
ronco, no meio do sonho, da árvore, da noite,
e uma onda se levanta como pálpebra, um dia
dela nasce, um relâmpago com focinho de tigre.



Desperto de repente na noite pensando no extremo sul
Vem o dia e me diz: “Ouves
a água lenta, a água
sobre a Patagônia?”
E eu respondo: “Sim, senhor, escuto”.

Vem o dia e me diz: “Uma ovelha selvagem,
longe, na região, lambe a cor gelada
duma pedra.
Não escutas o balido, não reconheces
o vendaval azul em cujas mãos
a lua é uma taça, não vês a tropa, o dedo
rancoroso do vento
tocar a onda e a vida com o seu anel vazio?”


Recordo a solidão do estreito
A longa noite, o pinheiro, vêm aonde vou.

E se transtorna o ácido surdo, a fadiga,
a tampa do tonel, quanto tenho na vida.

Uma gota de neve chora e chora à minha porta
mostrando o seu vestido claro e desatado
de pequeno cometa que me procura e soluça.

Ninguém olha a lufada, a extensão, o uivo
do ar nas pradarias.

Me aproximo e digo: vamos.
Toco o sul, desemboco
na areia, vejo a planta seca e negra, toda raiz e rocha,
as ilhas arranhadas pela água e pelo céu,
o Rio da Fome, o Coração de Cinza,
o Pátio do Mar Lúgubre, e onde assovia
a solitária serpente, onde cava
o último zorro ferido e esconde seu tesouro sangrento
encontro a tempestade e sua voz de ruptura,
sua voz de velho livro, sua boca de cem lábios,
algo me diz, algo que o ar devora cada dia.



Os descobridores da América aparecem e deles nada fica
Recorda a água quanto aconteceu ao navio.

A dura terra estranha guarda as suas caveiras
que soam no pânico austral como cornetas
e olhos de homem e de boi dão ao dia o seu vazio,
o seu anel, o seu ressoar de implacável sulco.

O velho céu busca a vela, ninguém
já sobrevive: o brigue destruído
vive com a cinza do marinheiro amargo,
e dos entrepostos de ouro, das casas de couro
do trigo pestilento, e da
chama fria das navegações
(quanto golpe noite [rocha e baixel] no casa,)
fica apenas o domínio queimado e sem cadáveres,
a incessante intempérie apenas partida
por um negro fragmento
de fogo falecido.



Só se impõe a desolação
Esfera que destroça lentamente a noite, a água, o gelo,
extensão combatida pelo tempo e pelo fim,
com sua marca violeta, com o final azul
do arco-íris selvagem
se afogam os pés de minha pátria em tua sombra
e uiva e agoniza a rosa triturada.

Recordo o velho descobridor
Pelo canal navega novamente
o cereal gelado, a barca do combate,
0 outono glacial, o transitório ferido.

Com ele, com o antigo, com o morto,
com o destituído pela água raivosa,
com ele em sua tormenta, com seu rosto.

Ainda o segue o albatroz c a soga de couro
comida, com os olhos fora do olhar
e o rato devorado cegamente olhando
entre paus partidos o esplendor iracundo,
enquanto no vazio o anel e o osso
caem, resvalam pela vaca-marinha.



Magalhães
Qual é o deus que passa? Olhai sua barba cheia de vermes
e seus calções aos quais a espessa atmosfera
se agarra e morde como um cão náufrago:
e tem peso de âncora maldita a sua estatura,
e silva o pélago e o aquilão acorre
até seus pés molhados.
Caracol da escura
sombra do tempo, espora
carcomida, velho senhor de luto litoral, caçador
sem estirpe, manchado manancial, o esterco
do estreiro te manda,
e de cruz tem o seu peito só um grito
do mar, um grito branco, de luz marinha,
e de tenaz, de tombo em tombo, de aguilhão demolido.



Chega ao Pacífico
Porque o sinistro dia do mar termina um dia,
e a mão noturna corta seus dedos um a um
até não ser, até que o homem nasce
e o capitão descobre dentro de si o aço
e a América sobe a soa borbulha
e a costa levanta o seu pálido arrecife
sujo de aurora, turvo de nascimento
até que da nau sai um grito e se afoga
e outro grito e a alba que nasce da espuma.



Todos morreram
Irmãos de água e piolho, de planeta carnívoro:
vistes, enfim, a árvore do mastro encolhida
pela tormenta? Vistes a pedra esmagada
sob a louca neve brusca da lufada?
Enfim, já tendes o vosso paraíso perdido,
enfim, tendes a vossa guarnição maldizente,
enfim, vossos fantasmas atravessados pelo ar
beijam sobre a areia o rasto da foca.


Enfim, a vossos dedos sem anel
chega o pequeno sal do páramo, o dia morto,
tremendo, em seu hospital de ondas e pedras.




XXV
Apesar da ira

Roídos elmos, ferraduras mortas!

Mas através do fogo e da ferradura
como de um manancial iluminado
pelo sangue sombrio,
com o metal fundido no tormento
derramou-se uma luz sobre a terra:
número, nome, linha e estrutura.


Página de água, claro poderio
de idiomas rumorosos, doces gotas
elaboradas como cachos de uvas,
sílabas de platina na ternura
de uns peitos puros aljofarados,
e uma clássica boca de diamantes
deu seu fulgor nevado ao território.


Já longe a estátua depunha
seu mármore morto, e na primavera
do mundo, amanheceu a maquinaria.


A técnica elevava o seu domínio
e o tempo foi velocidade e lufada
na bandeira dos mercadores.


Lua de geografia
que descobriu a planta e o planeta
estendendo geométrica formosura
em seu desenvolvido movimento.


Ásia entregou o seu virginal aroma.

A inteligência com um fio gelado
foi atrás do sangue a fiar o dia.


O papel repartiu a pele nua
guardada nas trevas.


Um vôo
de pombal saiu da pintura
com arrebol e azul ultramarino.


E as línguas do homem se juntaram
na primeira ira, antes do canto.


Assim, com o sangrento
titã de pedra,
falcão encarniçado,
não só chegou o sangue mas o trigo.


A luz veio apesar dos punhais.
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Canto IV - Os Libertadores

Os Libertadores
Aqui vem a árvore, a árvore
da tormenta, a árvore do povo.

Da terra sobem os heróis
como as folhas pela seiva
e o vento despedaça as folhagens
de multidão rumorosa,
até que cai a semente
do pão outra vez na terra.


Aqui vem a árvore, a árvore
nutrida por mortos desnudos,
mortos açoitados e feridos,
mortos de rostos impossíveis,
empalados sobre uma lança,
esfarelados na fogueira,
decapitados pela acha,
esquartejados a cavalo,
crucificador na igreja.


Aqui vem a árvore, a árvore
cujas raízes estão vivas,
tirou salitre do martírio,
suas raízes comeram sangue,
extraiu lágrimas do céu:
elevou-as por suas ramagens,
repartiu-as em sua arquitetura.

Foram flores invisíveis,
às vezes flores enterradas,
outras vezes iluminaram
suas pétalas, como planetas.


E o homem recolheu nos ramos
as corolas endurecidas,
entregando-as de mão em mão
como magnólias ou romãs
e logo abriram a terra,
cresceram até as estrelas.


Esta é a árvore dos livres.

A árvore terra, a árvore nuvem.

A árvore pão, a árvore flecha,
a árvore punho, a árvore fogo.

Afoga-a a água tempestuosa
de nossa época noturna,
mas seu mastro faz balançar
o círculo de seu poder.


Outras vezes de novo tombam
os ramos partidos pela cólera,
e uma cinza ameaçadora
cobre a sua antiga majestade:
foi assim desde outros tempos,
assim saiu da agonia,
até que uma secreta razão,
uns braços inumeráveis,
o povo, guardou os fragmentos,
escondeu troncos invariáveis,
e seus lábios eram as folhas
de imensa árvore repartida,
disseminada em todas as partes,
caminhando com suas raízes.

Esta é a árvore, a árvore
do povo, de todos os povos
da liberdade, da luta.


Assoma-te a sua cabeleira:
toca seus raios renovados:
mergulha a não nas usinas
de onde seu fruto palpitante
propaga a sua luz de cada dia.

Levanta esta terra em tuas mãos,
participa deste esplendor,
toma o teu pão e a tua maçã,
teu coração e teu cavalo
e monta guarda na fronteira,
no limite de suas folhas.


Defende o fim de suas coroas,
comparte as noite hostis,
vigia o ciclo da aurora,
respira a altura estrelada,
amparando a árvore, a árvore
que cresce no meio da terra.



I
Cuahtémoc (1520)

Jovem irmão há tempos e tempos
nunca dormido, nunca consolado,
jovem estremecido nas trevas
metálicas do México, em tua mão
recebo o dom de tua pátria nua.


Nela nasce e cresce o teu sorriso,
uma linha entre a luz e o ouro.


São os teus lábios unidos pela morte
o mais puro silêncio sepultado.


O manancial submerso
sob todas as bocas da terra.


Ouviste, ouviste, acaso,
no Anáhuac longínquo,
um rumo de água, um vento
de primavera destroçada?
Era talvez a palavra do cedro.

Era uma onda branca de Acapulco.


Porém na noite fugia
teu coração como um cervo
até as fronteiras, confuso,
entre os monumentos sanguinários,
sob a lua soçobrante.


Toda a sombra preparava sombra.

Era a terra uma escura cozinha,
pedra e caldeira, vapor negro,
muro sem nome, injúria
que te chamava dos noturnos
metais de tua pátria.


Mas não há sombra em teu estandarte.


Chegou a hora assinalada
e ao meio de teu povo
és pão e raiz, lança e estrela.

O invasor sustou o passo.

Não é Moctezuma extinto
como taça morta,
é o relâmpago e sua armadura,
a pluma de Quetzal, a flor do povo,
o elmo aceso entre as naus.


Mas a mão dura como séculos de pedra
apertou a tua garganta.
Não fecharam
o teu sorriso, não fizeram
tombar os grãos do milho
secreto, e te arrastaram,
vencedor cativo,
pelas distâncias de teu reino,
entre cascatas e cadeias,
sobre areais e aguilhões,
como uma coluna incessante,

como testemunha dolorosa,
até que uma corda enredou
a coluna da pureza
e dependurou o corpo suspenso
sobre a terra desgraçada.




II
Frei Bartolomé de las Casas

A gente pensa, ao chegar a casa, à noite, cansado,
entre a névoa fria de maio, à saída
do sindicato (na esmiuçada
luta de cada dia, a estação
chuvosa que goteja do beiral, o surdo
latejar do constante sofrimento),
esta ressurreição mascarada,
astuta, envilecida,
do encadeador, da cadeia,
e quando sobe a angústia
até a fechadura para entrar contigo,
surge uma luz antiga, suave e dura
como um metal, como um astro enterrado.

Padre Bartolomé, obrigado por esta
dádiva da crua meia-noite,
graças porque teu fio foi invencível:
pôde morrer massacrado, comido
pelo cão de fauces iracundas,
pôde ficar na cinza
da casa incendiada,
pôde cortá-lo a lâmina fria
do assassino inumerável
ou o ódio administrado com sorrisos
(a traição do próximo cruzado),
a mentira arremessada na janela.

Pôde morrer o fio cristalino,
a irredutível transparência
convertida em ação, em combatente
e despenhado aço de cascata.

Poucas vidas dá o homem como a tua, poucas
sombras há na árvore como a tua sombra, nela
todas as brasas vivas do continente acodem,
todas as arrasadas condições, a ferida
do mutilado, as aldeias
exterminadas, tudo sob a tua sombra
renasce, do limite
da agonia fundas a esperança.

Padre, foi sorte para o homem e sua espécie
que tivesses chegado à plantação,
que mordesses os negros cereais
do crime, que bebesses cada dia a taça da cólera.

Quem te pôs, mortal despido,
entre os dentes da fúria?
Como assomaram outros olhos,
de outro metal, quando nascias?

Como se cruzam os fermentos
na oculta farinha humana
para que o teu grão imutável
se amassasse no pão do mundo?

Eras a realidade entre fantasmas
encarniçados, eras
a eternidade da ternura
sobre a rajada do castigo.

De combate em combate a tua esperança
converteu-se em precisas ferramentas:
a solitária luta fez-se um ramo,
o pranto inútil agrupou-se em partido.


Não valeu a piedade.
Quando mostravas
tuas colunas, tua nave amparadora,
tua mão para abençoar, teu manto,
o inimigo pisoteou as lágrimas,
e violou a cor da açucena.

Não valeu a piedade alta e vazia
como uma catedral abandonada.

Foi a tua invencível decisão, a ativa
resistência, o coração armado.


Foi a razão o teu material titânico.


Foi flor organizada a tua estrutura.


De cima quiseram contemplar-te
(de sua altura) os conquistadores,
apoiando-se como sombras de pedra
sobre seus espadões, esmagando
com os seus sarcásticos escarros
as terras de tua iniciativa,
dizendo: “Ali vai o agitador”,
mentindo: “Foi pago
pelos estrangeiros”,
“Não tem pátria”, “Traidor”,
mas a tua prédica não era
frágil minuto, peregrina
pauta, relógio do passageiro.

Tua madeira era bosque combatido,
ferro em sua cepa natural, oculto
a toda luz pela terra florida,
e ainda mais, era mais fundo:
na unidade do tempo, no transcurso
da vida, era a tua mão antecipada
estrela zodiacal, signo do povo.

Hoje, padre, entra nesta casa comigo.


Vou mostrar-te as cartas, o tormento
de meu povo, do homem perseguido.

Vou mostrar-te as dores antigas.

E para não tombar, para firmar-me
sobre a terra, continuar lutando,
deixa em meu coração o vinho errante
e o pão implacável de tua doçura.




III
Avançando nas trevas do Chile

Espanha entrou até o sul do mundo.
Opressos
exploraram a neve os altos espanhóis.

O Bío-Bío, grave rio,
disse à Espanha: “Pára”,
o bosque de maitenes cujos fios
verdes pendem como um tremor de chuva
disse à Espanha: “Não prossigas”.
O lariço,
titã das fronteiras silenciosas,
disse em um trovão a sua palavra.

Mas até o fundo da pátria minha,
punho e punhal, o invasor chegava.

Pelo rio Imperial, em cuja margem
meu coração amanheceu no trevo,
entrava o furacão pela manhã.

O largo leito das garças seguia
das ilhas para o mar furioso,
cheio como taça interminável,
entre as margens do cristal sombrio.

Em suas barrancas eriçava o pólen
uma alfombra de estames turbulentos
e desde o mar a brisa comovia
todas as sílabas da primavera.

A aveleira da Araucania
embandeirava fogueiras e racimos
lá onde a chuva deslizava
sobre o agrupamento da pureza.

Tudo estava enredado de fragrâncias,
empapado de luz verde e chuvosa,
e cada matagal de odor amargo
era um ramo profundo do inverno
ou uma extraviada formação marinha
ainda cheia do orvalho oceânico.

Dos barrancos se erguiam
torres de pássaros e plumas
e um ventarrão de solidão sonora,
enquanto na molhada intimidade
entre as cabeleiras encrespadas
do feto gigante, era a topa-topa florescida
um rosário de beijos amarelos.




IV
Surgem os homens
Ali germinavam os toquis.

Daquelas negras umidades,
daquela chuva fermentada
na taça dos vulcões
saíram os peitos augustos,
as claras flechas vegetais,
os dentes de pedra selvagem,
os pés de estaca inapelável,
a glacial unidade da água.


O Arauco foi um útero frio,
feito de feridas, massacrado
pelo ultraje, concebido
entre os ásperos espinhos,
arranhado nos montões de neve,
protegido pelas serpentes.


Assim a terra extraiu o homem.


Cresceu como fortaleza.

Nasceu do sangue agredido, eriçou a cabeleira
como um pequeno puma rubro
e os olhos de pedra dura
brilhavam na matéria
como fulgores implacáveis
saídos da caçada.




V
Toqui Caupolicán

Na cepa secreta do raulí
cresceu Caupolicán, torso e tormenta,
e quando contra as armas invasoras
seu povo dirigiu,
andou a árvore,
andou a árvore dura da pátria.

Os invasores viram a folhagem
mover-se ao meio da bruma verde,
os grossos ramos e as vestimentas
de inumeráveis folhas e ameaças,
o tronco terrenal fazer-se povo,
as raízes saírem do território.


Souberam que a hora havia soado
para o relógio da vida e da morte.


Outras árvores vieram com ele.


Toda a raça de ramagens rubras,
todas as tranças da dor silvestre,
todo o nó do ódio da madeira.

Caupolicán, sua máscara de lianas
defronta o invasor perdido:
não é a pintada pluma imperadora,
não é o trono das plantas olorosas,
não é o reluzente colar do sacerdote,
não é a luva nem o príncipe dourado:
um é o rosto da mata,
uma carranca de acácias arrasadas,
uma figura ferida pela chuva,
uma cabeça com trepadeiras.


De Caupolicán, o toqui, é o olhar
fundido, de universo montanhoso,
os olhos implacáveis da terra,
e as faces do titã são muros
escalados por raios e raízes.




VI
A Guerra Pátria

A Araucania estrangulou o cantar
da rosa no cântaro, cortou
os fios
no tear da noiva de prata.

Desceu a ilustre Machi de sua escada,
e nos rios dispersos, na argila,
sob a copa hirsuta
das araucárias guerreiras,
foi nascendo o clamor dos sinos
enterrados.
A mãe da guerra
saltou as pedras doces do arroio,
deu asilo à família pescadora,
e o noivo lavrador beijou as pedras
antes que voassem à ferida.


Atrás do rosto florestal do toqui
Arauco amontoava a sua defesa:
eram olhos e lanças, multidões
espessas de silêncio e ameaça,
cinturas indeléveis, altaneiras
mãos escuras, punhos congregados.


Atrás do alto toqui, a montanha,
e na montanha, o inumerável Arauco.


Arauco era o rumor da água errante.


Arauco era o silêncio tenebroso.


O mensageiro em sua mão cortada
ia juntando as gotas de Arauco.


Arauco foi a onda da guerra.

Arauco os incêdios da noite.


Tudo fervia atrás do toqui augusto,
e quando ele avançou, foram trevas,
areias, bosques, terras,
unânimes fogueiras, furacões,
aparição fosfórica de pumas.




VII
O empalado

Caupolicán porém chegou ao tormento.


Ensartado na lança do suplício,
entrou na morte lenta das árvores.


Arauco redobrou o seu ataque verde,
sentiu nas sombras o calafrio,
cravou na terra a cabeça,
ocultou-se com as suas dores.

O toqui dormia na morte.

Um ruído de ferro chegava
do acampamento, uma coroa
de gargalhadas estrangeiras,
e junto aos bosques enlutados
somente a noite palpitava.


Não era a dor, a dentada
do vulcão aberto nas vísceras,
era só um sonho da mata,
a árvore que sangrava.


Nas entranhas de minha pátria
entrava a ponta assassina
ferindo as terras sagradas.

O sangue queimante tombava
de silêncio em silêncio, abaixo,
até onde a semente está
à espera da primavera.


Mais fundo tombava este sangue.


Caía sobre as raízes.


Caía sobre os mortos.


Sobre os que iam nascer.



VIII
Lautaro (1550)

O sangue toca um corredor de quartzo.

A pedra cresce onde a gota tomba.

Assim nasce Lautaro da pedra.




IX
Educação do cacique

Lautaro era uma flecha delgada.

Elástico e azul foi o nosso pai.

Foi sua primeira idade só silêncio.

Sua adolescência foi domínio.

Sua juventude foi um vento dirigido.

Preparou-se como uma longa lança.

Acostumou os pés nas cachoeiras.

Educou a cabeça nos espinhos.

Executou as provas do guanaco.

Viveu pelos covis da neve.

Espreitou as águias comendo.

Arranhou os segredos do penhasco.

Entreteve as pétalas do fogo.

Amamentou-se de primavera fria.

Queimou-se nas gargantas infernais.

Foi caçador entre as aves cruéis.

Tingiram-se de vitórias as suas mãos.

Leu as agressões da noite.


Amparou o desmoronamento do enxofre.


Se fez velocidade, luz repentina.


Tomou as vagarezas do outono.

Trabalhou nas guaridas invisíveis.

Dormiu sobre os lençóis da nevasca.

Igualou-se à conduta das flechas.

Bebeu o sangue agreste dos caminhos.

Arrebatou o tesouro das ondas.

Se fez ameaça como um deus sombrio.

Comeu em cada cozinha de seu povo.

Aprendeu o alfabeto do relâmpago.

Farejou as cinzas espalhadas.

Envolveu o coração de peles negras.

Decifrou o fio espiral do fumo.

Construiu-se de fibras taciturnas.

Azeitou-se como a alma da azeitona.

Fez-se cristal de transparência dura.

Estudou para vento furacão.

Combateu-se até apagar o sangue.


E só então foi digno de seu povo.




X
Lautaro entre invasores

Entrou na casa de Valdivia.

Acompanhou-o como a luz.

Dormiu coberto de punhais.

Viu seu próprio sangue derramado,
seus próprios olhos esmagados,
e dormindo nos pesebres
acumulou o seu poderio.

Não se mexiam os seus cabelos
examinando os tormentos:
olhava para além do ar
para a sua raça debulhada.


Velou aos pés de Valdivia.


Ouviu o seu sonho carniceiro
crescer na noite sombria
como uma coluna implacável.

Adivinhou esses sonhos.

Pôde levantar a dourada
barba do capitão adormecido,
cortar o sonho na garganta,
mas aprendeu - velando sombras -
a lei noturna do horário.


Marchou de dia acariciando
os cavalos de pele molhada
que se iam afundando em sua pátria.

Adivinhou esses cavalos.

Marchou com os deuses fechados.

Adivinhou as armaduras.

Foi testemunha das batalhas,
enquanto entrava passo a passo
no fogo da Araucania.




XI
Lautaro contra o Centauro (1554)

Atacou então Lautaro de onda em onda.

Disciplinou as sombras araucanas:
antes entrou o punhal castelhano
em pleno peito da massa vermelha.

Hoje foi semeada a guerrilha
sob todas as alas florestais,
de pedra em pedra e de vau em vau,
olhando dos copihues,
espreitando sob as rochas.

Valdivia quis voltar.

Era tarde.

Chegou Lautaro com traje de relâmpago.

Seguiu o conquistador aflito.

Abriu caminho nas úmidas brenhas
do crepúsculo austral.

Chegou Lautaro
num galope negro de cavalos.


A fadiga e a morte conduziam
a tropa de Valdivia na folhagem.


Aproximavam-se as lanças de Lautaro.

Entre os mortos e as folhas ia
como em um túnel Pedro de Valdivia.


Nas trevas chegava Lautaro.


Pensou na Extremadura pedregosa,
o dourado azeite, a cozinha,
o jasmim deixados em ultramar.


Reconheceu o uivo de Lautaro.


As ovelhas, as duras granjas,
os muros brancos, a tarde extremenha.


Sobreveio a noite de Lautaro.


Seus capitães cambaleavam ébrios
de sangue, noite e chuva para o regresso.


Palpitavam as flechas de Lautaro.


De queda em queda a capitania
ia retrocedendo dessangrada.


Já se tocava o peito de Lautaro.


Valdivia viu chegar a luz, a aurora,
talvez a vida, o mar.

Era Lautaro.




XII
O coração de Pedro de Valdivia

Levamos Valdivia para debaixo da árvore.


Era um azul de chuva, a manhã com frios
filamentos de sol desfiado.


Toda a glória, o trovão,
turbulentos jaziam
num montão de aço ferido.

A caneleira erguia a sua linguagem
num fulgor de vaga-lume molhado
em toda a sua pomposa monarquia.


Trouxemos pano e cântaro, tecidos
grossos como as tranças conjugais,
jóias como amêndoas da lua,
e os tambores que encheram
a Araucania com sua luz de couro.

Enchemos as vasilhas de doçura
e dançamos calcando os torrões
feitos da nossa própria estirpe escura.


Depois calcamos o rosto inimigo.

Depois cortamos o valente pescoço.


Que bonito foi o sangue do verdugo
repartido entre nós como romã
enquanto ainda vivo ardia.

Depois, no peito enfiamos uma lança
e o coração alado como os pássaros
entregamos à árvore araucana.

Subiu um rumor de sangue até a copa.


Então, da terra
feita de nossos corpos, nasceu o canto
da guerra, do sol, das colheitas.

Então repartimos o coração sangrento.

Eu meti os dentes naquela corola
cumprindo o rito da terra:
“Dá-me o teu frio, estrangeiro malvado.

Dá-me o teu valor de grande tigre.

Dá-me em teu sangue a tua cólera.

Dá-me a tua morte para que me siga
e leve o espanto até os teus.

Dá-me a guerra que trouxeste.

Dá-me o teu cavalo e os teus olhos.

Dá-me a treva retorcida.

Dá-me a mãe do milho.

Dá-me a pátria sem espinhos.

Dá-me a paz vencedora.

Dá-me o ar onde respira
a caneleira, senhora florida”.




XIII
A dilatada guerra

Depois, terra e oceanos, cidades,
naves e livros, conheceis a história
que desde o território rude
como uma pedra lançada
encheu de pétalas azuis
as profundezas do tempo.

Três séculos esteve lutando
a raça guerreira do carvalho,
trezentos anos a centelha
de Arauco povoou de cinzas
as cavidades imperiais.

Três séculos tombaram feridas
as camisas do capitão,
trezentos anos despovoaram
os arados e as colméias,
trezentos anos açoitaram
cada nome de invasor,
três séculos rasgaram a pele
das águias agressoras,
trezentos anos enterraram
como a boca do oceano
tetos e ossos, armaduras,
torres e títulos dourados.

Às esporas iracundas
das guitarras adornadas
chegou um galope de cavalos
e uma tormenta de cinza.

As naus voltaram ao duro
território, nasceram espigas,
cresceram olhos espanhóis
no reinado da chuva,
mas Arauco desceu as telhas,
moeu as pedras, abateu
os paredões e as vides,
as vontades e as roupas.

Vede como tombam na terra
os filhos ásperos do ódio,
Villagras, Mendozas, Reinosos,
Reyes, Morales, Alderetes,
rolaram para o fundo branco
das Américas glaciais.

E na noite do tempo augusto
caiu Imperial, caiu Santiago,
caiu Villarrica na neve,
rolou Valdivia pelo rio,
até que o reinado fluvial
do Bío-Bío se deteve
sobre os séculos do sangue
e estabeleceu a liberdade
nas areias dessangradas.




XIV
(Intermédio)
A Colônia cobre nossas terras (1)

Quando a espada descansou e os filhos
da Espanha dura, como espectros,
dos reinos e das selvas, até o trono,
montanhas de papel com uivos
enviaram ao monarca ensimesmado:
depois que na viela de Toledo
nu do Guadalquivir na esquina,
toda a história passou de mão em mão,
e pela boca dos portos andou
a mecha esfarrapada
dos conquistadores espectrais,
e os últimos mortos foram postos
dentro do ataúde, com procissões,
nas igrejas construídas com sangue,
a lei chegou ao mundo dos rios
e vejo o mercador com a sua bolsinha.


Ficou escura a extensão matutina,
roupas e teias de aranha propagaram
a escuridão, a tentação, o fogo
do diabo nas habitações.

Uma vela iluminou a vasta América
cheia de nevadas e favos de mel,
e por séculos falou ao homem em voz baixa,
tossiu trotando pelas ruazinhas,
persignou-se perseguindo centavos.

Chegou o nativo às ruas do mundo,
extenuado, levando as valas,
suspirando de amor entre as cruzes,
buscando o escondido
caminho da vida
sob a mesa da sacristia.

A cidade no esperma do cerol
fermentou, sob os panos negros,
e das raspaduras da cera
elaborou maçãs infernais.


América, a copa de acaju,
foi então um crepúsculo de chagas,
um lazareto alagado de sombras,
e no antigo espaço do frescor
cresceu a reverência do verme.

O ouro ergueu sobre as pústulas
maciças flores, heras silenciosas,
edifícios de sombra submersa.


Uma mulher coletava pus,
e o copo de substância
bebeu em honra do céu cada dia,
enquanto a fome dançava nas minas
do México dourado,
e o coração andino do Peru
chorava docemente
de frio entre os molambos.


Nas sombras do dia tenebroso
o mercador fez o seu reino
apenas iluminado pela fogueira
em que o herege, retorcido,
feito fagulhas, recebia
sua colheradazinha de Cristo.


No dia seguinte as senhoras,
ajeitando as entretelas,
relembravam o corpo enlouquecido,
atacado e devorado pelo jogo,
enquanto o aguazil examinava
a minúscula mancha do queimado,
graxa, cinza, sangue,
que os cachorros lambiam.




XV
As fazendas (2)

A terra andava entre os morgadios
de dobrão em dobrão, desconhecida,
massa de aparições e conventos,
até que toda a azul geografia
dividiu-se em fazendas e encomiendas.

Pela espaço morto andava a chaga
do mestiço e o chicote
do reinol e do negreiro.

O nativo era um espectro dessangrado
que recolhia as migalhas,
até que estas reunidas
dessem para comprar um título
pintado de letras douradas.


E no carnaval tenebroso
saía vestido de conde,
orgulhoso entre outros mendigos,
com um bastãozinho de prata.




XVI
Os novos proprietários (3)

Estancou-se assim o tempo na cisterna.

O homem dominado nas vazias
encruzilhadas, pedra do castelo,
tinta do tribunal, povoou de bocas
a cerrada cidade americana.

Quando já era a paz e a concórdia,
hospital e vice-rei, quando Arellano,
Rojas, Tapia, Castillo, Núnez, Pérez,
Rosales, López, Jorquera, Bermúdez,
os últimos soldados de Castela,
envelheceram atrás da Audiência,
tombaram.
mortos debaixo do cartapácio,
foram com os seus piolhos para a tumba
onde fiaram sonho
das adegas imperiais, quando
era a ratazana o único perigo
das terras encarniçadas,
assomou-se o biscainho com um saco,
o Errázuriz com suas alpargatas,
o Fernández Larraín a vender vedas,
o Aldunate da baeta,
o Eyzaguirre, rei das meias.


Entraram todos como povo faminto,
fugindo das pancadas, do policia.

Logo, de camiseta em camiseta,
expulsaram o conquistador
e estabeleceram a conquista
do armazém de importados.

Aí adquiriram o orgulho
comprado no mercado negro.

Apropriaram-se
das fazendas, chicotes, escravos,
catecismos, camisarias,
cepos, cortiços, bordéis,
e a tudo isto denominaram
santa cultura ocidental.




XVII
Comuneiros do Socorro (1781)

Foi Manuela Beltrán (quando rasgou os bandos
do opressor e gritou: “Morram os déspotas”)
quem derramou os novos cereais
por nossa terra.

Foi em Nova Granada, na Vila
do Socorro.
Os comuneiros
balançaram o vice-reinado
num eclipse precursor.


Uniram-se contra os estancos,
contra o sujo privilégio,
e levantaram a cartilha
das petições foreiras.

Uniram-se com armas e pedras,
milícia e mulheres, o povo, ordem e fúria, encaminhados
para Bogotá e sua linhagem.


Aí desceu o arcebispo.

“Tereis todos os vossos direitos,
em nome de Deus vos, prometo.


O povo juntou-se na praça.


O arcebispo celebrou
uma missa e um juramento.


Ele era a paz justiceira.


“Guardai as armas.
Cada um
em sua casa”, sentenciou.


Os comuneiros entregaram
as armas.
Em Bogotá
festejaram o arcebispo,
celebraram a sua traição,
seu perjúrio, na missa pérfida,
e negaram pão e direito.


Fuzilaram os caudilhos,
repartiram entre os povoados
suas cabeças recém-cortadas,
com as bênçãos do prelado
e os bailes do vice-reinado.


Primeiras, pesadas sementes
lançadas às regiões,
permaneceis, cegas estátuas,
chocando na noite hostil
a insurreição das espigas.




XVIII Tupac-Amaru (1781)

Condorcanqui Tupac-Amaru,
sábio senhor, pai justo,
viste subir a Tungasuca
a primavera desolada
dos patamares andinos
e, com ela, sal e desdita,
iniqüidades e tormentos.


Senhor Inca, pai cacique,
tudo em teus olhos se guardava
como num cofre calcinado
pelo amor e pela tristeza.

O índio te mostrou o ombro
no qual as novas mordidas
brilhavam nas cicatrizes
de outros castigos apagados,
e era um ombro e outro ombro,
todas as alturas sacudidas
pelas cascatas do soluço.


Era um soluço e outro soluço.

Até que armaste a jornada
dos povos cor de terra,
recolheste o pranto em tua taça
e endureceste as veredas.


Chegou o pai das montanhas,
a pólvora levantou caminhos,
e às aldeias humilhadas
chegou o pai da batalha.

Jogaram a manta na poeira,
uniram-se os velhos punhais,
e o búzio matinho
chamou os vínculos dispersos.

Contra a pedra sanguinária,
contra a inércia desgraçada,
contra o metal das correntes.

Porém dividiram o teu povo,
e irmão contra o irmão
mandaram, até que tombaram
as pedras da tua fortaleza.

Ataram os teus membros cansados
a quatro cavalos raivosos
e esquartejaram a luz
do amanhecer implacável.


Tupac-Amaru, sol vencido,
de tua glória desgarrada
sobe como o sol do mar
uma luz desaparecida.

As fundas aldeias de argila,
os teares sacrificados,
as úmidas casas de areia
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac é uma semente,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac se guarda no sulco,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac germina na terra.




XIX
América insurrecta (1800)

Nossa terra, vasta terra, soledades,
povoou-se de rumores, braços, bocas.

Uma calada sílaba ia ardendo,
congregando a rosa clandestina,
até as campinas trepidarem
recobertas de metais e galopes.


Foi dura a verdade como um arado.


Rompeu a terra, estabeleceu o desejo,
mergulhou suas propagandas germinais
e nasceu na secreta primavera.

Foi silenciada a sua flor, foi rechaçada
sua reunião de luz, foi combatido
o fermento coletivo, o beijo
das bandeiras escondidas,
porém surgiu derrubando as paredes,
apartando os cárceres do chão.


O povo escuro foi a sua taça,
recebeu a substância rechaçada,
propagando-a aos limites marítimos,
repisando-a em almofarizes indomáveis.

E saiu com as páginas feridas
e com a primavera do caminho.

Hora de ontem, hora do meio-dia,
hora de hoje outra vez, hora esperada
entre o minuto morto e o que nasce
na eriçada idade da mentira.


Pátria, nasceste dos lenhadores,
de filhos sem batizar, de carpinteiros,
dos que deram qual uma ave estranha
uma gota de sangue voador
e hoje duramente nascerás de novo,
lá onde o traidor e o carcereiro
te acreditam submersa para sempre.


Hoje do povo nascerás como outrora.


Hoje sairás do carvão e do orvalho.

Hoje chegarás a sacudir as portas
com mãos maltratadas, com pedaços
de alma sobrevivente, com racimos
de olhares que a morte não extinguiu,
com ferramentas agrestes
armadas entre farrapos.




XX
Bernardo O'Higgins Riquelme (1810)

O'Higgins, para celebrar-te
à meia-luz há que iluminar a sala.

À meia-luz do sul no outono
com tremor infinito de álamos.


És o Chile, entre patriarca e cavaleiro,
és um poncho de província, um menino
que ainda não sabe o seu nome,
um menino férreo e tímido na escola,
um rapazinho triste de província.

Em Santiago te sentes mal, te espiam
a roupa negra que te sobra,
e ao cruzar-te a fita, a bandeira
da pátria que nos fizeste,
tinha um cheiro de joio matutino
para o teu peito de estátua campestre.


Jovem, teu professor Inverno te acostumou à chuva
e na universidade das ruas de Londres
a névoa e a pobreza te outorgaram seus títulos
e um elegante pobre, errante incêndio
da nossa liberdade,
te deu conselhos de águia prudente
e te embarcou na história.


“Como se chama o senhor?”, riam
os “cavalheiros” de Santiago:
filho de amor, de uma noite de inverno,
a tua condição de abandonado
te construiu com argamassa agreste,
com seriedade de casa ou de madeira
trabalhada no sul, definitiva,
Tudo o tempo muda, menos o teu rosto.


És, O'Higgins, relógio invariável
com uma só hora em tua cândida esfera:
a hora do Chile, o único minuto
que permanece no horário vermelho
da dignidade combatente.

Assim o mesmo estarás entre os móveis
de goiabeira e as filhas de Santiago
ou em Rancagua rodeado de morte e pólvora.


És o mesmo sólido retrato
de quem não tem pai, só tem a pátria
de quem não tem noiva, só tem aquela
terra de flor de laranjeira
que te conquistará a artilharia.


Te vejo no Peru escrevendo cartas.

Não há desterrado igual, maior exílio.

É toda a província desterrada.


O Chile iluminou-se como um salão
quando não estavas.
Em dissipação
um rigodão de ricos substitui
a tua disciplina de soldado ascético,
e a pátria ganhada pelo teu sangue
sem ti foi governada como um baile
que o povo faminto espia de fora.


Já não podias entrar na festa
com suor, sangue e pó de Rancagua.

Não teria sido de bom-tom
para os cavalheiros capitais.

Teria contigo entrado o caminho,
um cheiro de suor de cavalos,
o cheiro da pátria na primavera.


Não podias estar neste baile.

A tua festa foi um castelo de explosões.

O teu baile desgrenhado é a contenda.


Teu fim de festa foi a sacudidela
da derrota, o porvir aziago
para Mendoza, com a pátria nos braços.


Olha agora no mapa para baixo,
para o delgado cinturão do Chile
e coloca na neve soldadinhos,
jovens pensativos na areia,
sapadores que brilham e se apagam.


Fecha os olhos, dorme, sonha um pouco,
o único sonho, o único que volta
a teu coração: uma bandeira
de três cores no sul, a chuva
caindo, o sol rural sobre a tua terra,
os disparos do povo em rebeldia
e duas ou três palavras tuas quando
fossem estritamente necessárias.

Se sonhas, o teu sonho hoje está cumprido.

Sonha-o, pelo menos, em teu túmulo.

Nada mais saibas porque, como antes,
depois das batalhas vitoriosas,
dançam os señoritos no palácio
e o mesmo rosto faminto
espia da sombra das ruas.


Porém herdamos a tua firmeza,
o teu inalterável coração calado,
a tua indestrutível posição paterna,
e tu, entre a avalancha cegadora
de hussardos do passado, entre os ágeis
uniformes azuis e dourados,
estás hoje conosco, és nosso,
pai do povo, imutável soldado.




XXI
San Martín (1810)

Andei, San Martín, tanto e de lugar em lugar,
que descartei o teu traje, tuas esporas, sabia
que algum dia, andando pelos caminhos
feitos para voltar, nos finais
de cordilheira, na pureza
da intempérie que de ti herdamos,
acabaríamos nos vendo de um dia para outro.


Custa distinguir entre os nós
de ceibo, entre raízes,
entre veredas assinalar o teu rosto,
entre as aves distinguir o teu olhar,
encontrar no ar a tua existência.


És a terra que nos deste, um ramo
de cedrón que fere com o seu aroma,
que não sabemos onde está, de onde
chega o seu odor de pátria às pradarias.

Te galopamos, San Martín, saímos
amanhecendo a percorrer o teu corpo,
respiramos hectares de tua sombra,
fazemos fogo sobre a tua estatura.


És extenso entre todos os heróis.


Outros foram de planície em planície,
de encruzilhada em torvelinho,
tu foste construído de confins
e começamos a ver a tua geografia,
tua planície final, teu território.


Enquanto amadurecido o tempo dissemina
como água eterna os torrões
do rancor, os afiados
abraços da fogueira,
mais terreno compreendes, mais sementes
de tua tranqüilidade povoam os montes,
mais extensão dás à primavera.


O homem que constrói é logo o fumo
do que construiu, ninguém renasce
de seu próprio braseiro consumido:
de sua diminuição fez estoque, caiu quando somente teve o pó.


Tu abarcaste na morte mais espaço.


Tua morte foi um silêncio de celeiro.

Passou a vida tua, e outras vidas,
portas se abriram, muros se ergueram,
e a espiga saiu para ser derramada.


San Martín, outros capitães
fulguram mais do que tu, levam bordados
seus pâmpanos de sol fosforescente,
outros ainda falam como cachoeiras,
mas não há nenhum como tu, vestido
de terra e solidão, de neve e trevo.

Te encontramos no retorno do rio,
te saudamos na forma agrária
da Tucumania florida,
e nos caminhos, a cavalo,
te cruzamos correndo e levantando
a tua vestimenta, pai poeirento.


Hoje o sol e a lua, o vento grande
maduram a tua estirpe, a tua singela
composição: a tua verdade era
verdade de terra, arenoso amassilho,
estável como o pão, lâmina fresca
de argila e cereais, pampa puro.


E assim és até hoje, lua e galope,
estação de soldados, intempérie,
por onde vamos mais uma vez guerreando,
caminhando entre vilas e planuras,
instituindo a tua verdade terrestre,
esparzindo o teu germe espaçoso,
abanando as páginas do trigo.


Assim seja, e que não nos acompanhe
a paz até que entremos
depois dos combates em teu corpo
e durma a medida que tivemos
em tua extensão de paz germinadora.




XXII
Mina (1817)

Mina, das vertentes montanhosas
chegaste como um fio de água dura.

Espanha clara, Espanha transparente
te pariu entre dores, indomável,
e tens a dureza luminosa
da água torrencial da montanha.


Longamente, nos séculos e nas terras,
sombra e fulgor em teu berço lutaram,
unhas rampantes degolavam
a claridade do povo,
e os antigos falcoeiros,
em suas ameias eclesiásticas,
espreitavam o pão, negavam
entrada ao rio dos pobres.


Mas sempre na torre impiedosa,
Espanha, existe um espaço
para o diamante rebelde e sua estirpe
de luz agonizante e renascente.


Não em vão o estandarte de Castela
tem a cor do vento comuneiro,
não em vão por teus vales de granito
corre a luz azul de Garcilaso,
não em vão em Córdoba, entre aranhas
sacerdotais, deixa Góngora
as suas bandejas de pedrarias
aljofaradas pelo gelo.


Espanha, entre as tuas garras
de cruel antigüidade, o teu povo puro
sacudiu as raízes do tormento,
sufragou as azêmolas feudais
com invencível sangue derramado,
e em ti a luz, como a sombra, é velha,
gastada em devorantes cicatrizes.

Junto à paz do pedreiro cruzada
pela respiração dos carvalhos,
junto aos mananciais estrelados
nos quais fitas e sílabas reluzem,
sobre a tua idade, como um tremor sombrio,
vive em sua escalinata um gerifalte.


Fome e dor foram a sílica
de tuas areias ancestrais
e um tumulto surdo, enredado
às raízes de teus povos,
deu à liberdade do mundo
uma eternidade de relâmpagos,
de cantos e de guerrilheiros.


As ribanceiras de Navarra
guardaram o raio recente.

Mina arrancou do precipício
o colar de seus guerrilheiros:
das aldeias invadidas,
das povoações noturnas
extraiu o fogo, alimentou
a abrasadora resistência,
atravessou fontes nevadas,
atacou em rápidas voltas,
surgiu dos desfiladeiros,
brotou das pradarias.


Foi sepultado em prisões,
e ao alto vento da serra
retornou, revolto e sonoro,
seu manancial intransigente.


À América o leva o vento
da liberdade espanhola,
e de novo atravessa bosques
e fertiliza as campinas
seu coração inesgotável.


Em nossa luta, em nossa terra
se sangraram seus cristais,
lutando pela liberdade
indivisível e desterrada.


No México ataram a água
das vertentes espanholas.

E ficou imóvel e calada
a sua transparência caudalosa.




XXIII
Miranda morre na névoa (1816)

Se entrais na Europa tarde com cartola
no jardim condecorado
por mais de um outono junto ao mármore
da fonte enquanto caem folhas
de ouro andrajoso no Império
se a porta recorta uma figura
sobre a noite de São Petersburgo
tremem os cascavéis do trenó
e alguém na soledade branca alguém
o mesmo tempo a mesma pergunta
se sais pela florida porta
da Europa um cavalheiro sombra traje
inteligência signo cordão de ouro
Liberdade Igualdade olha seu rosto
entre a artilharia que troveja
se nas ilhas a alfombra o conhece
a que recebe oceanos Passe o Senhor Já o creio
Quantas embarcações E a névoa
seguindo passo a passo a sua jornada
se nas cavidades de lojas livrarias
há alguém luva espada com um mapa
com a pasta petulante cheia
de povoações de navios de ar
se em Trinidad pela costa o fumo
de um combate e de outro o mar de novo
e outra vez a escada de Bay Street a atmosfera
que o recebe impenetrável
como um compacto interior de maçã
e outra vez esta mão patrícia este azulado
guante guerreiro na ante-sala
longos caminhos guerras e jardins
a derrota em seus lábios outro sal
outro sal outro vinagre ardente
se em Cádiz amarrado ao muro
pela grossa corrente seu pensamento o frio
horror de espada o tempo o cativeiro
se baixas a subterrâneos entre ratazanas
e a alvenaria leprosa outro ferrolho
num caixão de enforcado o velho rosto
onde morreu afogada uma palavra
uma palavra nosso nome a terra
aonde queriam ir seus passos
a liberdade para seu fogo errante
o descem com cordéis à molhada
terra inimiga ninguém saúda faz frio
faz frio de tumba na Europa.




XXIV
José Miguel Carrera (1810)


EPISÓDIO Disseste Liberdade antes de ninguém,
quando o sussurro ia de pedra em pedra,
escondido nos pátios, humilhado.


Disseste Liberdade antes de ninguém.

Libertaste o filho do escravo.

Iam como as sombras mercadores
vendendo o sangue de mares estranhos.

Libertaste o filho do escravo.


Fundaste a primeira imprensa.

Chegou a letra ao povo obscurecido,
a notícia secreta abriu os lábios.

Fundaste a primeira imprensa.

Implantaste a escola no convento.


Retrocedeu a gorda teia de aranha
e o rincão dos dízimos sufocantes.

Implantaste a escola no convento.



CORO
Conheça-se a tua condição altiva,
senhor cintilante e aguerrido.

Conheça-se o que tombou brilhando
de tua velocidade sobre a pátria.

Vôo bravio, coração de púrpura.


Conheçam-se as tuas chaves desbeiçadas
abrindo os ferrolhos da noite.

Ginete verde, raio tempestuoso.


Conheça-se o teu amor de mãos cheias,
a tua lâmpada de luz vertiginosa.

Racimo de uma cepa transbordante.

Conheça-se o teu esplendor instantâneo,
o teu errante coração, o teu fogo diurno.


Ferro iracundo, pétala patrícia.

Conheça-se o teu raio de ameaça
destroçando as cúpulas covardes.

Torre de tempestade, ramo de acácia.

Conheça-se a tua espada vigilante,
a tua fundação de força e meteoro.

Conheça-se a tua rápida grandeza.

Conheça-se a tua indomável compostura.



EPISÓDIO Vai pelos mares, entre idiomas,
vestidos, aves estrangeiras,
traz naves libertadoras,
escreve fogo, ordena nuvens,
desentranha sol e soldados,
cruza a névoa em Baltimore
consumindo-se de porta em porta,
créditos e homens o desbordam,
todas as ondas o acompanham.

Junto ao mar de Montevidéu,
em sua casa desterrada,
abre uma oficina, imprime balas.

Rumo ao Chile vive a flecha
de sua direção insurgente,
arde a fúria cristalina
que o conduz, e endereça
a cavalgada do resgate
montado nas crinas ciclônicas
de sua despenhada agonia.

Seus irmãos aniquilados
gritam para ele do paredão
da vingança.
Sangue seu
tinge como labareda
nos adobes de Mendoza
seu trágico trono vazio.

Sacode a paz planetária
do pampa como um circuito
de vaga-lumes infernais.

Açoita as cidadelas
com o uivo das tribos.

Enfeixa as cabeças cativas
no furacão das lanças.

Seu poncho desatado
relampeja na fumarada
e na morte dos cavalos.


Jovem Pueyrredón, não relates
o desolado calafrio
de seu final, não me atormentes
com a noite do abandono,
quando o levam a Mendoza
mostrando o marfim de sua máscara
a solidão de sua agonia.



CORO Pátria, preserva-o em teu manto,
acolhe este amor peregrino:
não o deixes rolar para o fundo
de sua tenebrosa desgraça:
ergue a teu rosto este fulgor,
esta lâmpada inolvidável,
prega de novo esta renda frenética,
chama esta pálpebra estrelada,
guarda o novelo deste sangue
para as tuas teias orgulhosas.

Pátria, recolhe esta carreira,
a luz, a gota malferida,
este cristal agonizante,
este vulcânico anel.

Pátria, galopa para defendê-lo,
galopa, corre, corre, corre.



ÊXODO Levam-no até os muros de Mendoza,
à árvore cruel, à vertente
de sangue inaugurado, ao solitário
tormento, ao final frio da estrela.

Vai pelos caminhos inconclusos,
sarça e taipais desdentados,
álamos que lhe atiram ouro morto,
rodeado por seu orgulho inútil
como por uma túnica andrajosa
a que o pó da morte chega.

Pensa em sua dessangrada dinastia,
na luta inicial sobre os carvalhos
desgarradores da infância,
a escola castelhana e o escudo
rubro e viril da milícia hispânica,
sua tribo assassinada, a doçura
do matrimônio, entre as flores de laranjeira,
o desterro, as lutas pelo mundo,
O'Higgins enigma embandeirado,
Javiera sem saber nos remotos
jardins de Santiago.

Mendoza insulta sua linhagem negra,
ataca a sua vencida investidura,
e entre as pedras lançadas sobe
para a morte.


Nunca um homem teve
um final mais exato.
Das ásperas
investidas, entre vento e animais,
até a azinhaga onde sangraram
todos os de seu sangue.

Cada degrau
do cadafalso o ajusta ao seu destino.

Já ninguém pode continuar a cólera.

A vingança, o amor fecham as portas.

Os caminhos amarraram o errante.

E quando disparam, e através
de seu pano de príncipe do povo
assoma sangue, é sangue que conhece
a tetra infame, sangue que chegou
aonde tinha de chegar, ao chão
de lagares sedentos que esperavam
as uvas derrotadas de sua morte.

Indagou pela neve da pátria.

Tudo era névoa nos eriçados altos.


Viu os fuzis cujo ferro
fez nascer o seu amor desmoronado,
sentiu-se sem raízes, passageiro
do fumo, na batalha solitária,
e caiu envolto em pó e sangue
como em dois braços de bandeira.



CORO Hussardo infortunado, jóia ardente,
sarça acesa na pátria nevada.

Chorai por ele, chorai até que molhem,
mulheres, as vossas lágrimas a terra,
a terra que ele amou, a sua idolatria.

Chorai, guerreiros ásperos do Chile,
acostumados à montanha e à onda,
este vazio é qual uma nevada,
esta morte é o mar que nos atinge.

Não pergunteis por quê, ninguém diria
a verdade destroçada pela pólvora.

Não pergunteis quem foi, ninguém arrebata
o crescimento da primavera,
ninguém matou a rosa do irmão.

Guardemos cólera, dor e lágrimas,
enchamos o vazio desolado
e que recorde a fogueira na noite
a luz das estrelas falecidas.

Irmã, guarda o teu rancor sagrado.

A vitória do povo necessita
a voz de tua ternura triturada.

Estendei mantos em sua ausência
para que possa - frio e enterrado -
com o seu silêncio sustentar a pátria.


Mais de uma vida foi a sua vida.

Buscou a integridade como uma chama.

A morte foi com ele até deixá-lo
para sempre completo e consumido.



ANTÍSTROFE Guarde o loureiro doloroso a sua extrema substância de inverno.

A sua coroa de espinhos levemos areia radiante,
fios de estirpe araucana resguardem a lua mortuária,
folhas de boldo fragrante resolvam a paz de sua tumba,
neve nutrida nas águas imensas e escuras do Chile,
plantas que amou, melissas em xícaras de argila silvestre,
ásperas plantas amadas pelo amarelo centauro,
negros racimos transbordantes de elétrico outono na terra,
olhos sombrios que arderam sob os seus beijos terrestres.

Levante a pátria as suas aves, suas asas injustas, suas pálpebras rubras,
voe até o hussardo ferido a voz do queltehue na água,
sangre a loica a sua mancha de aroma escarlate rendendo tributo
àquele cujo vôo estendera a noite nupcial da pátria
e o condor suspenso na altura imutável coroe com plumas sangrentas
o peito adormecido, a fogueira que jaz nos degraus da cordilheira,
parta o soldado a rosa iracunda esmagada no muro esmagado,
pule o camponês ao cavalo de negra montaria e focinho de espuma,
volte ao escravo do campo a sua paz de raízes, o seu escudo enlutado,
levante o mecânico a sua pálida torre tecida de estanho noturno:
o povo que nasce no berço torcido de vimes e mãos de herói,
o povo que sobe de negros adobes de minas e bocas sulfúricas,
o povo levante o martírio e a urna e envolva a lembrança
com a sua ferroviária grandeza e a sua eterna balança de pedras e feridas
até que a terra fragrante decrete copihues molhados e livros abertos,
ao menino invencível, à lufada insigne, ao terno temível e acerbo soldado.

E guarde seu nome o duro domínio do povo em sua luta,
como o nome da nave resiste ao combate marinho:
a pátria em sua proa o inscreva e o beije o relâmpago
porque assim foi a sua livre e delgada e ardente matéria.




XXV
Manuel Rodríguez

CUECA Senhora, dizem que onde,
minha mãe dizem, disseram,
a água e o vento dizem
que viram o guerrilheiro.



Vida
Pode ser um bispo,
pode e não pode,
pode ser só o vento
sobre a neve:
sobre a neve, sim,
mãe, não olhes,
que chega a galope
Manuel Rodríguez.

Já vem o guerrilheiro
pelo ribeiro.



CUECA Saindo de Melipilla,
correndo por Talagante,
cruzando por San Fernando,
amanhecendo em Pomaire.



Paixão
Passando por Rancagua,
por San Rosendo,
por Cauquenes, por Chena,
por Nacimiento:
por Nacimiento, sim,
desde Chiñigüe,
por toda parte vem
Manuel Rodríguez.

Este cravo lhe damos,
com ele vamos.


CUECA Que se apague a guitarra,
que a pátria está de luto.

Nossa terra fica escura.

Mataram o guerrilheiro.



E Morte
Em Til-Til foi morto
por assassinos,
suas costas sangram
pelo caminho:
pelo caminho, sim.


Quem o diria,
ele que era o nosso sangue,
nossa alegria.


A terra está chorando.

Vamos nos calando.




XXVI
Artigas

(I)
Artigas crescia entre os matagais e foi tempestuosa
a sua passagem porque nas pradarias crescendo o galope de pedra ou sino
chegou a sacudir a inclemência do ermo como repetida centelha,
chegou a acumular a cor celestial estendendo os cascos sonoros
até que nasceu uma bandeira empapada no uruguaiano rocio.



(II)
Uruguai, Uruguai, uruguaiam os cantos do rio uruguaio,
as aves tagarelas, a rola de voz malferida, a torre do trovão uruguaio
proclamam o grito celeste que diz Uruguai no vento
e se a cascata redobra e repete o galope dos cavalheiros amargos
que pela fronteira recolhem os últimos grãos de sua vitoriosa derrota,
estende-se o uníssono nome de pássaro puro,
a luz de violino que batiza a pátria violenta.



(III)
Ó Artigas, soldado do campo crescente, quando para toda a tropa bastava
o teu poncho estrelado de constelações que conhecias,
até que o sangue corrompesse e redimisse a aurora, e acordassem teus homens
marchando vergados pelos poeirentos entrançados do dia.

Ó pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada!


(IV)
Passaram os dias de um século e seguiram as horas atrás de teu exílio:
atrás da selva enredada por mil teias de aranha de ferro:
atrás do silêncio no qual só tombavam os frutos apodrecidos sobre os pântanos,
as folhas, a chuva desatada, a música do urutau,
os passos descalços dos paraguaios entrando e saindo no sol da sombra,
a trança do chicote, os cepos, os corpos roídos de escaravelhos:
um grave ferrolho se impôs apartando a cor da selva
e o arroxeado crepúsculo fechava com os seus cinturões
os olhos de Artigas que buscam em sua desventura a luz uruguaia.



(V)
“Amargo trabalha o exílio”, escreveu esse irmão de minha alma
e assim o entretanto da América caiu como pálpebra escura
sobre o olhar de Artigas, ginete do calafrio,
opresso no imóvel olhar de vidro de um déspota num reino vazio.



(VI)
A América tua tremia com penitenciais dores:
Oribes, Alveares, Carreras, nus, corriam até o [sacrifício:
morriam, nasciam, caíam: os olhos do cego matavam: a voz dos mudos
falava.
Os mortos, por fim, encontraram partido,
por fim conheceram o seu bando patrício na morte.

E todos aqueles sangrentos souberam que pertenciam
à mesma fileira: a terra não tem adversários.



(VII)
Uruguai é palavra de pássaro, o idioma da água,
é sílaba de uma cascata, é tormento de cristalaria,
Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante,
é um beijo fluvial dos bosques na máscara azul do Atlântico.

Uruguai é a roupa estendida no ouro dum dia de vento,
é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.



(VIII)
E se Pablo Neruda, o cronista de todas as coisas, te devia,
[Uruguai, este canto,
este canto, este conto, esta migalha de espiga, este Artigas,
não faltei a meus deveres nem aceitei os escrúpulos do intransigente:
esperei uma hora quieta, espreitei uma hora inquieta,
[recolhi os herbários do rio,
afundei a minha cabeça em tua areia e na prata dos peixes-reis,
na clara amizade de teus filhos, em teus desarrumados mercados
me purifiquei, até sentir-me devedor de teu olor e teu amor.

E talvez esteja escrito o rumor que teu amor e teu olor me conferiram
nestas palavras obscuras, que deixo em memória de teu capitão luminoso.




XXVII
Guayaquil (1822)

Quando entrou San Martín, algo noturno
de caminho impalpável, sombra, couro,
entrou na sala.


Bolívar esperava.

Bolívar farejou o que chegava.

Era aéreo, rápido, metálico,
todo antecipação, ciência do vôo,
seu contido ser tremulava
ali, no quarto imobilizado
na escuridão da história.


Vinha das alturas indizíveis
da atmosfera constelada,
ia seu exército em frente
quebrando noite e distância,
capitão de um corpo invisível,
da neve que o seguia.

A lâmpada tremeu, a porta
atrás de San Martin manteve
a noite, seus ladridos, seu tumor
tíbio de desembocadura.


As palavras abriram uma trilha
que neles mesmos ia e vinha.

Aqueles dois corpos se falavam,
se rechaçavam, se escondiam,
se incomunicavam, se fugiam.


San Martín trazia do sul
um saco de números cinzentos,
a solidão das montarias
infatigáveis, os cavalos
batendo terras, agregando-se
a sua fortaleza arenária.

Entraram com ele os ásperos
arrieiros do Chile, um lento
exército ferruginoso,
o espaço preparatório,
as bandeiras com apelidos
envelhecidos no pampa.


O quanto falaram caiu de corpo a corpo
no silêncio, no fundo interstício.

Não eram palavras, era a profunda
emanação das terras adversas,
da pedra humana que toca
outro metal inacessível.

As palavras voltaram a seus lugares.


Cada um, diante de seus olhos
via as suas bandeiras.

Um, o tempo com flores deslumbrantes,
outro, o roído passado,
os farrapos da tropa.


Junto a Bolívar uma mão branca
o esperava, o despedia,
acumulava o seu acicate ardente,
estendia o linho no tálamo.

San Martín era fiel a seus prados.

Seu sonho era um galope,
uma rede de correias e perigos.

Sua liberdade era um pampa unânime.

Uma ordem cereal foi a sua vitória.


Bolívar construía um sonho,
uma ignorada dimensão, um fogo
de velocidade duradoura,
tão incomunicável que o fazia
prisioneiro, entregue à sua substância.


Caíram as palavras e o silêncio.


Abriu-se outra vez a porta, outra vez toda
a noite americana, o largo rio
de muitos lábios palpitou um segundo.


San Martín regressou daquela noite
às soledades e ao trigo.

Bolívar continuou só.




XXVIII
Sucre

Sucre nas altas terras desbordando
o amarelo perfil dos montes,
Hidalgo tomba, Morelos recolhe
o ruído, o tremor de um sino
propagado na terra e no sangue.


Páez percorre os caminhos repartindo o ar conquistado,
cai o orvalho em Cundinamarca
sobre a fraternidade das feridas,
o povo insurge inquieto
desde a latitude à secreta
célula, emerge um mundo
de despedidas e galopes,
nasce a cada minuto uma bandeira
qual uma flor antecipada:
bandeiras feitas de lenços
sangrentos e de livros livres,
bandeiras arrastadas pelo pó
dos caminhos, destroçadas
pela cavalaria, abertas
por estampidos e relâmpagos.



As bandeiras
Nossas bandeiras daquele tempo
fragrante, bordadas apenas,
nascidas apenas, secretas
como um profundo amor, de súbito
encarniçadas ao vento
azul da pólvora amada.


América, extenso berço, espaço
de estrela, romã madura,
de súbito encheu-se de abelhas
a tua geografia, de sussurros
conduzidos pelos adobes
e pelas pedras, de mão em mão,
encheram-se de roupas as ruas
como colméia atordoada.


Na noite dos disparos
v baile brilhava nos olhos,
subia como uma laranja a flor de laranjeira pelas muralhas,
beijos de adeus, beijos de farinha,
o amor amarrava beijos,
e a guerra cantava com
a sua guitarra pelos caminhos.




XXIX
Castro Alves do Brasil

Castro Alves do Brasil, para quem cantaste?
Para a flor cantaste? Para a água
cuja formosura diz palavras às pedras?
Cantaste para os olhos, para o perfil recortado
da que então amaste? Para a primavera?

Sim, mas aquelas pétalas não tinham orvalho,
aquelas águas negras não tinham palavras,
aqueles olhos eram os que viram a morte,
ardiam ainda os martírios por detrás do amor,
a primavera estava salpicada de sangue.


- Cantei para os escravos, eles sobre os navios,
como um cacho escuro da árvore da ira
viajaram, e no porto se dessangrou o navio
deixando-nos o peso de um sangue roubado.


- Cantei naqueles dias contra o inferno,
contra as afiadas línguas da cobiça,
contra o ouro empapado de tormento,
contra a mão que empunhava o chicote,
contra os dirigentes de trevas.


- Cada rosa tinha um morto nas raízes.

A luz a noite, o céu, cobriam-se de pranto,
os olhos apartavam-se das mãos feridas
e era a minha voz a única que enchia o silêncio.


- Eu quis que do homem nos salvássemos,
eu cria que a rota passasse pelo homem,
e que daí tinha de sair o destino.

Cantei para aqueles que não tinham voz.

Minha voz bateu em portas até então fechadas
para que, combatendo, a liberdade entrasse.


Castro Alves do Brasil, hoje que o teu livro puro
torna a nascer para a terra livre,
deixa-me a mim, poeta da nossa América,
coroar a tua cabeça com os louros do povo.

Tua voz uniu-se à eterna e alta voz dos homens.

Cantaste bem.
Cantaste como se deve cantar.




XXX
Toussaint L'Ouverture

Haiti, de sua doçura emaranhada,
extrai pétalas patéticas,
retitude de jardins, edifícios
de grandeza, arrulha
o mar como um avô escuro
sua velha dignidade de pele e espaço.


Toussaint L'Ouverture ata
a vegetal soberania,
a majestade acorrentada,
a surda voz dos tambores,
e ataca, cerra o passo, sobe,
ordena, expulsa, desafia
como um monarca natural,
até que cai na rede tenebrosa
e o levam pelos mares
arrastado e atropelado
como o regresso de sua raça,
atirando à morte secreta
das sentinas e dos sótãos.


Mas na ilha ardem as penhas,
falam os ramos escondidos,
se transmitem as esperanças,
surgem os muros do baluarte.

A liberdade é o bosque teu,
escuro irmão, preserva
a tua memória de sofrimentos
e que os heróis passados
custodiem a tua mágica espuma.




XXXI
Morazán (1842)

Alta noite e Morazán vela.

É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.

Fita central, América angustura que os golpes azuis de dois mares
foram fazendo, levantando no ar
cordilheiras e plumas de esmeralda:
território, unidade, delgada deusa
nascida no combate da espuma.


Desmoronam-se filhos e vermes,
estendem-se sobre ti as alimárias
e uma tenaz te arrebata o sonho
e um punhal com teu sangue te salpica
enquanto se despedaça o teu estandarte.


Alta é a noite e Morazán vela,

Já vem o tigre brandindo um machado.

Vêm para devorar-te as entranhas.

Vêm para dividir as estrelas.

Vêm,
pequena América olorosa,
para cravar-te na cruz, para desolar-te,
para derrubar o metal de tua bandeira.


Alta é a noite e Morazán vela.


Invasores encheram a tua casa.

E te partiram como fruta morta,
e outros carimbaram em tuas costas
os dentes de uma estirpe sanguinária,
e outros te saquearam nos portos
carregando sangue sobre as tuas dores.


É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.


Irmãos, amanhece.
(E Morazán vela.
)



XXXII
Viagem pela noite de Juárez

Juárez, se recolhêssemos
o íntimo estrato, a matéria
da profundidade, se cavando tocássemos
o profundo metal das repúblicas,
esta unidade seria a tua estrutura,
a tua impassível bondade, a tua mão teimosa.


Quem olha a tua sobrecasaca,
a tua parca cerimônia, o teu silêncio,
o teu rosto feito de tetra americana,
se não é daqui, se não nasceu nestas
planícies, na argila montanhosa
de nossas soledades, não entende.

Te falarão divisando uma pedreira.

Te passarão como se passa um rio.

Darão a mão a uma árvore, a um sarmento,
a um sombrio caminho da terra.


Para nós és pão e pedra,
forno e produto da estirpe escura.

Teu rosto foi nascido em nosso barro.

Tua majestade é a minha região nevada,
teus olhos a enterrada olaria.


Outros terão o átomo e a gota
do elétrico fulgor, de brasa inquieta:
tu és muro feito de nosso sangue,
tua retidão impenetrável
sai de nossa dura geologia.


Nada tens para dizer ao ar,
ao vento de ouro que vem de longe,
que o diga a terra ensimesmada,
a cal, o mineral, a levedura.


Visitei eu os muros de Querétaro,
toquei cada penhasco na colina,
a distância, a cicatriz e a cratera,
o cacto de ramagens espinhosas:
ninguém persiste ali, foi o fantasma,
ninguém ficou dormido na dureza:
só existem a luz e os aguilhões
do matagal, e uma presença pura:
Juárez, a tua paz de noite justiceira,
definitiva, férrea e estrelada.




XXXIII
O vento sobre Lincoln

À s vezes o vento do sul resvala
sobre a sepultura de Lincoln trazendo
vozes e brisas de cidades e árvores
nada se passa em sua tumba as letras não se mexem
o mármore se suaviza com a lentidão de séculos
o velho cavaleiro já não vive
não existe o buraco de sua antiga camisa
se mesclaram as fibras do tempo e o pó humano
que a vida tão realizada diz uma tremelicante
senhora da Virgínia uma escola que canta
mais de uma escola canta pensando em outras coisas
mas o vento do sul a emanação de terras
de caminhos às vezes se detém na tumba
sua transparência é um periódico moderno
chegam surdos rancores lamentos como aqueles
o sonho imóvel vencedor jazia
sob os pés cheios de barro que passaram
cantando e arrastando fadiga e sangue
pois bem nesta manhã volta ao mármore o ódio
0 ódio do sul branco pelo velho adormecido
nas igrejas os negros estão sozinhos com Deus
com Deus conforme acreditam nas praças
nos trens o mundo tem certos letreiros
que dividem o céu a água o ar
que vida mais perfeita diz a delicada
senhorita e na Geórgia matam a pau
todas as semanas um jovem negro
enquanto Paul Robeson canta como a terra
como o começo do mar e da vida
canta sobre a crueldade e os anúncios
de coca-cola canta para os irmãos
de mundo a mundo entre os castigos
canta para os novos filhos para
que o homem ouça e suste o seu chicote
a mão cruel a mão que Lincoln abatera
a mão que ressurge como branca víbora
o vento passa o vento sobre a tumba traz
conversações restos de juramentos algo
que chora sobre o mármore como chuva fina
de antigas e esquecidas dores insepultas
o Klan matou um bárbaro perseguindo-o
enforcando o pobre negro a uivar queimando-o
vivo e esburacado pelos tiros
debaixo dos capuzes os prósperos rotarianos
não sabem assim crêem que são só verdugos
covardes carniceiros detritos do dinheiro
com a cruz de Caim regressam
para lavar as mãos e rezar no domingo
telefonam ao Senado contando suas façanhas
disto nada fica sabendo o morto de Illinois
porque o vento de hoje fala uma linguagem
de escravidão de fúrias de cadeias
e através das lousas o homem já não existe
é um esmiuçado polvilho de vitória
de vitória arrasada depois do triunfo morto
não só a camisa do homem se gastou
não só o buraco da morte nos mata
mas também a primavera repetida o transcurso
que rói o vencedor com o seu canto covarde
morre o valor de ontem derramam-se de novo
as furiosas bandeiras do malvado
alguém canta junto ao monumento é um coro
de meninas de escola vozes ácidas
que sobem sem tocar o pó externo
que passam sem descer ao lenhador adormecido
à vitória morta sob as reverências
enquanto burlão e viajeiro sorri o vento sul.




XXXIV
Martí (1890)

Cuba, flor espumosa, efervescente
açucena escarlate, jasmineiro,
custa-se a encontrar sob a rede florida
o teu sombrio carvão martirizado,
a antiga ruga deixada pela morte,
a cicatriz coberta de espuma.

Porém dentro de ti como clara
geometria de neve germinada,
onde se abrem tuas últimas cortiças,
jaz Martí como pura amêndoa.


Está no fundo circular da aragem,
está no centro azul do território,
e reluz como uma gota d'água
sua adormecida pureza de semente.


É de cristal a noite que o cobre.


Pranto e dor, de súbito, cruéis gotas
atravessam a terra até o recinto
da infinita claridade adormecida.

O povo às vezes baixa suas raízes
através da noite até tocar
a água quieta em seu pranto oculto.

À vezes cruza o rancor iracundo
pisoteando semeadas superfícies
e um morto cai na taça do povo.


Às vezes volta o açoite enterrado
a silvar na brisa da cúpula
e uma gota de sangue qual uma pétala
cai no chão e mergulha no silêncio.

Tudo chega ao fulgor imaculado.

Os tremores minúsculos batem
às portas do cristal oculto.


Toda lágrima toca a sua corrente.


Todo fogo estremece a sua estrutura.

E assim da jacente fortaleza,
do oculto germe caudaloso
saem os combatentes da ilha.


Chegam de um manancial determinado.


Nascem de uma vertente cristalina.




XXXV
Balmaceda de Chile (1891)

Mr.
North chegou de Londres.


É um magnata no nitrato.

Antes trabalhou no pampa,
de jornaleiro, algum tempo,
mas despediu-se e se foi.

Volta agora, envolto em libras.

Traz dois cavalinhos árabes
e uma pequena locomotiva
toda de ouro.
São presentes
para o presidente, um tal
de José Manuel Balmaceda.


“You are very clever, Mr.
North.


Rubén Darío entra por esta casa,
por esta presidência como quer.

Uma garrafa de conhaque o espeta.

O jovem Minotauro envolto em névoa
de rios, transpassado de sons,
sobe a grande escada que será
tão difícil de subir para Mr.
North.

O presidente regressou há pouco
do desolado norte salitroso,
ali dizendo: “Esta terra, esta riqueza
será do Chile, esta matéria branca
converterei em escolas, em estradas,
em pão para o meu povo”.

Agora entre papéis, no seu palácio,
sua fina forma, seu intenso olhar,
olha para os desertos do salitre.

Seu nobre rosto não sorri.

A cabeça, de pálida postura,
tem a antiga qualidade de um morto,
de um velho antepassado da pátria.


Todo o seu ser é um exame solene.


Algo desassossega, como rajada fria,
a sua paz, o seu movimento pensativo.


Rechaçou os cavalos, a maquininha de ouro
de Mr.
North.
Remeteu-os sem vê-los
para o dono, o poderoso gringo.

Apenas acenou com a mão desdenhosa.

“Agora, Mr.
North, não posso
entregar-lhe estas concessões,
não posso amarrar a minha pátria
aos mistérios da City.


Mr.
North instala-se no Club.

Cem uísques vão para a sua mesa,
cem jantares para advogados,
para o Parlamento, champanha
para os tradicionalistas.

Correm agentes para o norte,
os fios vão e vêm e voltam.

As suaves libras esterlinas
tecem como aranhas douradas
uma teia inglesa, legítima
para o meu povo, uma roupa, sob medida
de sangue, pólvora e miséria.


“You are very clever, Mr.
North.


A sombra sitia Balmaceda.

Ao chegar o dia, o insultam
e o escarnecem os aristocratas,
ladram-lhe no Parlamento,
o fustigam e caluniam.

Produzem a batalha, e ganharam.

Mas não basta: é preciso torcer
a história.
As boas vinhas
se “sacrificam” e o álcool
enche a noite miserável.

Os elegantes mocinhos
marcam as portas e uma horda
assalta as casas, arremessa
os pianos dos balcões.

Aristocrático piquenique
com cadáveres no canal
e champanha francês no Club.


“You are very clever, Mr.
North.


A embaixada argentina abriu
as suas portas ao presidente.


Nessa tarde escreve com a mesma
segurança de mão fina,
a sombra penetra seus grandes olhos
como escura mariposa,
de profundidade fatigada.


E a magnitude de seu rosto
sai do mundo solitário,
da pequena moradia,
ilumina a noite escura.

Escreve seu nítido nome,
as letras de longo perfil
de sua doutrina traída.

Tem o revólver na mão.


Olha através da janela
um derradeiro trecho da pátria,
pensando em todo o longo corpo
do Chile, sombreado
como uma página noturna.

Viaja e sem ver cruzam seus olhos,
como nas vidraças de um trem,
rápidos campos, casarios,
torres, ribeiras inundadas,
pobreza, dores, farrapos.

Ele sonhou um sonho preciso,
quis trocar a desgarrada
paisagem, o corpo consumido
do povo, quis defendê-lo.


Já é tarde, escuta disparos
isolados, os gritos vitoriosos,
o selvagem ataque, os uivos
da “aristocracia”, escuta
o último rumor, o grã silêncio,
e, com ele, recostado, entra na morte.




XXXVI
A Emiliano Zapata com música de Tatanacho

Quando cresceram as dores
na terra, e os espinheiros desolados
foram a herança dos camponeses,
e, como outrora, rapaces
barbas cerimoniais, e os açoites,
então, flor e fogo galopado.
.
.


Borrachita me voy
hacia la capital

empinou-se na alba transitória
a terra sacudida de facas,
o peão de suas amargas tocas
caiu qual uma espiga debulhada
sobre a solidão vertiginosa.


a pedirle al patrón
que me mandó llamar

Zapata então foi terra e aurora.

Em todo horizonte aparecia
a multidão de sua semente armada.

Num ataque de águas e fronteiras
o férreo manancial de Coahuila,
as estelares pedras de Sonora:
tudo veio ao seu passo adiantado,
à sua agrária tormenta de ferraduras.


que si va del rancho
muy pronto volverá

Reparte o pão, a terra:
te acompanho.


Renuncio a minhas pálpebras celestes.

Eu, Zapata, me vou com o rocio
das cavalarias matutinas,
num disparo desde as figueiras-do-inferno
até as casas de paredes róseas.


.
.
.
cintitas pa tu pelo
no llores por tu Pancho .
.
.


A lua dorme sobre as montarias.

A morte amontoada e repartida
jaz com os soldados de Zapata.

O sonho esconde sob os baluartes
da pesada noite o seu destino,
o seu incubador lençol sombrio.

A fogueira agrupa o sopro desvelado:
graxa, suor e pólvora noturna.


.
.
.
Borrachita rne voy
para olvidarte .
.
.


Pedimos pátria para o humilhado.

Tua faca divide o patrimônio
e tiros e corcéis amedrontam
os castigos, a barba do verdugo.

A terra se reparte como um rifle.

Não esperes, camponês, empoeirado,
depoís de teu suor a luz completa
e o céu parcelado em teus joelhos.

Levanta-te e galopa com Zapata.


.
.
.
Yo la quise traer
dijo yue no.
.
.


México, hostil agricultura, amada
terra entre os obscuros repartida:
das espadas do milho saíram
ao sol os teus centuriões suarentos.


Da neve do sul venho contar-te.


Deixa-me galopar em teu destino
e encher-me de pólvoras e arados.


.
.
.
Que si habrá de llorar
pa qué volver.
.
.




XXXVII
Sandino (1926)

Foi quando em terra nossa
Enterraram-se
as cruzes, gastaram-se
inválidas, profissionais.

Chegou o dólar de dentes agressivos
mordendo território,
na garganta pastoril da América.

Agarrou o Panamá com fauces duras,
enfiou na terra fresca os seus caninos,
chapinhou na lama, uísque, sangue,
e jurou um presidente de sobrecasaca:
“Seja conosco o suborno
de cada dia”.

Logo, chegou o aço,
e o canal dividiu as residências,
aqui os amos, ali a servidão.


Correram para a Nicarágua.


Desceram vestidos de branco,
disparando dólares e tiros.

Surgiu no entanto um capitão
que disse: “Não, aqui não pões
as tuas concessões, tua garrafa”.

Prometeram-lhe um retrato
de presidente, de luvas,
faixa atravessada e sapatinhos
de verniz recém-comprados.

Sandino dcscalçou as botas,
afundou-se nos trêmulos pântanos,
pôs a faixa molhada
da liberdade na selva,
e, tiro a tiro, respondeu
aos “civilizadores”.


A fúria norte-americana
foi indizível: documentados
embaixadores convenceram
o mundo de que seu amor era
a Nicarágua, que algum dia
a ordem haveria de chegar
a suas entranhas sonolentas.


Sandino enforcou os intrusos.


Os heróis de Wall Street
foram comidos pelo lamaçal,
um relâmpago os matava,
mais de um sabre os seguia,
uma corda os despertava
como serpente na noite,
e pendurados de uma árvore eram
carreados lentamente
por coleópteros azuis
e trepadeiras devoradoras.


Sandino, com os seus guerrilheiros,
na Praça do Povo, em todas
as partes estava Sandino,
matando norte-americanos.

justiçando invasores.

E quando veio a aviação,
a ofensiva dos exércitos
blindados, a incisão
de massacrantes poderios,
Sandino estava no silêncio,
como um espectro da selva,
era uma árvore que se enroscava
ou uma tartaruga que dormia
ou um rio deslizando.

E árvore, tartaruga, torrente,
foram a morte vingadora,
foram sistemas da selva,
mortais sintomas de aranha.


(Em 1948
um guerrilheiro
da Grécia, coluna de Esparta,
foi a urna da luz atacada
pelos mercenários do dólar.

Dos montes lançou fogo
sobre os polvos de Chicago,
e como Sandino, o valente
da Nicarágua, foi chamado
“bandoleiro das montanhas”.
)

Mas, quando fogo, sangue
e dólar não destruíram
a torre altiva de Sandino,
os guerreiros de Wall Street
fizeram a paz, convidaram
para celebrá-la o guerrilheiro,
e um traidor recém-alugado
disparou-lhe a carabina.


Seu nome é Somoza.
Até hoje
está reinando na Nicarágua:
os trinta dólares cresceram
e aumentaram em sua barriga.


Esta é a história de Sandino,
capitão da Nicarágua,
encarnação desgarradora
de nossa arena traída, dividida e acometida,
martirizada e saqueada.




XXXVIII
(1)
Até Recabarren

A terra, o metal da terra, a compacta
formosura, a paz ferruginosa
que será lança, lâmpada ou anel,
matéria pura, ação
do tempo, saúde
da terra desnuda.


O mineral foi como estrela
afundada e enterrada.

A golpes de planeta, grama por grama,
foi escondida a luz.

Áspera capa, argila, areia
cobriram o teu hemisfério.

Mas amei o teu sal, a tua superfície.

Tua goteira, tua pálpebra, tua estátua.


No quilate de pureza dura
cantou minha mão: na écloga
nupcial da esmeralda fui citado,
e no côncavo do ferro pus o meu rosto um dia
até emanar abismo, resistência e aumento.


Mas eu não sabia nada.


O ferro, o cobre, os sais o sabiam.


Cada pétala de ouro foi arrancada com sangue.

Cada metal tem um soldado.



(2)
O cobre
Eu cheguei ao cobre, a Chuquicamata.

Era tarde nas cordilheiras.

Era o ar como taça
fria, de seca transparência.

Antes vivi em muitos navios,
porém na noite do deserto
a imensa mina resplandecia
como um navio cegador
com o orvalho deslumbrante
daquelas alturas noturnas.


Fechei os olhos: sonbo e sombra
estendiam as suas grossas plumas
sobre mim como aves gigantes.

Apenas de queda em queda
enquanto dançava o automóvel,
a oblíqua estrela, o penetrante
planeta, qual uma lança,
me arrojavam um raio gelado
de fogo frio, de ameaça.



(3)
A noite em Chuquicamata

Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.

Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.

Era verde o sangue destas terras.


Alta até os planetas empapados
era a magnitude noturna e verde.

Gota a gota um leite de turquesa,
uma aurora de pedra,
foi construído pelo homem
e ardia na imensidade,
na estrelada terra aberta
de toda a noite arenosa.


Passo a passo, então a sombra
me levou

pela mão ao sindicato.

Era o mês de julho
no Chile, na estação fria.


Junto a meus passos, muitos dias
(ou séculos) (ou simplesmente meses
de cobre, pedra e pedra e pedra,
quer dizer, de inferno no tempo:
do infinito mantido
por mão sulfurosa),
iam outros passos e pés
que só o cobre conhecia.


Era uma multidão gordurosa,
fome e farrapo, soledades,
a que cavava o socavão.

Naquela noite não vi
desfilar sua ferida sem número
na costa cruel da mina.


Mas eu fui desses tormentos.


As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.


Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.

Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.



(4)
Os chilenos

Tudo isso foi a tua mão.

Tua mão foi a unha
do compatriota mineral, do “roto”
combatido, do pisoteado
material humano, do homenzinho em farrapos.

Tua mão foi como a geografia:
cavou esta cratera de treva verde,
fundou um planeta de pedra oceânica.


Andou pelas mestranças
manejando as pás quebradas
e botando pólvora por
todos os lados, como ovos
de galinha ensurdecedora.


Trata-se de uma cratera remota:
até da lua cheia
se veria a sua profundidade
feita lado a lado por
um tal de Rodríguez, um tal de Carrasco,
um tal de Díaz Iturrieta,
um tal de Abarca, um tal de Gumersindo,
um tal de chileno chamado Mil.


Esta imensidão, unha por unha,
o desgarrado chileno, um dia
e outro dia, outro inverno, a pulso,
em velocidade, na lenta
atmosfera das alturas,
recolheu-a da argamassa,
estabeleceu-a entre as regiões.



(5)
O herói

Não foi a firmeza tumultuosa
de muitos dedos, não só a pá,
não só o braço, as ancas, o peso
do homem todo e a sua energia:
foram dor, incerteza e fúria
os que cavaram o centímetro
de altura calcária, buscando
as veias verdes da estrela,
os finais fosforescentes
dos cometas enterrados.


Do homem gasto em seu abismo
nasceram os sais sangrentos.


Porque o Reinaldo é agressivo,
cata pedras, o infinito
Sepúlveda, teu filho, sobrinho de
tua tia Eduviges Rojas,
o herói ardendo, o que desvencilha
a cordilheira mineral.


Assim foi conhecendo,
entrando como na uterina
originalidade da entranha,
em terra e vida, fui me vencendo:
até sumir-me em homem, em água
de lágrimas como estalactites,
de pobre sangue despenhado
de suor caído no pó.


(6)
Ofícios
Outras vezes com Lafertte, mais longe,
entramos em Tarapacá,
desde Iquique azul e ascético,
pelos limites da areia.


Me mostrou Elías as pás
dos limpadores, enfiado
nas madeiras cada dedo
do homem: estavam gastadas
pelo roçar de cada ponta de dedo.

As pressões daquelas mãos derreteram
os pedernais da pá,
e abriram assim os corredores
de terra e pedra, metal e ácido,
estas unhas amargas, estes
enegrecidos cinturões
de mãos que rompem planetas,
e elevam os sais aos céus,
dizendo como no conto,
na história celeste: “Este
é o primeiro dia da terra”.


Assim aquele que ninguém antes viu
(antes daquele dia de origem),
o protótipo da pá,
levantou-se sobre as cascas
do inferno: dominou-as
com as suas rudes mãos ardentes,
abriu as folhas da terra,
e apareceu de camisa azul
o capitão de dentes brancos,
o conquistador do salitre.



(7)
O deserto

O duro meio-dia das grandes areias
chegou:
o mundo está nu,
largo, estéril e limpo até as últimas
fronteiras arenais:
escutai o som quebradiço
do sal vivo, só nas salinas:
o sol quebra seus vidros na extensão vazia
e agoniza a terra como um seco
e afogado ruído do sal que geme.



(8)
(Noturno)

Chega ao circuito do dserto,
À alta noite aérea do pampa,
Ao círculo noturno, espaço e astro,
Onde a zona do Tamarugal recolhe
Todo o silêncio perdido no tempo.


Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.


Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.


Eu te amo, irmã pura do oceano.

Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.


Estava só.

Era planura e solidão a vida.


Era este o peito varonil do mundo.


E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.



(9)
O páramo

No páramo o homem vivia
mordendo terra, aniquilado.

Fui direto ao covil,
meti a mão entre os piolhos,
caminhei entre os trilhos até
o amanhecer desolado,
dormi sobre as duras tábuas,
desci da faina na tarde,
me queimaram vapor e iodo,
apertei a mão do homem,
conversei com a mulherzinha,
portas adentro entre galinhas,
entre trapos, no cheiro
da pobreza abrasadora.


E quando tantas dores
reuni, quando tanto sangue
recolhi no cavo da alma,
vi chegar do espaço puro
dos pampas inabarcáveis
um homem feito de sua própria areia,
um rosto imóvel e estendido,
uma roupa com um corpo largo,
uns olhos entrecerrados
como lâmpadas indomáveis.


Recabarren era o seu nome.




XXXIX
Recabarren (1921)

Seu nome era Recabarren.


Bonachão, corpulento, espaçoso,
claro olhar, cara firme,
sua vasta compostura cobria,
como a areia numerosa,
as jazidas da força.


Olhai no pampa da América
(rios ramais, clara neve,
cortes ferruginosos)
o Chile com a sua destroçada
biologia, como um ramo
arrancado, como um braço
cujas falanges dispersou
o tráfico das tormentas.

Sobre as áreas musculares
dos metais e o nitrato,
sobre a atlética grandeza
do cobre recém-escavado,
o pequeno habitante vive,
acumulado na desordem,
como um contrato apressado,
cheio de meninos maltrapilhos
estendidos pelos desertos
da superfície salgada.


É o chileno interrompido
pela demissão ou a morte.


É o duríssimo chileno
sobrevivente das obras
ou amortalhado pelo sal.


Ali chegou com seus panfletos
este capitão do povo.

Pegou o solitário ofendido
que, enrolando suas mantas rotas
em seus filhos famintos,
aceitava as injustiças
encarniçadas, e lhe disse:
“Junta tua voz a outra voz”,
“Junta tua mão a outra mão”.

Foi pelos rincões aziagos
do salitre, encheu o pampa
com sua investidura paterna
e no esconderijo invisível
toda a miséria o viu.


Chegou cada “galo” ferido,
chegou cada um dos lamentos:
entraram como fantasmas
de pálida voz triturada
e saíram de suas mãos
com uma nova dignidade.

Em todo o pampa se soube.

E foi pela pátria inteira

fundando povo, levantando
os corações quebrantados.

Seus jornais recém-impressos
entraram nas galerias
do carvão, subiram ao cobre,
e o povo beijou as colunas
que levavam pela vez primeira
a voz dos atropelados.


Organizou as soledades.

Levou os livros e os cantos
até os muros do terror,
juntou uma queixa a outra queixa,
e o escravo sem voz nem boca,
o extenso sofrimento,
se fez nome, se chamou Povo
Proletariado, Sindicato,
ganhou pessoa e postura.


E este habitante transformado
que se construiu no combate,
este organismo valoroso,
essa implacável tentativa,
ate metal inalterável,
esta unidade das dores,
esta fortaleza do homem,
este caminho para amanhã,
esta cordilheira infinita.

esta germinal primavera,
este armamento dos pobres,
saiu daqueles sofrimentos,
do mais fundo da pátria,
do mais duro e mais ferido,
do mais alto e mais eterno
e se chamou Partido.

Partido
Comunista
Esse foi o seu nome.

Grande foi a luta.
Caíram
como abutre os donos do ouro.

Combateram com a calúnia.

“Esse Partido Comunista
é pago pelo Peru,
pela Bolívia, pelos estrangeiros.


Caíram sobre as impressoras,
adquiridas gota por gota
com o suor dos combatentes,
e ao atacaram, quebrando-as,
queimando-as, esparramando
a tipografia do povo.

Perseguiram Recabarren.

Negaram-lhe entrada e trânsito.

Ele, porém, congregou sua semente
nos socavões desertos
e o baluarte foi defendido.


Então, os empresários
norte-americanos e ingleses,
seus advogados, senadores,
seus deputados, presidentes,
verterem o sangue na areia.

Acurralaram, amarraram,
Assassinaram nossa estirpe,
A força profunda do Chile,
Deixaram junto às veredas
Do imenso pampa amarelo
Cruzes de operários fuzilados
Nas franjas da areia.


Uma vez em Iquique, na costa,
Mandaram buscar os homens
Que pediam escola e pão.

Ali, confundidos, cercados
Num pátio, foram dispostos
Para a morte.


Dispararam
Cm sibilante metralhadora,
Com fuzis taticamente
Dispostos, sobre a pilha
Amontoada de operários adormecidos.

O sangue encheu como um rio
A areia pálida de Iquique,
E lá está o sangue tombado,
Ardendo ainda sobre os anos
Como uma corola implacável.

Sobreviveu porém a resistência.

A luz organizada pelas mãos
de Recabarren, as bandeiras rubras
foram das minas aos povoados,
foram às cidades e aos sulcos,
rodaram com as rodas ferroviárias,
assumiram as bases do cimento,
ganharam ruas, praças, granjas,
fábricas afligidas pelo pó,
chagas cobertas pela primavera:
tudo cantou e lutou para vencer
na unidade do tempo que amanhece.


Quanta coisa se passou desde então.

Quanto sangue sobre sangue,
quantas lutas sobre a terra.

Horas de esplêndida conquista,
triunfos conquistados gota a gota,
ruas amargas, derrotadas,
zonas escuras como túneis
traições que pareciam
cortar a vida com seu fio,
repressões armadas de ódio,
coroadas militarmente

A terra parecia afundar.


Mas a luta permanece.



Oferta (1949)

Recabarren, nesses dias
De perseguição, na angústia
de meus irmãos relegados.

combatidos por um traidor,
e com a pátria envolta em ódio,
ferida pela tirania,
recordo a luta terrível
de tuas prisões, de teus passos
primeiros, tua solidão
de torreão irredutível,
e quando, saindo do páramo,
um e outro homem a ti vieram
para congregar a massa
do pão humilde defendido
pela unidade do povo augusto.



Pai do Chile
Recabarren, filho do Chile,
pai do Chile, pai nosso,
em tua construção, cm tua linha
urdida em terras e tormentos
nasce a força dos dias
vindouros e vencedores.


És a pátria, pampa e povo,
areia, argila, escola, casa,
ressurreição, punho, ofensiva,
ordem, desfile, ataque, trigo,
luta, grandeza, resistência.


Recabarren, sob o teu olhar
juramos limpar as feridas
mutilações da pátria.


Juramos que a liberdade
levantará sua flor nua
sobre a areia desonrada.


Juramos continuar teu caminho
Até a vitória



XL
Prestes do Brasil (1949)

Brasil augusto, quanto amor quisera
para estender-me em teu regaço,
para envolver-me em suas folhas gigantes,
em desenvolvimento vegetal, em vivo
detrito de esmeraldas: espia-te,
Brasil, dos rios
sacerdotais que te nutrem,
dançar nos terraços à luz
da lua fluvial, e repartir-me
por teus desabitados territórios
vendo sair do barro o nascimento
de grossos bichos rodeados
de metálicas aves brancas.


Quanta lembrança me darias.

Entrar de novo na alfândega,
sair pelos bairros, cheirar
teu estranho rito, baixar
a teus centros circulatórios,
a teu coração generoso.


Mas não posso.


Uma vez, na Bahia, as mulheres
do bairro dolorido,
do antigo mercado de escravos
(onde hoje a nova escravidão, a fome,
o trapo, a condição dolente,
vivem como antes na mesma terra),
me deram umas flores e uma carta,
umas palavras ternas e umas flores.


Não posso apartar a voz de quanto sofre.

Sei quanto me dariam
de invisível verdade as tuas espaçosas
ribeiras naturais.

Sei que a flor secreta, a agitada
multidão de mariposas,
todos os férteis fermentos
das vidas e dos bosques
me esperam com a sua teoria
de inesgotáveis umidades,

mas não posso, não posso

senão arrancar do teu silêncio
uma vez mais a voz do povo,
elevá-la como a pluma
mais fulgurante da selva,
deixá-la a meu lado e amá-la
até que cante por meus lábios.


Por isso vejo Prestes caminhando
para a liberdade, para as portas
que parecem em ti, Brasil, fechadas,
cravadas à dor, impenetráveis.

Vejo Prestes, sua coluna vencedora
da fome, cruzando a selva,
até a Bolívia, perseguida
pelo tirano de olhos pálidos.

Quando volta a seu povo e toca
o seu campanário combatente,
o encerram, e a sua companheira
entregam ao pardo verdugo
da Alemanha.


(Poeta, buscas em teu livro
as antigas dores gregas,
os orbes acorrentados
pelas antigas maldições,
correm as tuas pálpebras torturadas
pelos tormentos inventados,
e não vês em tua própria porta
os oceanos que batem
no sombrio peito do povo.
)
No martírio nasce a sua filha.

E ela desaparece
a golpe de machado, no gás, tragada
pelos lamaçais assassinos
da Gestapo.


Oh, tormento
do prisioneiro! Oh, indizíveis
padecimentos separados
de nosso ferido capitão!
(Poeta, apaga de teu livro
a Prometeu e sua corrente.

A velha fábula não tem
tanta grandeza calcinada,
tanta tragédia aterradora.
)

Onze anos eles guardam Prestes
detrás das barras de ferro,
no silêncio da morte,
sem que se atrevam assassiná-lo.


Não há notícias para seu povo.

A tirania apaga o nome
de Prestes em seu mundo negro.


E onze anos seu nome foi mudo.

Viveu sem nome como uma árvore
em meio a todo o seu povo,
reverenciado e esperado.


Até que a liberdade
foi buscá-lo em seu presídio,
e saiu de novo à luz,
amado, vencedor e bondoso,
despojado de todo 0 ódio
que lançaram sobre a sua cabeça.


Lembro que em 1945
estive com ele em São Paulo.

(Frágil e firme sua estrutura,
pálido como o marfim
desenterrado na cisterna,
fino como a pureza
do ar nas solidões,
puro como a grandeza
custodiada pela dor.
)
Pela vez primeira a seu povo
falava, no Pacaembu.

O grande estádio pululava
de cem mil corações vermelhos
que espetavam vê-lo e tocá-lo.

Chegou em uma indizível
onda de canto e ternura,
cem mil lenços saudavam
como um bosque a sua boa-vinda.

Ele olhou com olhos profundos
a meu lado, enquanto falei.




XLI
Dito no Pacaembu (Brasil, 1945)

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações.
Saudações das neves andinas,
saudações do oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos

os povoadores de minha pátria longínqua.

Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham: Era: Cumprimenta Prestes.

Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.

Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.

E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.


Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.

Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.


Me lembro em Paris, há alguns anos, uma noite
falei à multidão, fui pedir auxílio
para a Espanha Republicana, para o povo em sua luta.


A Espanha estava cheia de ruínas e de glória.

Os franceses ouviam o meu apelo em silêncio.

Pedi-lhes ajuda em nome de tudo o que existe
e lhes disse: Os novos heróis, os que na Espanha lutam, morrem,

Modesto, Líster, Pasionaria, Lorca,
são filhos dos heróis da América, são irmãos
de Bolívar, de O'Higgins, de San Martín, de Prestes.

E quando disse o nome de Prestes foi como um rumor imenso
no ar da França: Paris o saudava.

Velhos operários de olhos úmidos
olhavam para o fundo do Brasil e para a Espanha.


Vou contar-vos outra pequena história.

Junto às grandes minas de carvão, que avançam sob o mar,
no Chile, no frio porto de Talcahuano,
chegou uma vez, faz tempo, um cargueiro soviético.


(O Chile não mantinha ainda relações
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Por isso a polícia estúpida
proibiu que os marinheiros russos descessem,
e que os chilenos subissem.
)
Quando a noite chegou
vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,
homens, mulheres, meninos, e das colinas,
com suas pequenas lâmpadas mineiras,
a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,
para o navio que vinha dos portos soviéticos.


Aquela noite escura teve estrelas:
as estrelas humanas, as lâmpadas do povo.


Também hoje, de todos os rincões
da nossa América, do México livre, do Peru sedento,
de Cuba, da Argentina populosa,
do Uruguai, refúgio de irmãos asilados,
o povo te saúda, Prestes, com suas pequenas lâmpadas
em que brilham as altas esperanças do homem.


Por isso me mandaram, pelo vento da América,
para que te olhasse e logo lhes contasse
como eras, que dizia o seu capitão calado
por tantos anos duros de solidão e sombra.


Vou dizer-lhes que não guardas ódio.

Que só desejas que a tua pátria viva,

E que a liberdade cresça no fundo
do Brasil como árvore eterna.


Eu quisera contar-te, Brasil, muitas coisas caladas,
carregadas por estes anos entre a pele e a alma,
sangue, dores, triunfos, o que devem se dizer
o poeta e o povo: fica para outra vez, um dia.


Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.


Um grande silêncio peço de terras e varões.


Peço silêncio à América da neve ao pampa.


Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.


Silêncio: Que o Brasil falará por sua boca.




XLII
De novo os tiranos

Hoje de novo a caçada
se estende por todo o Brasil,
procura-o a fria cobiça
dos mercadores de escravos:
em Wall Street decretaram
a seus satélites porcinos
que enterrassem os seus caninos
nas feridas do povo,
e começou a caçada
no Chile, no Brasil, em todas
as nossas Américas arrasadas
por mercadores e verdugos.


Meu povo escondeu meu caminho,
cobriu meus versos com as mãos,
da morte me preservou,
e no Brasil a porta infinita
do povo fecha os caminhos
onde Prestes outra vez
rechaça de novo o malvado.


Brasil, que te seja salvo
o teu capitão doloroso,
Brasil, que não tenhas amanhã
de recolher de sua lembrança
fibra por fibra a sua efígie
para erguê-la em pedra austera,
sem tê-lo deixado no meio
de teu coração desfrutar
a liberdade que ainda, ainda
pode conquistar-te, Brasil.




XLIII
Chegará o dia

Libertadores, neste crepúsculo
da América, na despovoada
escuridão da manhã,
eu vos entrego a folha infinita
dos meus povos, o regozijo
de cada hora de luta.


Hussardos azuis, tombados
na profundidade do tempo,
soldados em cujas bandeiras
recém-bordadas amanhece,
soldados de hoje, comunistas,
combatentes herdeiros
das torrentes metalúrgicas,
escutai a minha voz nascida
nas galerias, erguida
à fogueira de cada dia
por simples dever amoroso:
somos a mesma terra, o mesmo
povo perseguido,
a mesma luta cinge a cintura
da nossa América:
Vistes
pelas tardes a cova sombria
do irmão?

Transpassastes a sua tenebrosa vida?
O coração disperso
do povo abandonado e submerso!

Alguém que recebeu a paz do herói
a guardou em sua adega, alguém roubou os frutos
da colheita ensangüentada
e dividiu a geografia
instituindo margens hostis,
zonas de desolada sombra cega.


Recolhei das terras o confuso
pulsar da dor, as solidões,
o trigo dos solos debulhados:
algo germina sob as bandeiras:
a voz antiga nos chama novamente.

Descei às raízes minerais,
e às alturas do metal deserto,
tocai a luta do homem na terra,
através do martírio que maltrata
as mãos destinadas à luz.


Não renuncieis ao dia que vos entregam
os mortos que lutaram.
Cada espiga
nasce de um grão entregue à terra,
e como o trigo, o povo inumerável
junta raízes, acumula espigas,
e na tormenta desencadeada
sobe à claridade do universo.

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Canto V - A Areia Traída

A Areia Traída
Talvez, talvez o olvido sobre a terra como uma capa
possa desenvolver o crescimento e alimentar a vida
(pode ser) como o húmus sombrio no bosque.


Talvez, talvez o homem como um ferreiro acode
à brasa, aos golpes do ferro sobre o ferro,
sem entrar nas cegas cidades do carvão.

sem fechar os olhos, precipitar-se abaixo
em fundições, águas minerais, catástrofes.

Talvez, porém meu prato é outro, meu alimento é diverso:
meus olhos não vieram para morder olvido:
meus lábios se abrem sobre todo o tempo, e todo o tempo
não só uma parte do tempo gastou as minhas mãos.

Por isso te falarei destas dores que quisera afastar,
te obrigarei a viver uma vez mais entre suas queimaduras,
não para nos determos coma numa estação, ao partir,
nem tampouco para golpear com o rosto a terra .

nem para enchermos o coração de água salgada,
mas para caminhar conhecendo, para tocar a retidão
com decisões infinitamente carregadas de sentido,
para que a severidade seja uma condição da alegria, para
que assim sejamos invencíveis.




I
Os verdugos

Sáuria, escamosa América enrolada
ao crescimento vegetal, ao mastro
erigido no lamaçal:
amamentaste filhos terríveis
com venenoso leite de serpente,
tórridos berços incubaram
e cobriram de barro amarelo
uma progênie encarniçada.

O gato e a escorpiona fornicaram
na pátria selvática.


Fugiu a luz de ramo em ramo,
mas não acordou o adormecido.


Cheirava à cana o cobertor,
haviam rodado as machadinhas
ao mais arredio lugar da sesta,
e no penacho escasseado
das cantinas escarrava
a sua independência jactanciosa
o jornaleiro sem sapatos.



O Dr.
Francia
O Paraná nas zonas maranhosas,
úmidas, palpitantes de outros rios
onde a rede da água, Yabebiri,
Acaray,, Igurey, jóias gêmeas
tingidas de quebracho, rodeadas
pelas espessas copas do copal,
transcorre para as savanas atlânticas
arrastando o delírio
do nazaret arroxeado, as raízes
do curupay em seu sonho arenoso.


Do lodaçal tépido, dos tronos
do jacaré devorador, ao meio
da pestilência silvestre,
cruzou o Dr.
Rodríguez de Francia
a caminho da poltrona do Paraguai.

E viveu entre os rosetões
de rosada alvenaria
qual estátua sórdida e cesárea
coberta pelos véus da aranha sombria.


Solitária grandeza no salão
cheio de espelhos, espantalho
negro sobre a felpa rubra
e ratazanas assustadas na noite.

Falsa coluna, perversa
academia, agnosticismo
de rei leproso, rodeado
pela extensão da erva-mate
bebendo números platônicos
na forca do justiçado,
contando triângulos de estrelas,
medindo claves estelares,
espreitando o alaranjado
entardecer do Paraguai
com um relógio na agonia
do fuzilado em sua janela,
com uma mão no ferrolho
do crepúsculo manietado.


Os estudos sobre a mesa,
os olhos no acicate
do firmamento, nos emborcados
cristais da geometria,
enquanto o sangue intestinal
do homem morto a coronhadas
escorria pelos degraus
chupado por verdes enxames
de moscas que cintilavam.


Fechou o Paraguai como um ninho
de sua majestade, amarrou
tortura e barro nas fronteiras.

Quando nas ruas sua silhueta
passa, os índios viram
os olhos para o muro:
sua sombra resvala deixando
duas paredes de calafrios.


Quando a morte consegue ver
o Dr.
Francia, ele está mudo,
imóvel, atado a si próprio,
só em sua cova, seguro
pelas cordas da paralisia,
e morre só, sem que ninguém
entre na câmara: ninguém se atreve
a tocar a porta do amo.


E amarrado por suas serpentes,
desbocado, fervido em sua medula,
agoniza e morre perdido
na solidão do palácio,
enquanto a noite estabelecida
como uma cátedra devora
os capitéis miseráveis
salpicados pelo martírio.



Rosas (1829-1849)

É tão difícil ver através da terra
(não do tempo, que ergue sua taça transparente
iluminando o alto resumo do orvalho),
porém a terra espessa de farinhas e rancores,
adega endurecida com mortos e metais,
não me deixa olhar pra baixo, no fundo
em que a entrecruzada solidão me rechaça.


Mas falarei com eles, os meus, os que um dia
para minha bandeira fugiram, quando era a pureza
estrela de cristal em seu tecido.


Sarmiento, Alberdi, Oros, del Carril:
minha pátria pura, logo manchada,
guardou para vós
a luz de sua metálica estreiteza,
e entre pobres e agrícolas adobes
os desterrados pensamentos
foram fiando-se com dura mineração
e aguilhões de açúcar vinhateiro.


O Chile os repartiu em sua fortaleza,
deu-lhes o sal de seu circuito marinho,
e esparziu as sementes desterradas.


Enquanto isso o galope na planície.

A argola partiu-se sobre as fibras
da cabeleira celeste,
e o pampa mordeu as ferraduras
das bestas molhadas e frenéticas.


Punhais, gargalhadas de mazorca
sobre o martírio.
Lua coroada
de rio a rio sobre a brancura
com um penacho de sombra indizível!

A Argentina roubada a coronhadas
no vapor da alba, castigada
até sangrar e enlouquecer, vazia,
cavalgada por azedos capatazes!

Tu fizeste procissão de vinhas rubras,
foste uma máscara, um tremor selado,
e te substituíram na brisa
por uma trágica mão de cera.

Saiu de ti uma noite, corredores,
lousas de pedra enegrecida, escadarias
onde se fundiu o som, encruzilhadas
de carnaval, com mortos e bufões,
e um silêncio de pálpebra que cai
sobre todos os olhos da noite.


Por onde fugiram teus trigos espumosos?
Teu garbo frutal, tua extensa boca,
tudo o que se move por tuas cordas
para cantar, teu couro trepidante
de grande tambor, de estrela sem medida,
emudeceram sob a implacável
solidão da cúpula encerrada.


Planeta, latitude, claridade poderosa,
em tua orla, na cinta pela neve compartida,
recolheu-se o silêncio noturno que chegava
montado sobre um mar vertiginoso,
e onda após onda a água nua relatava,
o vento gris a tremer desatava a sua areia,
a noite nos feria com o seu pranto estépico.


Mas o povo e o trigo se amassaram: aí
alisou-se a cabeça terrenal, pentearam-se
as fibras enterradas da luz, a agonia
provou as portas livres, destroçadas do vento,
e das poeiradas do caminho, uma
a uma, dignidades submersas, escolas,
inteligências, rostos ao pó ascenderam
até se tornarem unidades estreladas,
estátuas da luz, puras pradarias.



Equador
Dispara Tunguragua azeite rubro,
Sangay sobre a neve
derrama mel ardendo,
Imbabura de tuas cimeiras
igrejas nevadas arroja
peixes e plantas, ramos duros
do infinito inacessível,
e nos páramos, acobreada
lua, edificação crepitante,
deixa cair as tuas cicatrizes
como veias sobre Antisana,
na enrugada solidão
de Pumachaca, na sulfúrica
solenidade de Pambamarca,
vulcão e lua, frio e quartzo,
chamas glaciais, movimento
de catástrofes, vaporoso
e ciclônico patrimônio.


Equador; Equador, cauda violeta
de um astro ausente, na irisada
multidão de povos que te cobrem
com infinita pele de frutaria,
ronda a morte com o seu funil,
arde a febre nos povoados pobres,
a fome é um arado
de ásperas puas na terra,
e a misericórdia te fere
o peito com buréis e conventos,
qual uma enfermidade umedecida
nas fermentações das lágrimas.



García Moreno
Dali saiu o tirano.

García Moreno é seu nome.

Chacal enluvado, paciente
morcego de sacristia,
recolhe cinza e tormento
em seu sombreiro de seda
e enfia as unhas no sangue
dos rios equatoriais.


Com os pequenos pés metidos
em escarpins envernizados,
benzendo-se e encerando-se
nas alfombras do altar,
com as fraldas mergulhadas
nas águas processionais,
dança no crime arrastando
cadáveres recém-fuzilados,
dilacera o peito dos mortos,
passeia seus ossos voando
sobre os féretros, vestido
com plumas de pano agourento.


Nas aldeias índias, o sangue
cai sem direção, há medo
em todas as ruas e sombras
(debaixo dos sinos há medo
que ressoa e sai para a noite),
e pesam sobre Quito as grossas
paredes dos monastérios,
retas, imóveis, seladas.


Tudo dorme com os florões
de ouro oxidado nas cornijas,
os anjos dormem pendurados
em seus cabides sacramentais,
tudo dorme qual uma teia
de sacerdócio, tudo sofre
sob a noite membranosa.


Mas não dorme a crueldade.

A crueldade de bigodes brancos
passeia com guantes e garras
e crava escuros corações
sobre as grades do domínio.

Até que um dia entra a luz
como um punhal no palácio
e abre a jaqueta mergulhando um raio
no peitilho imaculado.


Assim saiu García Moreno
do palácio, mais uma vez, voando
para inspecionar as sepulturas,
empenhadamente mortuário,
mas dessa vez rodou até o fundo
dos massacres, retido,
entre as vítimas sem nome,
na umidade do podredouro.



Os bruxos da América
América Central pisoteada pelos mochos,
engordurada por ácidos suores,
antes de entrar em teu jasmim queimado
considera-me fibra da tua nave,
asa de tua madeira combatida
pela espuma gêmea,
e enche-me do arrebatador aroma
pólen e pluma de tua taça,
margens germinais de tuas águas,
linhas frisadas do teu ninho.

Porém os bruxos matam os metais
da ressurreição, fecham as portas
e entrevam a morada
das aves deslumbradoras.



Estrada
Chega talvez Estrada, pequenino,
em seu fraque de antigo anão
e entre uma tosse e outra os muros
da Guatemala fermentam
regados incessantemente
pelas urinas e pelas lágrimas.



Ubico
Ou é Ubico pelas picadas,
atravessando os presídios
de motocicleta, frio
como pedra, mascarado
da hierarquia do medo.



Gómez
Gómez, tremedal da Venezuela,
afoga lentamente rostos,
inteligências, em sua cratera.

O homem cai à noite nela
mexendo os braços, cobrindo
o rosto dos golpes cruéis,
e é tragado pelos atoleiros,
mergulha em adegas subterrâneas,
aparece nas estradas
cavando carregado de ferro,
até morrer despedaçado,
desaparecido, perdido.



Machado

Machado, em Cuba, arreou sua ilha
com máquinas, importou tormentos
feitos nos Estados Unidos,
silvaram as metralhadoras
derrubando a florescência,
o néctar marinho de Cuba,
e o estudante apenas ferido
era lançado à água onde
os tubarões terminavam
a obra do benemérito.

Chegou até o México a mão
do assassino, e rolou Mella
como um discóbolo sangrento
pela rua criminosa
enquanto a ilha ardia, azul,
embrulhada em loteria,
hipotecada com açúcar.



Melgarejo
A Bolívia morre em suas paredes
como uma flor enrarecida:
encarapitam-se em suas montarias
os generais derrotados
e rompem o céu a pistoladas.

Máscara de Melgarejo,
besta bêbada, espumarada
de minerais traídos,
barba da infâmia, barba horrenda
sobre os montes rancorosos,
barba arrastada no delírio,
barba carregada de coágulos,
barba achada nos pesadelos
da gangrena, barba errante
galopada pelos potreiros,
amancebada aos salões,
enquanto o índio e sua carga cruzam
a última savana de oxigênio
trotando pelos corredores
dessangrados da pobreza.



Bolívia (22 de março de 1865)

Belzu venceu.
É de noite.
La Paz arde
com os últimos tiros.
Poeira seca
e dança triste para o alto
sobem entrançadas com álcool lunário
e horrenda púrpura recém-molhada.

Melgarejo caiu, sua cabeça bate de encontro ao fio mineral
do cimo sangrento, os cordões
de ouro, a casaca
tecida de ouro, a camisa
rota empapada de suor maligno,
fazem junto ao detrito do cavalo
e aos miolos do novo fuzilado.

Belzu em palácio, entre as luvas
e as sobrecasacas, recebe sorrisos,
reparte-se o domínio do escuro
povo nas alturas alcoolizadas,
os novos favoritos deslizam
pelos salões encerados
e as luzes de lágrimas e lâmpadas
caem no veludo despenteado
por uns tantos fogachos.


Entre a multidão
vai Melgarejo, tempestuoso espectro
apenas sustentado pela fúria.

Escuta o âmbito que fora o seu,
a massa ensurdecida, o grito
despedaçado, o fogo da fogueira
alto sobre os montes, a janela
do novo vencedor.

Sua vida (pedaço
de força cega e ópera desatada
sobre as crateras e os planaltos,
sonho de regimento, no qual os trajes
derramam-se em terras indefesas
com sabres de papelão, mas há feridas
que mancham, com morte verdadeira
e degolados, as praças rurais,
deixando atrás o coro mascarado,
e os discursos do Eminentíssimo,
esterco de cavalos, seda, sangue
e os mortos de rodízio, rotos, rígidos,
atravessados pelo atroante
disparo dos rápidos carabineiros)
caiu no mais fundo do pó,
do desestimado e do vazio,
de uma talvez morte inundada
de humilhação, porém a derrota
como um touro imperial mostra as fauces,
escarva as metálicas areias
e empurra o bestial passo vacilante
o minotauro boliviano caminhando
para as salas de ouro clamoroso.

Entre a multidão cruza cortando
massa sem nome, escala
pesadamente o trono alienado,
ao vencedor caudilho assalta.
Rola
Belzu, manchado o amido, roto o cristal
que cai derramando a sua luz líquida
esburacado o peito para sempre,
enquanto o assaltante solitário
búfalo ensangüentado do incêndio
sobre o balcão apóia a sua estatura
gritando: “Morreu Belzu”, “Quem vive?”,
“Respondei”, E da praça,
rouco um grito de terra, um grito negro
de pânico e horror responde; “Viva,
sim, Melgarejo, viva Melgarejo”,
a mesma multidão do morto, aquela
que festejou o cadáver a dessangrar-se
na escadaria do palácio: “Viva”,
grita o fantoche colossal, que tapa
todo o balcão com sua roupa rasgada,
barro de acampamento e sangue sujo.



Martínez (1932)

Martínez, o curandeiro
de El Salvador, reparte frascos
de remédios multicores,
que os ministros agradecem
com prosternação e salamaleques.

O bruxinho vegetariano
vive a receitar em palácio
enquanto a fome tormentosa
uiva entre os canaviais.

Martínez então decreta:
e em poucos dias vinte mil
camponeses assassinados
apodrecem nas aldeias
que Martínez manda incendiar
com ordenações de higiene.

De novo em palácio retorna
a seus xaropes, e recebe
as rápidas felicitações
do embaixador norte-americano.

“Está assegurada”, lhe diz,
“a cultura ocidental,
o cristianismo do Ocidente
e ademais os bons negócios,
as concessões de bananas
e os controles alfandegários.


E bebem juntos uma longa
taça de champanha, enquanto cai
a chuva tépida nos pútridos
agrupamentos do ossuário.



As satrapias
Trujillo, Somoza, Carías,
até hoje, até este amargo
mês de setembro
do ano de 1948,
com Moríñigo (ou Natalicio)
no Paraguai, hienas vorazes
de nossa história, roedores
das bandeiras conquistadas
com tanto sangue e tanto fogo,
encharcados em suas fazendas,
depredadores infernais,
sátrapas mil vezes vendidos
e vendedores; açulados
pelos lobos de Nova York.

Máquinas famintas de dólares,
manchadas no sacrifício
de seus povos martirizados,
prostituídos mercadores
do pão e do ar americanos,
lodosos verdugos, manada
de prostibulários caciques,
sem outra lei que a tortura
e a fome açoitada do povo.


Doutores honoris causa
da Columbia University,
com a toga sobre as fauces
e sobre o punhal, ferozes
transumantes do Waldorf Astoria
e das câmaras malditas
onde apodrecem as idades
eternas do encarcerado.


Pequenos urubus recebidos
por Mr.
Truman, recobertos
de relógios, condecorados
por “Loyalty”, sangradores
de pátrias, só há um
pior do que vocês, só há um
e este o deu a minha pátria um dia
para desgraça de meu povo.




II
As oligarquias

Não, ainda não secavam as bandeiras,
ainda não dormiam os soldados
quando a liberdade mudou de roupa,
transformou-se em fazendas:
das terras recém-semeadas
saiu uma casta, uma quadrilha
de novos-ricos com escudo,
com polícia c com prisões.


Traçaram uma linha negra:
“Aqui somos nós, porfiristas
do México, caballeros
do Chile, pitucos
do Jockey Club de Buenos Aires,
engomados flibusteiros
do Uruguai, adamados
equatorianos, clericais
señoritos de todas as partes”.


“Lá, vocês, rotos, mamelucos,
pelados do México, gaúchos,
amontoados em pocilgas,
desamparados, esfarrapados,
piolhentos, vagabundos, ralé,
desbaratados, miseráveis,
sujos, preguiçosos, povo.


Tudo se construiu sobre a linha.

O arcebispo batizou este muro
e instituiu anátemas incendiários
para o rebelde que ignorasse
a parede da casta.

Queimaram pela mão do verdugo
os livros de Bilbao.

A polícia
guardou a muralha, e no faminto
que se aproximou dos mármores sagrados
bateram com um pau na cabeça
ou o espetaram num cepo agrícola
ou a pontapés o nomearam soldado.


Sentiram-se tranqüilos e seguros.

O povo continuou nas ruas e campinas
a viver amontoado, sem janelas,
sem chão, sem camisa,
sem escola, sem pão.


Anda pela nossa América um fantasma
nutrido de detritos, analfabeto,
errante, igual em nossas latitudes,
saindo dos cárceres lamacentos,
arrabaldeiro e fugitivo, marcado
pelo temível compatriota cheio
de roupas, ordens e gravata-borboleta.


No México produziram pulque
para ele, no Chile
vinho terebinteno de cor violeta,
o envenenaram, rasparam-lhe
a alma pedacinho por pedacinho,
negaram-lhe o livro e a luz,
até que foi tombando no pó,
metido no desvão tuberculoso,
e então não teve enterro
litúrgico: sua cerimônia
foi metê-lo nu entre outras
carniças sem nome.



Promulgação da Lei da Trapaça
Eles se declararam patriotas.

Nos clubes se condecoraram
e foram escrevendo a história.

Os Parlamentos ficaram cheios
de pompa, depois repartiram
entre si a terra, a lei,
as melhores ruas, o ar,
a universidade, os sapatos.


Sua extraordinária iniciativa
foi o Estado erigido dessa
forma, a rígida impostura.

Foi debatido, como sempre,
com solenidade e banquetes,
primeiro em círculos agrícolas,
com militares e advogados.

Por fim levaram ao Congresso
a Lei suprema, a famosa,
a respeitada, a intocável
Lei da Trapaça.

Foi aprovada.


Para o rico a boa mesa.


O lixo para os pobres.


O dinheiro para os ricos.


Para os pobres o trabalho.


Para os ricos a casa grande.


O tugúrio para os pobres.


O foro para o grão ladrão.


O cárcere para quem furta um pão.


Paris, Paris para os señoritos.


O pobre na mina, no deserto.


O Sr.
Rodríguez de la Crota
falou no Senado com voz
melíflua e elegante.

“Esta lei, afinal, estabelece
a hierarquia obrigatória
e, antes de tudo, os princípios
da cristandade.

Era
tão necessária quanto a água.

Só os comunistas, chegados
do inferno, como se sabe,
podem combater este código
do Funil, sábio e severo.

Mas essa oposição asiática,
vinda do sub-homem, é simples
refreá-la: todos na cadeia,
no campo de concentração,
assim ficaremos somente
os cavalheiros distintos
e os amáveis yanaconas
do Partido Radical.


Vibraram os aplausos
dos brancos aristocráticos:
que eloqüência, que espiritual
filósofo, que luminar!
E foi cada um encher correndo
os bolsos com seus negócios,
um açambarcando o leite,
outro dando o golpe no arame,
outro roubando no açúcar,
e todos se chamando em coro
patriotas, com o monopólio
do patriotismo, consultado
também na Lei da Trapaça.



Eleição em Chimbarongo (1947)

Em Chimbarongo, no Chile, faz tempo,
fui a uma eleição senatorial.

Vi como eram eleitos os pedestais da pátria.

As onze da manhã
chegaram do campo as carretas
atulhadas de inquilinos.

Foi no inverno, molhados,
sujos, famintos, descalços,
os servos de Chimbarongo
descem das carretas.

Torvos, tostados, esfarrapados,
são apinhados, conduzidos,
com uma cédula na mão,
vigiados e apertados
voltam a cobrar o pagamento,
e outra vez para as carretas,
em fila como cavalos,
são conduzidos.

Mais tarde
lhes atiram uma caneca de vinho
até ficarem bestialmente
envilecidos e esquecidos.


Escutei mais tarde o discurso
do senador assim eleito:
“Nós, os patriotas cristãos,
nós, os defensores da ordem,
nós, os filhos do espírito”.


E sua barriga era balançada
por sua voz de vaca acachaçada,
que parecia tropeçar
como trompa de mamute
nas abóbadas tenebrosas
da uivante pré-história.



A nata
Grotescos, falsos aristocratas
de nossa América, mamíferos
recém-estucados, jovens
estéreis, asnos sensatos, proprietários malignos.
heróis
da bebedeira no clube,
assaltantes de banco e bolsa,
falsos elegantes, grã-finos, bestalhões,
ataviados tigres de embaixada,
pálidas meninas principais,
flores carnívoras, culturas
das cavernas perfumadas,
trepadeiras chupadoras
de sangue, esterco e suor,
cipós estranguladores,
anéis de jibóias feudais.


Enquanto tremiam os prados
com o galope de Bolívar,
ou de O'Higgins (soldados pobres,
povo chicoteado, heróis descalços),
vós formastes as fileiras
do rei, do poço clerical,
da traição às bandeiras,
mas quando o vento arrogante
do povo, agitando suas lanças,
nos deixou a pátria nos braços,
surgistes aramando as terras,
medindo cercas, amontoando
áreas e seres, repartindo
a polícia e os lagos.


O povo voltou das guerras,
afundou-se nas minas, na escura
profundidade dos currais,
caiu nos sulcos pedregosos,
moveu as fábricas engorduradas,
procriando nos prostíbulos.

nos cômodos repletos
de outros seres desgraçados.


Naufragou em vinho até se perder,
abandonado, invadido
por um exército de piolhos
e de vampiros, rodeado
de muros e delegacias,
sem pão, sem música caindo
na solidão desesperada
onde Orfeu mal lhe deixa
uma guitarra para sua alma,
uma guitarra que se cobre
de fitas e rasgões
e canta por cima dos povos
como a ave da pobreza.



Os poetas celestes
Que fizestes vós, gidistas,
intelectualistas, rilkistas,
misterizantes, falsos bruxos
existenciais, papoulas
surrealistas acesas
numa tumba, europeizados
cadáveres da moda,
pálidas lombrigas do queijo
capitalista, que fizestes
ante o reinado da angústia,
frente a este escuro ser humano,
o esta pateada compostura,
a esta cabeça submersa
no esterco, a esta essência
de ásperas vidas pisoteadas?

Não fizestes nada além da fuga:
vendestes amontoados detritos,
buscastes cabelos celestes,
pés covardes, unhas quebradas,
“beleza pura”, “sortilégio”,
obras de pobres assustados
para evadir os olhos, para
emaranhar as delicadas
pupilas, para subsistir
com o prato de restos sujos
que vos lançaram os senhores,
sem ver a pedra em agonia,
sem defender, sem conquistar,
mais cegos que as coroas
do cemitério, quando cai
a chuva sobre as imóveis
flores podres das sepulturas.



Os exploradores
Assim foi devorada,
negada, sujeitada, arranhada, roubada,
jovem América, tua vida.


Dos despenhadeiros da cólera
onde o caudilho pisoteou cinzas
e sorrisos recém-tombados,
até as máscaras patriarcais
dos bigodudos senhores
que presidiram a mesa dando
a bênção aos presentes
e ocultando os verdadeiros
rostos de escura saciedade,
de concupiscência sombria
e cavidades cobiçosas:
fauna de frios mordedores
da cidade, tigres terríveis,
comedores de carne humana,
peritos na caçada
do povo fundido nas névoas,
desamparado nos rincões
e nos porões da terra.



Os pedantes
Entre os miasmas ganadeiros
ou papeleiros, ou coqueteleiros,
viveu o produto azul, a pétala
da podridão altaneira.


Foí o “siútico” do Chile, o Raúl
Aldunatillo (conquistador
de revistas com mãos alheias,
com mãos que mataram índios),
O Tenente Afetado, o Coronel
Negócio, o que compra letras
e se estima letrado, compra
sabre e se crê soldado,
mas não pode comprar pureza
e então escarra como víbora.


Pobre América revendida
nos mercados do sangue
pelos mergulhões enterrados
que ressurgem no salão
de Santiago, de Minas Gerais,
fazendo “elegância”, caninos
cavalheirinhos de boudoir,
peitilhos inúteis, tacos
do golfe da sepultura.

Pobre América, emascarada
por elegantes transitórios,
falsificadores de rostos,
enquanto, abaixo, o vento negro
fere o coração destroçado
e roda o herói do carvão
até o ossário dos pobres,
varrido pela pestilência,
coberto pela escuridão,
deixando sete filhos famintos
que serão lançados nos caminhos.



Os favoritos
No espesso queijo cardão
da tirania amanhece
outro verme: o favorito.

É o covardão arrendado
para louvar as mãos sujas.

É orador ou jornalista.

Acorda rápido cm palácio
e mastiga com entusiasmo
as dejeções do soberano,
elucubrando longamente
sobre seus gestos, enturvando
a água e pescando seus peixes
na laguna purulenta.

Vamos chamá-lo Darío Poblete,
ou Jorge Delano “Coke”.

(Dá na mesma, poderia ter
outro nome, existiu quando
Machado caluniava Mella,
depois de tê-lo assassinado.
)
Ali Poblete teria escrito
sobre os “Vis inimigos”
do “Péricles de Havana”.

Mais tarde Poblete beijava
as ferraduras de Trujillo,
a cavalgadura de Moríñigo,
o ânus de Gabriel González.


Foi o mesmo ontem, recém-saído
da guerrilha, alugado
para mentir, para ocultar
execuções e saques,
e hoje, erguendo sua pena
covarde sobre os tormentos
de Pisagua, sobre a dor
de milhares de homens e mulheres.


Sempre o tirano em nossa negra
geografia martirizada
achou um bacharel lamacento
que repartisse a mentira
e dissesse: El Sereníssimo,
el Constructor, el Gran Repúblico
que nos gobierna, e deslizasse
pela tinta emputecida
suas garras negras de ladrão.

Quando o queijo é consumido
e o tirano cai no inferno,
o Poblete desaparece,
o Delano “Coke” se esfuma,
o verme torna ao esterco,
esperando a roda infame
que afasta e traz as tiranias,
para aparecer sorridente
com um novo discurso escrito
para o déspota que desponta.


Por isso, povo, antes de ninguém,
pega o verme, rompe sua alma
e que seu líquido esmagado,
sua escura matéria viscosa
seja a última escritura,
a despedida de uma tinta
que limparemos da terra.



Os advogados do dólar
Inferno americano, pão nosso
empapado em veneno, há outra
língua em tua pérfida fogueira:
é o advogado nativo
da companhia estrangeira.


É ele que arrebita os grilhões
da escravidão em sua pátria,
e passeia desdenhoso
com a casta dos gerentes
a mirar com ar supremo
nossas bandeiras andrajosas.

Quando chegam de Nova York
as vanguardas imperiais,
engenheiros, calculistas,
agrimensores, peritos,
e medem terra conquistada,
estanho, petróleo, bananas,
nitrato, cobre, manganês,
açúcar, ferro, borracha, terra,
adianta-se um anão obscuro,
com um sorriso amarelo,
e aconselha com suavidade
aos invasores recentes:

Não é preciso pagar tanta
a estes nativos, seria
um crime, meus senhores, elevar
estes salários.
Nem convém.

Estes pobres-diabos, estes mestiços,
iriam só embriagar-se
com tanto dinheiro.
Pelo amor de Deus!
São uns primitivos, quase
umas feras, conheço esta cambada.

Não paguem tanto dinheiro.


É adotado.
Põem-lhe
libré.
Veste como gringo,
cospe como gringo.
Dança
como gringo, e vai subindo.

Tem automóvel, uísque, imprensa,
é eleito juiz e deputado,
é condecorado, é ministro,
e é ouvido no governo.

Sabe ele quem é subornável.

Sabe ele quem é subornado.

Ele lambe, unta, condecora,
afaga, sorri, ameaça.

E assim se esvaziam pelos portos
as repúblicas dessangradas.


Onde mora, perguntareis,
este vírus, este advogado,
este fermento do detrito,
este duro piolho sangüíneo,
engordado de nosso sangue?
Mora nas baixas regiões
equatoriais, o Brasil,
mas sua morada é também
o cinturão central da América.


Podereis encontrá-lo na escarpada
altura de Chuquicamata.

Onde cheira riqueza sobe
os montes, cruza abismos,
com as receitas de seu código
para roubar a terra nossa.

Podereis achá-lo em Puerto Limón,
na Ciudad Trujillo, em Iquique,
em Caracas, Maracaibo,
em Antofagasta, em Honduras,
encarcerando nosso irmão,
acusando seu compatriota.

despojando diaristas, abrindo
portas de juízes e abastados,
comprando imprensa, dirigindo
a polícia, o pau, o rifle
contra sua família esquecida.


Pavoneando-se, vestido
de smoking, nas recepções,
inaugurando monumentos,
com esta frase: Meus senhores,
a pátria, antes da vida,
é a nossa mãe, é o nosso chão,
vamos defender a ordena fazendo
novos presídios, novos cárceres.


E morre glorioso, “o patriota”,
senador, patrício, eminente,
condecorado pelo papa,
ilustre, próspero, temido,
enquanto a trágica ralé
de nossos mortos, os que fundiram
a mão no cobre, arranharam
a terra profunda e severa,
morrem batidos e esquecidos,
postos às pressas
em seus caixões funerários:
um nome, um número na cruz
que o vento sacode, matando
até a cifra dos heróis.



Diplomatas (1948)

Se você nasce bobo na Romênia
segue a carreira de bobo,
se você é bobo em Avignon
sua qualidade é conhecida
pelas velhas pedras de França, pelas escolas e meninada
desrespeitosa das granjas.

Mas se você nasce bobo no Chile
não demoram a fazê-lo embaixador.


Chame-se você bobo Mengano,
bobo Joaquín Fernández, bobo
Fulano de Tal, se for possível
tenha uma barba acrisolada.

É tudo o que se exige
para “entabular negociações”.


Informará depois, sabichão,
sobre a sua espetacular
apresentação de credenciais,
dizendo: Etc.
, o coche,
etc.
, Sua Excelência, etc.

frases, etc.
, benévolas.


Arranje uma voz cava e um tom
de vaca protetora,
condecorando-se mutuamente
com o enviado de Trujillo,
mantenha discretamente
uma garçonnière (“Sabe você
as conveniências destas coisas
para o Tratado de Limites”),
remeta disfarçado em algo
o editorial do jornal
doutoral que leu ao café
anteontem: é um “informe”.


Junte-se com o “fino”
da “sociedade”, com os bobos
daquele país, adquira quanta
prataria puder comprar,
fale nos aniversários
junto aos cavalos de bronze,
dizendo: Ejem, los vínculos,
etc.
, ejem, etc.
,
ejem, los descendientes,
etc.
, la raza, ejem, el puro,
el sacrosanto, ejem, etc.


E fique tranqüilo, tranqüilo:
é você um bom diplomata
do Chile, é você um bobo
condecorado e prodigioso.



Os bordéis
Da prosperidade nasceu o bordel,
acompanhando o estandarte
das cédulas amontoadas:
sentina respeitada
do capital, adega da nave
de meu tempo.

Foram mecanizados
bordéis na cabeleira
de Buenos Aires, carne fresca
exportada pelo infortúnio
das cidades e dos campos
remotos, onde o dinheiro
espreitou os passos do cântaro
e aprisionou a trepadeira.

Rurais lenocínios, à noite,
no inverno, com os cavalos
à porta das aldeias
e as moças aturdidas
que caíram de venda em venda
nas mãos dos magnatas.

Lentos prostíbulos provincianos
em que os abastados do lugar
- ditadores da vindima -
aturdem a noite venérea
com espantosos estertores.

Pelos rincões, escondidas,
grei de rameiras, inconstantes
fantasmas, passageiras
do trem mortal, já vos tomaram,
já caístes na rede enodoada,
já não podeis voltar ao mar,
já vos estreitaram e vos caçaram,
já estais mortas no vazio
do mais vivo desta vida,
já podeis resvalar a sombra
pelas paredes: em nenhum
lugar senão na morte
andam estes muros pela terra.



Procissão em Lima (1947)

Eram muitos, levavam o ídolo
sobre os ombros, era espessa
a cauda da multidão
como uma saída do mar
de roxa fosforescência.


Saltavam dançando, elevando
graves murmúrios mastigados
que se uniam à fritada
e aos tétricos tamborins.


Coletes roxos, sapatos
roxos, chapéus
enchiam de manchas violeta
as avenidas como um rio
de enfermidades pustulentas
que desembocava nas vidraças
inúteis da catedral.

Algo infinitamente lúgubre
como o incenso, a copiosa
aglomeração de chagas
feria os olhos unindo-se
com as chamas afrodisíacas
do apertado rio humano.


Vi o obeso latifundiário
suando nas sobrepelizes,
esfregando os goteirões
de sagrado esperma na nuca.


Vi o andrajoso gusano
das montanhas estéreis,
o índio de rosto perdido
nas vasilhas, o pastor
de lhamas doces, as meninas
cortantes das sacristias,
os professores de aldeia
com rostos azuis e famintos.

Narcotizados dançarinos
em camisões purpurinos
iam os negros esperneando
sobre tambores invisíveis.

E todo o peru batia
no peito mirando a estátua
de uma senhora melindrada,
azul-celeste e rosadinha,
que navegava as cabeças
em seu barco de confeitos
inflado de aragem suarenta.



A Standard Oil Co.


Quando a verruma grossa abriu caminho
pelas furnas pedregosas
e enfiou seu intestino implacável
nas fazendas subterrâneas,
e os anos mortos, os olhos
das idades, as raízes
das plantas encarceradas
e os sistemas escamosos
se fizeram estratos da água,
subiu pelos tubos o fogo
convertido em líquido frio,
na aduana das alturas
à saída de seu mundo
de profundidade tenebrosa,
encontrou um pálido engenheiro
e um titulo de proprietário.


Ainda que se enredem os caminhos
do petróleo, ainda que as napas
mudem seu lugar silencioso
e movam sua soberania
entre os ventres da terra,
quando agita a fonte
sua ramagem de parafina,
antes chegou a Standard Oi1
com seus letrados e suas botas,
com seus cheques e seus fuzis,
com seus governos e seus presos.


Seus obesos imperadores
vivem em Nova York, são suaves
e sorridentes assassinos,
que compram seda, náilon, puros
tiranetes e ditadores.


Compram países, povos, mares,
polícias, deputações,
distantes comarcas onde
os pobres guardam seu milho
como os avaros o ouro:
a Standard Oil os desperta,
uniformiza, lhes designa
qual é o irmão inimigo,
e o paraguaio faz sua guerra
e o boliviano se desfaz
com sua metralhadora na selva.


Um presidente assassinado
por uma gota de petróleo,
uma hipoteca de milhões
de hectares, um fuzilamento
rápido numa manhã
mortal de luz, petrificada,
um novo campo de presos
subversivos, na Patagônia,
uma traição, um tiroteio
sob a lua apetrolada,
uma troca sutil de ministros
na capital, um rumor
de maré de azeite,
e logo o baque da garra, e verás
como brilham, sobre as nuvens,
sobre os mares, em tua casa,
as letras da Standard Oil
iluminando seus domínios.



A Anaconda Copper Mining Co.


Nome enrolado de serpente,
fauce insaciável, monstro verde,
nas alturas agrupadas,
na montaria gasta
de meu país, sob a lua
da dureza, escavadora, abres as crateras lunares
do mineral, as galerias
do cobre virgem, afundado
em suas areias de granito.


Já vi arder na noite eterna
de Chuquicamata, nas alturas,
o fogo dos sacrifícios,
a crepitação desbordante
do ciclope que devorava
a mão, o peso, a cintura
dos chilenos, enrolando-os
sob suas vértebras de cobre.

esvaziando-lhes o sangue morno,
triturando os esqueletos
e cuspindo-os nos montes
dos desertos desolados.


O ar ressoa nas alturas
de Chuquicamata estrelada.

Os socavões aniquilam
com mãos pequeninas de homem
a resistência do planeta,
trepida a ave sulfurosa
das gargantas, amotina-se
o férreo frio do metal
com suas selvagens cicatrizes
e quando troam as buzinas
a terra engole um desfile
de homens minúsculos que descem
às mandíbulas da cratera.

São pequeninos capitães,
sobrinhos meus, filhos meus,
e quando revertem os lingotes
para os mares, e limpam
a cara e voltam trepidando
no último calafrio,
a grande serpente os devora,
e diminui, e os tritura,
e os cobre de baba maligna,
e os atira pelos caminhos,
e os mata com a polícia,
e os faz apodrecer em Pisagua,
e os encarcera, e os cospe,
compra um presidente traidor
que os insulta e persegue,
e os mata de fome nas planuras
da imensidade arenosa.


E há uma que outra cruz torcida
nas ladeiras infernais
como única lenha dispersa
da árvore da mineração


A United Fruit Co.


Quando soou a trombeta, ficou
tudo preparado na terra,
e Jeová repartiu o mundo
entre a Coca-Cola, a Anaconda,
Ford Motors, e outras entidades:
a Compañía Frutera Inc.

reservou para si o mais suculento,
a costa central de minha terra,
a doce cintura da América.

Batizou de novo suas terras
como “Repúblicas Bananas”,
e sobre os mortos adormecidos,
sobre os heróis inquietos
que conquistaram a grandeza,
a liberdade e as bandeiras,
estabeleceu a ópera-bufa:
alienou os arbítrios,
presenteou coroas de César,
desembainhou a inveja, atraiu
a ditadura das moscas,
moscas Trujíllo, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas úmidas
de sangue humilde e marmelada,
moscas bêbadas que zumbem
sobre as tumbas populares,
moscas de circo, sábias moscas
entendidas em tirania.


Entre as moscas sanguinárias
a Frutera desembarca,
arrasando o café e as frutas,
em seus barcos que deslizaram
como bandejas o tesouro
de nossas terras submersas.


Enquanto isso, pelos abismos
açucarados dos portos,
caíam índios sepultados
no vapor da manhã:
um corpo roda, uma coisa
sem nome, um número caído,
um ramo de fruta morta
derramada no monturo.



As terras e os homens
Velhos latifundiários incrustados
na terra como ossos
de pavorosos animais,
supersticiosos herdeiros
da encomenda, imperadores
duma terra escura, fechada
com ódio e arame farpado.


Entre as cercas o estame
do ser humano foi afogado,
o menino foi enterrado vivo,
negou-se-lhe o pão e a letra,
foi marcado como inquilino
e condenado aos currais,
Pobre peão infortunado
entre as sarças, amarrado
à não-existência, à sombra
das pradarias selvagens.


Sem livro foste carne inerme,
e em seguida insensato esqueleto,
comptado de uma vida a outra,
rechaçado na porta branca
sem outro amor que uma guitarra
despedaçadora em sua tristeza
e o baile apenas aceso
com rajada molhada.
Não foi porém só nos campos
a ferida do homem, mais longe,
mais perto, mais fundo cravaram:
na cidade, junto ao palácio,
cresceu o cortiço leproso,
pululante de porcaria,
com a sua acusadora gangrena.


Eu vi nos agros recantos
de Talcahuano, nas encharcadas
cinzas dos morros,
ferver as pétalas imundas
da pobreza, a maçaroca
de corações degradados,
a pústula aberta na sombra
do entardecer submarino,
a cicatriz dos farrapos,
e a substância envelhecida
do homem hirsuto e espancado.


Eu entrei nas casas profundas,
como covas de ratos, úmidas
de salitre e de sal apodrecido,
vi seres famintos se arrastarem,
obscuridades desdentadas,
que procuravam me sorrir
através do ar amaldiçoado.


Me atravessaram as dores
de meu povo, se enredaram em mim
como aramados em minh'alma:
me crisparam o coração:
saí a gritar pelos caminhos,
saí a chorar envolto em fumo,
toquei as portas e me feriram
como facas espinhosas,
chamei os rostos impassíveis
que antes adorei como estrelas
e me mostraram seu vazio.


E então me fiz soldado:
número obscuro, regimento,
ordem de punhos combatentes,
sistema da inteligência,
fibra do tempo inumerável,
árvore armada, indestrutível
caminho do homem na terra.


E vi quantos éramos, quantos
estavam a meu lado, não eram
ninguém, eram todos os homens,
não tinham rosto, eram povo,
eram metal, eram caminhos.

E caminhei com os mesmos passos
da primavera pelo mundo.



Os mendigos
Junto às catedrais, atados
ao muro, carrearam
seus pés, seus vultos, seus olhos negros,
seus crescimentos lívidos de gárgulas,
suas latas andrajosas de comida,
e daí, da dura
santidade da pedra,
se fizeram flora da rua, errantes
flores de legais pestilências.


O parque tem seus mendigos
como suas árvores de torturadas
ramagens e raízes:
nos pés do jardim vive o escravo,
como no fim do homem, feito lixo,
aceitada sua impura simetria,
pronto para vassoura da morte.

A caridade o enterra
em seu buraco de terra leprosa:
serve de exemplo ao homem de meus dias.

Deve aprender a pisotear, a afogar
a espécie nos pântanos do desprezo,
a pôr os sapatos na frente
do ser com uniforme de vencido,
ou pelo menos deve compreendê-lo
nos produtos da natureza.

Mendigo americano, filho do ano
de 1948, neto
de catedrais, eu não te venero,
eu não vou colocar marfim antigo,
barbas de rei em tua escrita figura,
como te justificam nos livros,
eu vou te apagar com esperança:
não entrarás em meu amor organizado,
não entrarás em meu peito com os teus,
com os que te criaram cuspindo
tua forma degradada,
eu apartarei tua argila da terra
até que te construam os metais
e saias a brilhar como uma espada.



Os índios
O índio fugiu de sua pele ao fundo
de antiga imensidade de onde um dia
subiu como as ilhas: derrotado,
transformou-se em atmosfera invisível,
foi-se abrindo na terra, derramando
sua secreta marca sobre a areia.


Ele que gastou a lua, ele que penteava
a misteriosa solidão do mundo,
ele que não transcorreu sem erguer-se
em altas pedras coroadas de aragem,
ele que durou como a luz celeste
sob a magnitude de seu arvoredo,
gastou-se de repente até ser fio,
converteu-se em rugas,
esmiuçou suas torres torrenciais
e recebeu seu pacote de farrapos.


Eu o vi nas alturas imantadas
de Amatitlán, roendo as margens
da água impenetrável: andou um dia
sobre a majestade esmagadora
do monte boliviano, com seus restos
de pássaro e raiz.

Eu vi chorar
meu irmão de louca poesia,
Alberti, nos recintos araucanos,
quando o rodearam como a Ercilla
e eram, em lugar daqueles deuses rubros,
uma corrente de mortos cor de cardo.


Mais longe, na rede de água selvagem
da Terra do Fogo,
eu os vi subir, ó mestiços, desgrenhados,
às pirogas rotas
para mendigar o pão no oceano.


Aí foram matando cada fibra
de seus desérticos domínios,
e o caçador de índios recebia
notas sujas para trazer cabeças,
dos donos do ar, dos reis
da nevada solidão antártica.


Os que pagaram os crimes se sentam
hoje no Parlamento, matriculam
seus matrimônios nas presidências,
vivem com os cardeais e os gerentes,
e sobre a garganta apunhalada
dos donos do sul crescem as flores,

Já da Araucania os penachos
foram desbaratados pelo vinho,
puídos pela tasca,
enegrecidos pelos advogados
a serviço do roubo de seu reino,
e aos que fuzilaram a terra,
aos que nos caminhos defendidos
pelo gladiador deslumbrante
de nossa própria orla
entraram disparando e negociando,
chamaram “Pacificadores”
e lhes multiplicaram as dragonas.


Assim perdeu sem ver, assim invisível
foi para o índio o desmoronamento
de sua herdade; não viu os estandartes,
não lançou a girar a flecha ensangüentada,
apenas o roeram pouco a pouco,
magistrados, ratoneiros, abastados,
todos tomaram sua imperial doçura,
todos o enredaram na manta
até que o lançaram a sangrar
aos últimos lamaçais da América.


E das verdes lâminas, do céu
inumerável e puro da folhagem,
da imortal morada construída
com pétalas pesadas de granito,
foi conduzido à cabana rota,
ao árido esgoto da miséria.

Da sua fulgurante desnudez,
dourados peitos, pálida cintura,
ou dos ornamentos minerais
que uniram à sua pele todo o rocio,
foi levado até o fio do andrajo,
repartiram entre eles calças mortas
e assim passeou sua majestade remendada
pela brisa do mundo que foi seu.


Assim foi cometido este tormento.


O feito foi invisível como entrada
de traidor, como impalpável câncer,
até que foi humilhado o nosso pai,
até que o doutrinaram a fantasma
e entrou pela única porta que lhe abriram,
a porta de todos os outros pobres, a de todos
os chicoteados pobres desta terra.



Os juízes
Pelo alto Peru, por Nicarágua,
sobre a Patagônia, nas cidades,
não tiveste razão, não tens nada:
taça de miséria, abandonado
filho das Américas, não há
lei, não há juiz que te proteja
a terra, a casinhola com seus milhos.


Quando chegou a casta dos teus,
dos senhores teus, já esquecido
o sonho antigo de garras e facas,
veio a lei para despovoar teu céu,
para arrancar-te torrões adorados,
para discutir a água dos rios,
para roubar-te o reinado do arvoredo.


Te testemunharam, te puseram selos
na camisa, te forraram
o coração de folhas e papéis,
te sepultaram em éditos frios,
e quando despertaste na fronteira
da mais despenhada desventura,
despossuído, solitário, errante,
te deram calabouço, te amarraram,
te manietaram para que nadando
não saísses da água dos pobres,
mas te afogasses esperneando.


O juiz benigno te lê o inciso
número Quatro Mil, parágrafo Terceiro,
o mesmo usado em toda
a geografia azul que libertaram
outros que foram como tu e tombaram,
e te institui, por seu codicilo
e sem apelação, cão sarnento.


Diz teu sangue, como se entreteceram
o rico e a lei? Com que tecido
de ferro sulfuroso, como foram
caindo os pobres no julgado?

Como se fez a terra tão amarga
para os pobres filhos, duramente
amamentados com pedras e dores?

Assim foi e assim o deixo escrito.

As vidas escreveram-no na minha testa.



III
Os mortos da praça (28 de janeiro de 1946, Santiago do Chile)

Eu não venho chorar aqui onde tombaram:
venho a vós, acudo aos que vivem.

Acudo a ti e a mim e em teu peito bato.

Antes outros tombaram.
Lembras? Sim, lembras.

Outros que os mesmos nomes e sobrenomes tiveram.

Em San Gregorio, em Lonquimay chuvoso,
em Ranquil, derramados pelo vento,
em Iquique, enterrados na areia,
ao longo do mar e do deserto
ao longo da fumaça e da chuva,
dos pampas aos arquipélagos,
foram assassinados outros homens,
outros que se chamavam Antonio como tu
e que eram como tu pescadores ou ferreiros:
carne do Chile, rostos
cicatrizados pelo vento,
martirizados pelo pampa,
firmados pelo sofrimento.


Encontrei pelos muros da pátria,
junto à neve e sua cristalaria,
atrás do rio de ramagem verde,
debaixo do nitrato e da espiga,
uma gota de sangue de meu povo
e cada gota, como o fogo, ardia.



Os massacres
Mas aí o sangue foi escondido
atrás das raízes, foi lavado
e negado
(foi tão longe), a chuva do sul limpou a terra
(tão longe foi), o salitre o devorou no pampa:
e a morte do povo foi como sempre tem sido:
como se não morresse ninguém, nada,
como se fossem pedras que caem
sobre a terra, ou água sobre água.


De norte a sul, onde trituraram
ou queimaram os mortos,
foram nas trevas sepultados,
ou na noite queimados em silêncio,
acumulados numa escarpa
ou no mar cuspidos os seus ossos:
ninguém sabe onde estão agora,
não têm túmulo, estão dispersos
nas raízes da pátria
seus martirizados dedos:
são fuzilados seus corações:
o sorriso dos chilenos:
os valores do pampa:
os capitães do silêncio.


Ninguém sabe onde enterraram
os assassinos estes corpos,
porém sairão da terra
para cobrar o sangue derramado
na ressurreição do povo.


No meio da praça foi o crime.


Não escondeu o matagal o sangue puro
do povo, nem o tragou a areia do pampa.


Ninguém escondeu este crime.


O crime foi no meio da Pátria.



Os homens do nitrato
Eu estava no salitre, com os heróis obscuros,
com o que cava neve fertilizante e fina
na casca dura do planeta,
e apertei com orgulho suas mãos de terra.


Me disseram; “Olha,
irmão, como vivemos
aqui em `Humberstone', aqui em `Mapocho',
em `Ricaventura', em `Paloma',
em `Pan de Azúcar', em `Piojillo' “.


E me mostraram suas rações
de miseráveis alimentos,
seu piso de terra nas casas,
o sol, o pó, os percevejos,
e a solidão imensa.


Vi o trabalho dos raspadores,
que deixam afundada, no cabo
da madeira da pá,
a marca toda de suas mãos.


Escutei uma voz que vinha
do fundo estreito da escarpa,
como de um útero infernal,
e depois assomar em cima
uma criatura sem rosto,
uma máscara poeirenta
de suor, de sangue e pó.


E este me disse: “Aonde fores,
fala destes tormentos,
fala tu, irmão, de teu irmão
que vive embaixo, no inferno”.



A morte
Povo, aqui decidiste dar a tua mão
ao perseguido operário do pampa, e chamaste,
chamaste o homem, a mulher, a criança,
há um ano, até esta praça.

E aqui caiu teu sangue.

No meio da pátria foi vertido,
em frente ao palácio, no meio da rua,
para que todo o mundo o visse
e não pudesse limpá-lo ninguém,
e ficaram suas manchas vermelhas
como planetas implacáveis.


Foi quando mão e mão de chileno
alongaram seus dedos pelo pampa,
e com o coração inteiro
iria a unidade de suas palavras:
foi quando ias, povo, a cantar
uma velha canção com lágrimas,
com esperança e com dores:
veio a mão do verdugo
e empapou de sangue a praça!


Como nascem as bandeiras
Estão assim até hoje nossas bandeiras.

O povo as bordou com sua ternura,
coseu os trapos com seu sofrimento.


Cravou a estrela com sua mão ardente.


E cortou, de camisa ou firmamento,
azul para a estrela da pátria.


O vermelho, gota a gota, ia nascendo.



Eu os chamo
Um por um falarei com eles esta tarde.

Um por um, chegais à recordação,
esta tarde, nesta praça.

Manuel Antonio López,
camarada.


Lisboa Calderón,
outros te traíram, nós continuamos tua jornada.


Alejandro Gutiérrez,
o estandarte que caiu contigo
sobre toda a terra se levanta.


César Tapia,
teu coração está nestas bandeiras,
palpita hoje o vento da praça.


Filomeno Chávez,
nunca apertei a tua mão, mas aqui está a tua mão:
é uma mão pura que a morte não mata.


Ramona Parra, jovem
estrela iluminada,
Ramona Parra, frágil heroína,
Ramona Parra, flor ensangüentada,
amiga nossa, coração valente,
menina exemplar, guerrilheira dourada:
juramos em teu nome continuar esta luta
para que assim floresça teu sangue derramado.



Os inimigos
Aqui eles trouxeram os fuzis repletos
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.


Então, no lugar
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem de sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.


Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.


Para os que salpicaram a pátria de sangue,
peço castigo.


Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.


Para o traidor que ascendeu sobre o crime,
peço castigo.


Para o que deu a ordem de agonia,
peço castigo.


Para os que defenderam este crime,
peço castigo.


Não quero que me dêem a mão
empapada de nosso sangue.

Peço castigo.

Não vos quero como embaixadores,
tampouco em casa tranqüilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.

Quero castigo.



Estão aqui
Hei de chamar aqui como se aqui estivessem.

Irmãos: sabei que a nossa luta
continuará na terra.


Continuará na fábrica, no campo,
na rua, na salitreira.


Na cratera do cobre verde e rubro,
no carvão e sua terrível cova.

Estará a nossa luta em todas as partes,
e em nosso coração, estas bandeiras
que presenciaram vossa morte,
que se empaparam em vosso sangue,
serão multiplicadas como as folhas
da infinita primavera.



Sempre
Ainda que as passadas toquem mil anos este lugar,
não apagarão o sangue dos que aqui tombaram.


E não se extinguirá a hora em que tombastes,
ainda que milhares de vozes cruzem este silêncio.

A chuva há de empapar as pedras da praça,
mas não apagará vossos nomes de fogo.


Mil noites cairão com as suas asas escuras,
sem destruir o dia que esperam estes mortos.


O dia que esperamos ao longo do mundo
tantos homens, o dia final do sofrimento.


Um dia de justiça conquistada na luta,
e vós, irmãos tombados, em silêncio,
estareis conosco nesse vasto dia
da luta final, nesse dia imenso.



IV
Crônica de 1948 (América)

Ano ruim, ano de ratos, ano impuro!

Alta e metálica é a tua linha
na beira do oceano
e do ar, como um arame
de tempestades e tensão.


Porém, América, também és
noturna, azul e pantanosa:
lamaçal e céu, uma agonia
de corações esmagados
como negras laranjas estragadas
em teu silêncio de adega.



Paraguai
Desenfreado Paraguai!
De que serviu a lua pura
iluminando os papéis
da geometria dourada?
Para que serviu o pensamento
herdado das colunas
e dos números solenes?

Para este buraco oprimido
de sangue apodrecido, para
este fígado equinocial
arrebatado pela morte.

Para Moríñigo reinante,
sentado sobre as prisões
em seu açude de parafina,
enquanto as penas escarlates
dos colibris elétricos
voam e fulguram sobre
os pobres mortos da selva.


Mau ano, ano de rosas deterioradas,
ano de carabinas, mira, sob teus olhos
não te cegue
o alumínio do avião, a música
de sua velocidade seca e sonora:
mira teu pão, tua terra, tua multidão gasta,
tua estirpe rota!
Vês esse vale
verde e cinza do alta do céu?
Pálida agricultura, mineração
em farrapos, silêncio e pranto
corno a trigo, caindo
e nascendo
em uma eternidade malvada.



Brasil
Brasil, o Dutra, o pavoroso
Peru das terras quentes,
Engordado pelos amargos
Ramos do ar venenoso:
Sapo dos negros lameiros
De nossa lua americana:
Botões dourados, olhinhos
De rato cinzento arroxeado:
Ó Senhor, dos intestinos
De nossa pobre mãe faminta,
De tanto sonho e resplandescentes
Libertadores, de tanto
Suor sobre os buracos
Da mina, de tanta e tanta
Solidão pelas plantações,
América, ergues subitamente
A tua claridade planetária
Um Dutra arrancado ao fundo
De teus répteis, de tua surda
Profundidade e pré-história.


E assim foi!
Pedreiros
Do Brasil, golpeai a fronteira,
Pescadores, chorai a noite
Sobre as águas litorâneas,
Enquanto Dutra, com seus pequenos
Olhos de porco-do-mato,
Quebra a imprensa de machadinha,
Queima os livros na praça,
Encarcera, persegue e fustiga
Até que o silêncio se faz
Em nossa noite tenebrosa.



Cuba
Em cuba estão assassinando!

Já têm Jesús Menéndez
Num caixão recém-comprado
Ele saiu, como um rei, do povo,
e andou espiando raízes,
detendo os transeuntes,
batendo no peito dos adormecidos,
estabelecendo as idades,
compondo as almas partidas,
e levantando do açúcar
os sangrentos canaviais,
o suor que apodrece as pedras,
perguntando pelas cozinhas
pobres: quem és? quanto comes?,
tocando este braço, esta ferida,
e acumulando estes silêncios
numa única voz, a rouca
voz entrecortada de Cuba.


Assassinou-o um capitãozinho,
um generalzinho: num trem
lhe disse: vem, e pelas costas
fez fogo o generalzinho,
para que calasse a voz
rouca dos canaviais.



América Central
Mau ano, vês além da espessa
sombra de matagais a cintura
de nossa geografia?
Uma onda estrela,
como una favo, suas abelhas azuis
de encontro à cesta e voam os clarões
do duplo mar sobre a terra estreita.
.
.


Delgada terra como um látego,
açoitada como um tormento,
teu passo em Honduras, teu sangue
cm São Domingos, à noite,
teus olhos em Nicarágua,
me tocam, me chamam, me exigem,
e pela terra americana
toco as portas para falar,
toco as línguas amarradas,
levanto as cortinas, afundo
a mão dentro no sangue:

Oh, dores
de minha terra, oh, estertores
do grande silêncio estabelecido,
oh, povos de longa agonia,
oh, cintura de soluços.



Porto Rico
Mr.
Truman chega à ilha
de Porto Rico,
vem à água
azul de nossos mares puros
para lavar seus dedos sangrentos.

Acaba de ordenar a morte
de duzentos jovens gregos,
suas metralhadoras funcionam
estritamente,
cada dia
por suas ordens as cabeças
dóricas - uva e azeitona -,
olhos do mar antigo, pétalas
da corola corintiana,
tombam no pó grego.

Os assassinos
erguem a taça
doce de Chipre com os
peritos norte-americanos,
entre grandes gargalhadas, com
os bigodes gotejantes
de azeite frito e sangue grego.


Truman a nossas águas chega
para lavar as mãos vermelhas
de sangue longínquo.
Enquanto
decreta, prega e sorri
na universidade, em seu idioma,
fecha a boca castelhana,
cobre a luz das palavras
que ali circularam como um
rio de estirpe cristalina
e estatui: “Morte para a tua língua,
Porto Rico”.



Grécia
(O sangue grego
desce a esta hora.
Amanhece
nas colinas.

É um simples
arroio entre o pó e as pedras:
os pastores pisam o sangue
de outros pastores:
é um simples
fio delgado que desce
dos montes para o mar,
até o mar que ele conhece e canta.
)

.
.
.
A tua terra, a teu mar volta os olhos,
olha a claridade nas austrais
águas e neves, constrói o sol as uvas,
brilha o deserto, o mar do Chile surge
com sua linha ferida.
.
.


Em Lota estão as baixas minas
do carvão: é um porto frio,
do grave inverno austral, a chuva
cai e cai sobre os tetos, asas
de gaivotas cor de névoa,
e sob o mar sombrio o homem
cava e cava o recinto negro.

A vida do homem é escura
como o carvão, noite andrajosa,
pão miserável, duro dia.


Eu pelo mundo andei longamente,
porém jamais pelos caminhos
ou pelas cidades, jamais vi
homens mais maltratados.

Doze dormem num quarto.

As habitações têm
tetos de restos sem nome:
pedaços de latas, pedras,
papelões, papéis molhados.

Crianças e cães, no vapor
úmido da estação fria,
se juntam até se dar o fogo
da pobre vida um dia
será outra vez fome e trevas.



Os tormentos
Uma greve mais, os salários
Não dão, as mulheres choram
Nas cozinhas, os mineiros
Juntam uma a uma suas mãos
E sua dores.


É a greve
Dos que sob o mar escavaram,
Estendidos na cova úmida,
E extraíram com sangue e força
O torrão negro das minas.

Desta vez vieram soldados.

Arrebentaram suas casas, à noite,
E os conduziram para as minas
Como a um presídio e saquearam
A pobre farinha que guardavam,
O grão de arroz dos filhos.


Depois, batendo nas paredes,
Os exilaram, os afogaram,
Os encurralaram, marcando-os
Como bestas, e pelos caminhos
Num êxodo de dores,
Os capitães do carvão
Viram seus filhos expulsos,
Derrubadas suas mulheres,
E centenas de mineiros
Trasladados, encarcerados
Na Patagônia, no frio antártico,
Ou nos desertos de Pisagua.



O traidor
E por cima destas desventuras
Um tirano que sorria
Cuspindo nas esperanças
Dos mineiros traídos.

Cada povo com suas dores.

cada luta com seus tormentos,
mas vinde aqui dizer-me
se entre os sanguinários,
entre todos os desmandados
déspotas, coroados de ódio,
com cetros de látegos verdes,
foi algum como o do Chile?

Este traiu pisoteando
suas promessas e seus sorrisos,
este do asco fez o seu cetro,
este bailou sobre as dores
de seu pobre povo cuspido.


E quando nas prisões cheias
por seus desleais decretos
se acumularam olhos negros
de agravados e ofendidos,
ele dançava em Viña del Mar,
rodeado de jóias e taças.


Mas os olhos negros olham
através da noite negra.


Que fizeste tu? Não veio tua palavra
para o irmão das minas profundas,
para a dor dos atraiçoados,
não veio a ti a sílaba de chamas
para defender e clamar por teu povo?


Acuso
Acusei então o que havia
estrangulado a esperança,
chamei os rincões da América
e pus seu nome na cova
das desonras.

Então crimes
me reprocharam, a matilha
dos vendidos e alugados:
os “secretários do governo”,
os polícias, escreveram
com piche seu espesso insulto
contra mim, mas as paredes
miravam quando os traidores
escreviam com grandes letras
meu nome, e a noite apagava, com suas mãos inumeráveis,
mãos do povo e da noite,
a ignomínia que em vão
quiseram lançar em meu canto.


Foram à noite então queimar
minha casa (o fogo marca agora
o nome de quem os enviara),
e os juízes se uniram todos
para condenar-me, buscando-me,
para crucificar minhas palavras
e castigar estas verdades.


Fecharam as cordilheiras
do Chile para que eu não partisse
a contar o que aqui acontece,
e quando o México abriu suas portas
para receber-me e guardar-me,
Torres Bodet, pobre poeta,
ordenou que me entregassem
aos carcereiros furiosos.


Mas minha palavra está viva,
e meu livre coração acusa.


Que acontecerá? Que acontecerá? Na noite
de Pisagua, o cárcere, as cadeias,
o silêncio, a pátria envilecida,
e este mau ano, ano de ratazanas cegas,
este mau ano de ira e de rancores,
que acontecerá, perguntas, me perguntas?


O povo vitorioso
Está meu coração nesta luta.

Meu povo vencerá.
Todos os povos
vencerão, um por um.

Estas dores
se espremerão como lenços até
esmagar tantas lágrimas vertidas
em socavões do deserto, em túmulos,
em escalões do martírio humano.

Mas perto está o tempo vitorioso.

Que sirva o ódio para que não tremam
as mãos do castigo,
que a hora
chegue a seu horário no instante puro,
e o povo encha as ruas vazias
com suas frescas e firmes dimensões.


Aqui está minha ternura para então.

Vós a conheceis.
Não tenho outra bandeira.




V González Videla, o traidor do Chile (epílogo) (1949)

Das antigas cordilheiras saíram os verdugos,
como ossos, como espinhos americanos no hirsuto lombo
duma genealogia de catástrofes: estabelecidos foram,
enquistados na miséria de nossas povoações.

Cada dia o sangue manchou seus alamares.


Das cordilheiras como bestas ossudas
foram procriados por nossa argila negra.

Aqueles foram os sáurios tigres, os dinastas glaciais,
recém-saídos de nossas cavernas e de nossas derrotas.

Assim desenterraram os maxilares de Gómez
sob os caminhos manchados por cinqüenta anos de nosso sangue.


A besta escurecia as terras com suas costelas
quando depois das execuções retorcia os bigodes
junto ao embaixador norte-americano que lhe servia o chá.


Os monstros envileceram, mas não foram vis.

Agora no rincão que a luz reservou à pureza,
na nevada pátria branca de Araucania,
um traidor sorri sobre um trono apodrecido.


Em minha pátria preside a vileza.


É González Videla a ratazana que sacode
o seu pelame cheio de esterco e de sangue
sobre a terra minha que vendeu.
Cada dia
tira de seus bolsos as moedas roubadas
e pensa se amanhã venderá terras ou sangue.

Tudo traiu.

Subiu como um rato aos ombros do povo
e dali, roendo a bandeira sagrada
de meu país, ondula sua cauda roedora
dizendo ao abastado, ao estrangeiro, dono
do subsolo do Chile: “Bebei o sangue todo
deste povo, eu sou o mordomo dos suplícios”.

Triste clown, miserável
mescla de mono e rato, cujo rabo
penteiam em Wall Street com pomada de ouro,
não passarão os dias sem que caias do galho
e passes a ser o montão de imundície evidente
que o transeunte evita pisar nas esquinas!

Assim foi.
A traição foi governo do Chile.

Um traidor deixou seu nome em nossa história.

Judas arvorando dentes de caveira
vendeu o meu irmão,
deu veneno a minha pátria,
fundou Pisagua, demoliu nossa estrela,
cuspiu nas cores duma bandeira pura.


Gabriel González Videla.
Aqui deixo seu nome,
para que, quando o tempo haja apagado
a ignomínia, quando minha pátria limpar
seu tosto iluminado pelo trigo e pela neve,
mais tarde, os que aqui buscarem a herança
que nestas linhas deixo como uma brasa verde
encontrem também o nome do traidor que trouxe
a taça de agonia que rechaçou o meu povo.


Meu povo, povo meu, ergue teu destino!
Rompe o cárcere, abre os muros que te encerram!
Esmaga o passo torvo da ratazana que comanda
do palácio: ergue tuas lanças à aurora,
e no mais alto deixa que a tua estrela iracunda
fulgure, iluminando os caminhos da América.


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Canto IX - Que acorde o lenhador

I
Que acorde o lenhador

A oeste do Colorado River
há um lugar que amo.
Acorro ali com tudo o que palpitando
transcorre em mim, com tudo
o que fui, o que sou, o que mantenho.
Há umas altas pedras vermelhas, o ar
selvagem de mil mãos
as fez edificar estruturas:
o escarlate cego subiu do abismo
e nelas se fez cobre, fogo e força.
América estendida como a pele do búfalo,
aérea e clara noite do galope,
lá para as alturas estreladas,
bebo a tua taça de verde orvalho.

Sim, por acre Arizona e Wisconsin nodoso,
até Milwaukee levantada contra o vento e a neve
ou nos excitados pântanos de West Palm,
perto dos pinheirais de Tacoma, no espesso
odor de aço de teus bosques,
andei pisando terra mãe,
folhas azuis, pedras de cachoeira
, furacões que tremiam como toda música,
rios que rezavam como os monastérios,
marrecos e maçãs, terras e águas,
infinita quietude para que o trigo nasça.

Ali pude, em minha pedra central, estender ao ar
olhos, ouvidos, mãos, até ouvir
livros, locomotivas, neve, lutas,
fábricas, tumbas, vegetais, passos,
e de Manhattan a lua no navio,
o canto da máquina que fia,
a colher de ferro que come terra,
a perfuratriz com seu golpe de condor
e tudo o que corta, oprime, corre cose:
seres e rodas repetindo e nascendo.

Amo o pequeno lar do farmer. Recentes mães dormem
aromadas como o xarope do tamarindo, os panos
recém-passados. Arde
o fogo em mil lares rodeados de cebolas
. (Os homens quando cantam perto do rio têm
uma voz rouca como as pedras do fundo:
o tabaco saiu de suas largas folhas
e como um duende do fogo chegou a estes lares.)
Vinde para dentro de Missouri, olhai o queijo e a farinha,
as tábuas olorosas, rubras como violinos,
o homem navegando a cevada,
o potro azul recém-montado cheira
o aroma do pão e da alfafa:
sinos, papoulas, ferrarias,
e nos destrambelhados cinemas silvestres
o amor abre a sua dentadura
no sonho nascido da terra.
É tua paz que amamos, não a tua máscara.
Não é formoso o teu rosto guerreiro.
És formosa e vasta, América do Norte.
Vens de humilde berço como uma lavadeira,
junto de teus rios, branca.
Edificada no desconhecido,
em tua paz de colmeia o doce teu.
Amamos o teu homem com as mãos vermelhas
do barro de Oregon, teu menino negro
que te trouxe a música nascida
em sua comarca de marfim: amamos
tua cidade, tua substância,
tua luz, teus mecanismos, a energia
do oeste, o pacífico
mel, de colmeal e aldeia,
o gigante jovem no trator,
a aveia que herdaste
de Jefferson, a roda rumorosa
que mede a tua terrestre oceania,
o fumo de uma fábrica e o beijo
número mil de uma colônia nova:
teu sangue lavrador é o que amamos:
a tua mão popular cheia de azeite.

Sob a noite dos prados já faz tempo
repousam sobre a pele do búfalo em grave
silêncio as sílabas, o canto
do que fui antes de ser, do que fomos.
Melville é um abeto marinho, de seus ramos
nasce uma curva de carena, um braço
de madeira e navio. Whitman inumerável
como os cereais, Poe em sua matemática
treva, Dreiser, Wolfe,
frescas feridas de nossa própria ausência,
Lockridge recente, atados à profundidade,
quantos outros, atados à sombra:
sobre eles a mesma aurora do hemisfério arde
e deles está feito o que somos,
Poderosos infantes, capitães cegos,
entre acontecimentos e folhagens às vezes amedrontados,
interrompidos pela alegria e pela dor,
sob os prados cruzados de tráfico,
quantos mortos nas planícies antes não visitadas:
inocentes atormentados profetas recém-impressos,
sobre a pele do búfalo dos prados.

Da França, de Okinawa, das coralinas
de Leyte (Norman Mailer o deixou escrito),
do ar enfurecido e das ondas,
retornaram quase todos os rapazes
. Quase todos ... Foi verde e amarga a história
de lama e suor: não ouviram
bastante o canto dos arrecifes
nem tocaram talvez a não ser para morrer nas ilhas, as coroas
de fulgor e fragrância:
sangue e esterco
os perseguiram, a imundície e as ratazanas,
e um cansado e desolado coração que lutava.
Mas já voltaram,
os recebestes
no vasto espaço das terras estendidas
e se fecharam (os que voltaram) como uma corola
de inumeráveis pétalas anônimas
para renascer e olvidar.


II
Mas além disso encontraram
um hóspede em casa,
ou trouxeram novos olhos (ou foram cegos antes)
ou a hirsuta ramaria lhes rompeu as pálpebras
ou novas coisas há nas terras da América.
Aqueles negros que combateram contigo, os
duros e sorridentes, olhai:
puseram uma cruz ardendo
diante de seus casarios,
enforcaram e queimaram o teu irmão de sangue:
fizeram-no combatente, hoje lhe negam
palavra e decisão: juntam-se
à noite os verdugos
encapuzados, com a cruz e o chicote.
(Outra coisa
se ouvia em além-mar combatendo.)
Um hóspede imprevisto

como um velho octópode roído,
imenso, circundante,
instalou-se em tua casa, soldadinho:
a imprensa destila o antigo veneno, cultivado em Berlim .
Os jornais (Times, Newsweek, etc.) converteram-se
em amarelas folhas de delação: Hearst,
que cantou o canto de amor aos nazistas, sorri
e afia as unhas para que partais de novo
para os arrecifes ou para as estepes
a combater por este hóspede que ocupa a tua casa.
Não te dão trégua: querem continuar vendendo
aço e balas, preparam uma nova pólvora
e é preciso vendê-la logo, antes que lhe passe à frente
a fresca pólvora e caia em novas mãos.
Por todas as partes os amos instalados
em tua mansão aumentam suas falanges,
amam a Espanha negra e uma taça de sangue te oferecem
(um fuzilado, cem): o coquetel Marshall.
Escolhei sangue jovem: camponeses
da China, prisioneiros
da Espanha,
sangue e suor de Cuba açucareira,
lágrimas de mulheres,
das minas de cobre e do carvão no Chile,
logo batei com energia
como um golpe de garrote
não esquecendo pedacinhos de gelo e algumas gotas
do canto Defendemos a cultura cristã.
É amarga esta mistura?
Já te acostumarás, soldadinho, a bebe-la.
Em qualquer lugar do mundo, à luz da lua,
ou pela manhã, no hotel de luxo,
pede esta bebida que dá vigor e refresca
e paga-a com uma boa nota
com a imagem de Washington.

Descobriste também que Charlie Chaplin, o último
pai da ternura no mundo,
deve fugir, e que os escritores (Howard Fast, etc.),
os sábios e os artistas
em tua terra
devem sentar-se para ser julgados por “un-american” pensamentos
diante dum tribunal de mercadores enriquecidos pela guerra.
Até os últimos confins do mundo chega o medo.
Minha tia lê essas notícias assustada,
e todos os olhos da terra olham
para esses tribunais de vergonha e vingança.
São os estrados dos Babbits sangrentos, `
dos escravagistas, dos assassinos de Lincoln,
são as novas inquisições levantadas agora
não pela cruz (e então era horrível e inexplicável)
mas pelo ouro redondo que bate
nas mesas dos prostíbulos e nos bancos
e que não tem, o direito de julgar.

Em Bogotá uniram-se Moríñigo, Trujillo,
González Videla, Somoza, Dutra, e aplaudiram.
Tu, jovem americano, não os conheces: são
os vampiros sombrios de nosso céu, amarga
é a sombra de suas asas:
prisões,
martírio, morte, ódio: as terras
do sul com petróleo e nitrato
conceberam monstros.
À noite no Chile, em Lota,
na humilde e molhada casa dos mineiros,
chega a ordem do verdugo. Os filhos
acordam chorando.
Milhares deles
encarcerados, pensam.
No Paraguai
a densa sombra florestal esconde
os ossos do patriota assassinado, um tiro
soa
na fosforescência do verão.
Morreu
ali a verdade.
Por que não intervêm
em São Domingos para defender o Ocidente Mr. Vandenberg,
Mr. Armour, Mr. Marshall, Mr. Hearst?
Por que na Nicarágua o senhor presidente,
despertado à noite, atormentado, teve
de fugir para morrer no desterro?
(Ali há bananas a defender e não liberdades,
e para isso basta Somoza.)
As grandes
vitoriosas idéias estão na Grécia
e na China para auxílio
de governos manchados como alfombras imundas.
Ai, soldadinho!
 

III
Também eu mais além de tuas terras, América,
ando e faço minha casa errante, vôo, passo,
canto e converso através dos dias.
Na Ásia, na URSS, nos Uraís me detenho
e estendo minha alma empapada de soledades e resina.
Amo o quanto nos espaços
a golpes de amor e luta o homem criou.
Ainda rodeia a minha casa nos Urais
a antiga noite dos pinheiros
e o silêncio como uma alta coluna.
Trigo e aço aqui nasceram
da mão do homem, de seu peito.
E um canto de martelos alegra o bosque antigo
como um novo fenômeno azul.
Daqui olho extensas zonas do homem,
geografia de meninos e mulheres, amor,
fábricas e canções, escolas
que brilham como goivos na selva
onde morou até ontem a raposa selvagem.
Daquele ponto abarca a minha mão no mapa
o verde dos prados, o fumo
de mil oficinas, os aromas
têxteis, o assombro
da energia dominada.
Volto nas tardes
pelos novos caminhos recém-traçados
e entro nas cozinhas
onde ferve o repolho e de onde sai
um novo manancial para o mundo.
Também aqui regressaram os rapazes,
mas muitos milhões ficaram atrás,
enganchados, pendurados nas forcas,
queimados em fornos especiais,
destruídos até não ficar deles
mais que o nome na lembrança.
Também foram assassinadas suas povoações:
a terra soviética foi assassinada:
milhões de vidros e ossos se confundiram,
vacas e fábricas, até a primavera
desapareceu tragada pela guerra.
Voltaram os rapazes, no entanto,
e o amor pela pátria construída
se havia mesclado neles com tanto sangue
que Pátria dizem com as veias,
União Soviética cantam com o sangue.
Foi alta a voz dos conquistadores
da Prússia e de Berlim quando voltaram
para que renascessem as cidades,
os animais e a primavera.

Walt Whitman, ergue a tua barba de relva,
olha comigo do bosque,
destas magnitudes perfumadas.
Que vês aí, Walt Whitman?
Vejo, me diz meu irmão profundo,
vejo como trabalham as usinas,
nas cidades que os mortos recordam,
na capital pura,
na resplandecente Stalingrado.
Vejo da planície combatida
do padecimento e do incêndio
nascer na umidade da manhã
um trator rechinante na direção das planuras.
Dá-me a tua voz e peso de teu peito enterrado,
Walt Whitman, e as graves
raízes de teu rosto
para cantar estas reconstruções!
Cantemos juntos o que se levanta
de todas as dores, o que surge
do grande silêncio, da grave
vitória:
Stalingrado, surge a tua voz de aço,
renasce andar por andar a esperança
como uma habitação coletiva,
e há um tremor de novo em marcha
ensinando,
cantando
e construindo.
Do sangue surge Stalingrado
como uma orquestra de água, pedra e ferro
e o pão renasce nas padarias,
a primavera nas escolas,
sobe novos andaimes, novas árvores,
enquanto o velho e férreo Volga palpita.
Estes livros,
em frescas caixas de pinho e cedro,
estão reunidos sobre o túmulo
dos verdugos mortos:
estes teatros feitos nas ruínas
cobrem martírio e resistência:
livros claros como monumentos:
um livro sobre cada herói,
sobre cada milímetro de morte,
sobre cada pétala desta glória imutável.

União Soviética, se juntássemos
todo o sangue derramado em tua luta,
todo o que deste como mãe ao. mundo
para que a liberdade agonizante vivesse,
teríamos um novo oceano,
grande como nenhum outro,
profundo como nenhum outro,
vivente como todos os rios,
ativo como o fogo dos vulcões araucanos.
Neste mar mergulha a tua mão,
homem de todas as terras,
e levanta-a depois para afogar nele
aquele que esqueceu, que ultrajou,
o que mentiu e o que manchou,
o que se uniu com cem pequenos cachorros
da lixeira do Ocidente
para insultar o teu sangue, Mãe dos livres!

Do fragrante odor dos pinheiros urais
olho a biblioteca que nasce
no coração da Rússia,
o laboratório no qual o silêncio
trabalha, olho os trens que levam
madeira e canções a novas cidades,
e nesta paz balsâmica cresce um latejar
como em novo peito:
à estepe moças e pombas
regressam agitando a brancura,
os laranjais se povoam de ouro:
o mercado tem hoje
a cada amanhecer
um novo aroma,
um novo aroma que chega das altas terras
nas quais o martírio foi maior:
os engenheiros fazem tremular o mapa
das planícies com os seus números
e as tubulações se envolvem como longas serpentes
nas terras do novo inverno vaporoso.
Em três aposentos do velho Kremlin
vive um homem chamado José Stálin.
Tarde se apaga a luz de seu quarto.
O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.
Outros heróis deram à luz uma pátria,
ele além disso ajudou a conceber a sua,
a edificá-la,
a defendê-la.
Sua imensa pátria é, pois, parte dele mesmo
e não pode descansar porque ela não descansa.
Em outro tempo a neve e a pólvora
o encontraram diante dos velhos bandidos
que quiseram (como agora mais uma vez) reviver
o knut, e a miséria, a angústia dos escravos,
a dor adormecida de milhões de pobres.
Ele esteve contra os que como Wrangel e Denikin
foram enviados do Ocidente para “defender a cultura”.
Lá deixaram o couro aqueles defensores
dos verdugos, e no vasto terreno
da URSS, Stálin trabalhou noite e dia.
Porém mais tarde chegaram numa onda de chumbo
os alemães cevados por Chamberlain.
Stálin os enfrentou em todas as vastas fronteiras,
em todas as retiradas, em todos os assaltos
e até Berlim os seus filhos como um furacão de povos
chegaram e levaram a paz vasta da Rússia.

Molotov e Vorochilov
lá estão, eu os vejo,
com os outros, os altos generais,
os indomáveis.
Firmes como nevadas azinheiras.
Nenhum deles tem palácios.
Nenhum deles tem regimentos de servos.
Nenhum deles se tornou rico na guerra
vendendo sangue.
Nenhum deles vai como um pavão real
ao Rio de Janeiro ou a Bogotá
comandar pequenos sátrapas manchados de tortura:
nenhum deles tem duzentos trajes:
nenhum deles tem ações em fábricas de armamentos,
e todos eles têm
ações
na alegria e na construção
do vasto país onde ressoa a aurora
erguida na noite da morte.
Eles disseram “camarada” ao mundo.

Eles fizeram rei o carpinteiro.
Por essa agulha não entrará um camelo.
Lavaram as aldeias.
Repartiram a terra.
Elevaram o servo.
Apagaram o mendigo.
Aniquilaram os cruéis.
Fizeram luz na espaçosa noite.
 
Por isso a ti, moça de Arkansas, ou, melhor ainda,
a ti, jovem dourado de West Point, ou, melhor,
a ti, mecânico de Detroit, ou, ainda,
a ti, carregador da velha Orleans, a todos
falo e digo: firma teu passo,
abre teu ouvido ao vasto mundo humano,
não são os elegantes do State Department
nem os ferozes donos do aço
os que te estão falando,
mas um poeta do extremo sul da América,
filho dum ferroviário da Patagônia,
americano como o ar andino,
hoje fugitivo duma pátria na qual
o cárcere, o tormento, a angústia imperam
enquanto o cobre e o petróleo lentamente
se convertem em ouro para reis alheios.
Tu não és
o ídolo que numa mão leva o ouro
e na outra a bomba.
Tu és
o que sou, o que fui, o que devemos
amparar, o fraternal subsolo
da América puríssima, os singelos
homens dos caminhos e das ruas.
Meu irmão Juan vende sapatos
como o teu irmão John,
minha irmã Juana descasca batatas,
como a tua prima Jane,
e meu sangue é mineiro e marinheiro
como o teu sangue, Peter.

Tu e eu vamos abrir as portas
para que passe a brisa dos Urais
através da cortina de tinta,
tu e eu vamos dizer ao furioso:
“My dear guy, daqui não passarás”,
daqui pra cá a terra nos pertence
para que não se ouça a rajada
da metralhadora, porém uma
canção, e outra canção, e outra canção.



IV
Porém se armas as tuas hostes, América do Norte,
para destruir essa fronteira pura
e levar o magarefe de Chicago
ao governo da música e da ordem
que amamos,
sairemos das pedras e do ar
para morder-te:
sairemos da última janela
para derramar-te fogo:
sairemos das ondas mais profundas
para cravar-te com espinhos:
sairemos do eito para que a semente
golpeie como um punho colombiano,
sairemos para negar-te pão e água,
sairemos para queimar-te no inferno.

Não ponhas então o pé, soldado,
na doce França, porque lá estaremos
para que as verdes vinhas dêem vinagre
e as moças pobres te mostrem o local
no qual está fresco o sangue alemão.
Não subas pelas secas serras da Espanha
porque cada pedra se converterá em fogo,
e lá mil anos combaterão os valentes:
não te percas entre os olivais porque
nunca tornarás a Oklahoma, mas não entres
na Grécia, que até o sangue que hoje estás derramando
se levantará da terra para deter-vos.
Não venhais pescar então em Tocopilla
porque o peixe-espada conhecerá vossos despojos
e o obscuro mineiro da Araucania
procurará as antigas flechas cruéis
que esperam enterradas novos conquistadores.
Não confieis no gaúcho cantando uma vidalita,
nem no operário dos frigoríficos. Eles
estarão em todas as partes com olhos e punhos,
como os venezuelanos que vos esperam nessa ocasião
com uma garrafa de petróleo e uma guitarra nas mãos.
Não entres, não entres tampouco na Nicarágua.
Sandino dorme na selva até tal dia,
seu fuzil se encheu de cipós e de chuva,
seu rosto não tem pálpebras,
mas as feridas com que o matastes estão vivas
como as mãos de Porto Rico que esperam
as luzes das facas.
Será implacável o mundo para vós.
Não só as ilhas serão despovoadas, mas o ar
que já conhece as palavras que lhe são queridas.

Não chegues a pedir carne de homem
no alto Peru: na névoa roída dos monumentos
o doce antepassado de nosso sangue afia
contra ti as suas espadas de ametista,
e pelos vales o rouco caracol de batalha
congrega os guerreiros, os fundeiros
filhos de Amaru. Nem pelas cordilheiras mexicanas
busques homens para levá-los a combater a aurora;
os fuzis de Zapata não estão dormidos,
são azeitados e apontados para as terras do Texas.
não entres em Cuba, que do fulgor marinho
dos canaviais suarentos
há um único escuro olhar que te espera
e um único grito até matar ou morrer.
Não chegues
à terra de partisanos na rumorosa
Itália: não passes das filas dos soldados com jacquet
que manténs em Roma, não passes de São Pedro:
além os santos rústicos das aldeias,
os santos marinheiros do pescado
amam o grande país da estepe
no qual floresceu de novo o mundo.
Não toques
nas pontes da Bulgária, não te darão passagem,
os rios da Romênia, jogaremos neles sangue fervendo
para que queimem os invasores:
não cumprimentes o camponês que hoje conhece
os túmulos dos feudais, e vigia
com seu arado e seu rifle: não olhes para ele
porque te queimará como uma estrela.
Não desembarques
na China: já não existirá Chang, o Mercenário,
rodeado de sua apodrecida corte de mandarins:
haverá para esperar-vos uma selva
de foices labregas e um vulcão de pólvora.
Em outras guerras existiram fossos com água
e depois cercas de arame, com puas e garras,
mas este fosso é maior; estas águas mais fundas,
estes arames mais invencíveis que todos os metais.
São um átomo e outro do metal humano,
são um nó e mil nós de vidas e vidas:
são as velhas dores dos povos
de todos os remotos vales e reinos,
de todas as bandeiras e navios,
de todas as covas onde foram amontoados,
de todas as redes que saíram contra a tempestade,
de todas as ásperas rugas da terra,
de todos os infernos nas quentes caldeiras,
de todos os teares e das fundições,
de todas as locomotivas perdidas ou congregadas.
Este arame dá mil voltas no mundo:
parece dividido, desterrado,
e de repente se juntam seus ímãs
para encher a terra.
Porém ainda
mais longe, radiantes e determinados,
acerados, sorridentes,
para cantar ou combater
vos esperam
homens e mulheres da tundra e da taiga,
guerreiros do Volga que venceram a morte,
meninos de Stalingrado, gigantes da Ucrânia,
toda uma vasta e alta parede de pedra e sangue,
ferro e canções, coragem e esperança.
Se tocardes neste muro caireis
queimados como o carvão das usinas
, os sorrisos de Rochester se farão trevas
que logo a neve enterrará a brisa da estepe
e logo a neve enterrará para sempre.
Virão os que lutaram desde Pedro
Até os novos heróis que assombraram a terra
E farão de suas medalhas pequenas balas frias
Que silvarão sem trégua de toda
A vasta terra que hoje é alegria.
E do laboratório coberto de trepadeiras
Sairá também o átomo desencadeado
Na direção de vossas cidades orgulhosas.

 

V
Que nada disso aconteça.
Que desperte o Lenhador.
Que venha Abraham com seu machado
E com o seu prato de madeira
Para comer com os camponeses.
Que a sua cabeça de córtice,
Seus olhos vistos nas tábuas,
Nas rugas do carvalho,
Voltem a olhar o mundo
Subindo sobre as folhagens,
Mais altos que as sequóias.
Que entre para comprar nas farmácias,
Que tome um ônibus em Tampa,
Que morda uma maçã amarela,
Que entre num cinema, que converse
Com toda a gente simples.

Que desperte o Lenhador.

Que venha Abraham, que faça crescer
Seu velho fermento a terra
Dourada e verde de Illinois,
E levante o machado no meio do seu povo
Contra os novos escravagistas,
Contra o chicote do escravo,
contra o veneno da imprensa,
contra a mercadoria
sangrenta que querem vender.
Que marchem cantando e sorrindo
o jovem branco, o jovem negro,
contra as paredes de ouro,
contra o fabricante de ódio,
contra o mercador de sangue,
cantando, sorrindo e vencendo.

Que desperte o Lenhador.

VI
Paz para os crepúsculos que chegam,
paz para a ponte, paz para o vinho,
paz para as letras que me procuram
e que em meu sangue sobem enredando
v velho canto com terra e amores,
paz para a cidade na manhã
quando desperta o pão, paz para o rio
Mississípi, rio das raízes:
paz para a camisa de meu irmão,
paz para o livro como um selo de aragem,
paz para o grande colcós de Kíev,
paz para as cinzas destes mortos
e destes outros mortos, paz para o ferro
negro de Brooklyn, paz para o carteiro
de casa em casa como o dia,
paz para o coreógrafo que grita
com um megafone, às campanhas,
paz para a minha mão direita,
que só quer escrever Rosario:
paz para o boliviano secreto
como uma pedra de estanho, paz
para que tu te cases, paz para todas
as serrarias de Bío-Bío,
paz para o coração dilacerado
da Espanha guerrilheira:
paz para o pequeno museu de Wyoming,
no qual o mais doce
é um travesseiro com um coração bordado,
paz para o padeiro e seus amores
e paz para a farinha: paz
para todo o trigo que deve nascer,
para todo o amor que buscará folhagem,
paz para todos os que vivem: paz
para todas as terras e todas as águas.


Aqui eu me despeço, volto
para casa, em meus sonhos,
volto para a Patagônia, onde
o vento bate nos estábulos
e respinga e gela o oceano.

Não sou mais que um poeta: amo todos vós,
ando errante pelo mundo que amo:
em minha pátria encarceram mineiros
e os soldados mandam nos juízes.

Porém eu amo até as raízes
de meu pequeno país frio.

Se tivesse que morrer mil vezes
lá quero morrer:
se tivesse de nascer mil vezes
lá quero nascer,
perto da araucária selvagem,
do vendaval do vento sul,
dos sinos recém-comprados.

Que ninguém pense em mim.

Pensemos na terra toda,
batendo com amor na mesa.

Não quero que volte o sangue
a empapar o pão, os feijões,
a música: quero que venha
comigo, o mineiro, a menina,
o advogado, o marinheiro,
o fabricante de bonecas,
que entremos no cinema e saiamos
para beber o vinho mais rubro.


Não venho para resolver nada.


Vim aqui para cantar
e para que cantes comigo.

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Canto XI - As flores de Punitaqui

I
O vale das pedras ( 1946)

Hoje caíu, 25 de abril,
sobre os campos de Ovalle,
a chuva esperada, a água de 1946.


Nesta primeira quinta-feira molhada, um dia de vapor
constrói sobre os cerros sua cinzenta ferragem.

É esta quinta-feira das pequenas sementes
que em suas bolsas guardaram os camponeses famintos:
hoje apressadamente furarão a terra e nela
deixarão cair seus grãozinhos de verde vida.


Ainda ontem subi o rio Hurtado acima:
acima, entre os ásperos cerros impertinentes,
eriçados de espinhos, pois o grande cacto andino,
como um cruel candelabro, aqui se estabelece.


E sobre seus agrestes espinhos, como vestimenta
escarlate, ou como uma mancha de terrível arrebol,
como sangue dum corpo arrastado sobre mil puas,
as parasitas acenderam as suas lâmpadas sangrentas.


As rochas são imensas bolsas coaguladas
na idade do fogo, sacos cegos de pedra
que rolaram até se fundirem nestas
implacáveis estátuas que guardam o vale.


O rio leva um doce e agônico rumor
de últimas águas entre o salgueiro escuro
multidão de folhagem, e os álamos
deixam tombar em gotas seu delgado amarelo.


É o outono do Norte Pequeno, o atrasado outono.


Pestaneja mais aqui a luz no cacho.


Como uma mariposa, detém-se mais tempo
o transparente sol até coalhar a uva,
e brilham sobre o vale seus panos moscatéis.




II
Irmão Pablo

Mas hoje os camponeses vêem ver-me: “Irmão,
não tem água, irmão Pablo, não tem água, não choveu.


E a corrente miúda
do rio
sete dias circula, sete dias se seca.


Nossas vacas morreram lá em cima na cordilheira.


E a sede começa a matar crianças.

Lá em cima, muitos não têm o que comer.

Irmão Pablo, você vai falar com o ministro”.


(Sim, o irmão Pablo vai falar com o ministro, mas eles não sabem
como me vêem chegar
essas poltronas de couro ignominioso
e depois a madeira ministerial, esfregada
e polida pela saliva bajulante.
)
Mentirá o ministro, esfregará as mãos,
e o gado do pobre comuneiro
com o burro e o cachorro, pelas esfiapadas
rochas, de fome em fome, tombará lá embaixo.




III
A fome e a ira

Adeus, adeus a tua quinta, à sombra
que ganhaste, ao ramo
transparente, à terra consagrada,
ao boi, adeus, à água avara,
adeus, às vertentes, à música
que não chegou na chuva, ao cinto pálido
da ressaca e da pedregosa aurora.


Juan Ovalle, te dei a mão, mão sem água,
mão de pedra, mão de parede e estiagem.

E te disse: à parda ovelha, às mais ásperas
estrelas, à lua como cardo roxo,
amaldiçoa, ao ramo partido dos lábios nupciais,
mas não toques no homem, não derrames ainda o homem
ferindo-lhe as veias, não tinjas ainda a areia,
não acendas ainda o vale com a árvore
dos tombados ramos arteriais.


Juan Ovalle, não mates.
E tua mão
me respondeu: “Estas terras
querem matar, buscam de noite
vingança, o velho vento ambarino
na amargura é vento de veneno,
e a guitarra é como um quadril
de crime, e o vento é uma faca”.




IV
Tiram-lhes a terra

Porque atrás do vale e da seca,
detrás do rio e da delgada folha,
espreitando o torrão e a colheita,
o ladrão de terras.


Olha que árvore de ressoante púrpura
contempla seu estandarte avermelhado,
e atrás de sua estirpe matutina,
o ladrão de terras.


Ouves como o sal do arrecife
o vento de cristal nas nogueiras,
porém sobre o azul de cada dia
o ladrão de terras.


Sentes entre as capas germinais
pulsar o trigo em sua flecha dourada,
porém entre o pão e o homem há uma máscara:
o ladrão de terras.




V
Aos minerais

Depois, às altas pedras
de sal e de ouro, à enterrada
república dos metais
subi:
eram os doces muros em que uma
pedra se amarra com outra,
com um beijo de barro escuro.


Um beijo entre pedra e pedra
pelos caminhos tutelares,
um beijo de terra e terra
entre as grandes uvas vermelhas,
e como um dente junto a outro dente
a dentadura da terra,
as paredes de matéria pura,
as que levam o interminável
beijo das pedras do rio
aos mil lábios do caminho.


Subamos da agricultura ao ouro.

Tendes aqui os altos pedernais.


O peso da mão é como uma ave.

Um homem, uma ave, uma substância de ar,
de obstinação, de vôo, de agonia,
uma pálpebra talvez, mas um combate.


E de lá no transversal berço do ouro,
em Punitaqui, frente a frente
com os calados sapadores
da picareta, da pá, vem,
Pedro, com tua paz de couro,
vem, Ramírez, com tuas abrasadas
mãos que indagaram o útero
das cerradas minerações,
salve, nas grades, nos
calcários subterrâneos
do ouro, abaixo em suas matrizes,
ficaram as vossas digitais
ferramentas marcadas com fogo.




VI
As flores de Punitaqui

Era dura a pátria lá como antes.

Era um sal perdido o ouro,
era
um peixe enrubescido e no torrão colérico
seu pequeno minuto triturado
nascia, ia nascendo das unhas sangrentas.


Entre a alva corno uma amendoeira fria,
sob os dentes das cordilheiras,
o coração perfura seu buraco,
rastreia, toca, sofre, sobe, e na altura
mais essencial, mais planetária, chega
com a camiseta rasgada.


Irmão de coração queimado,
junta em minha mão esta jornada,
e baixemos uma vez mais às camadas adormecidas
em que tua mão como uma tenaz
agarrou o ouro vivo que queria voar
ainda mais profundo, ainda mais abaixo, ainda.


E lá como umas flores
as mulheres de lá, as chilenas de cima,
as minerais filhas da mina,
um ramo entre as minhas mãos, umas flores
de Punitaqui, umas rubras flores,
gerânios, flores pobres
daquela terra dura,
depositaram em minhas mãos como
se tivessem sido achadas na mina mais funda,
se aquelas flores filhas da água rubra
voltassem lá do fundo sepultado do homem.


Peguei suas mãos e suas flores, terra
despedaçada e mineral, perfume
de pétalas profundas e dores.

Soube ao olhá-las de onde vieram
até a solidão dura do ouro,
me mostraram como gotas de sangue
as vidas derramadas.


Eram em sua pobreza
a fortaleza florescida, o ramo
da ternura e seu metal remoto.


Flores de Punitaqui, artérias, vidas, junto
a meu leito, na noite, vosso aroma
se ergue e me guia pelos mais subterrâneos
corredores do luto
pela altura perfurada, pela neve, e ainda
pelas raízes que só as lágrimas alcançam.


Flores, flores da altura,
flores de mina c pedra, flores
de Punitaqui, filhas
do amargo subsolo: em mim, nunca olvidadas,
ficastes vivas, construindo
a pureza imortal, uma corola
de pedra que não morre.




VII
O ouro

Teve o ouro esse dia de pureza.

Antes de mergulhar de novo sua estrutura
na suja saída que o aguarda,
recém-chegado, recém-desprendido
da solene estátua da terra,
foi depurado pelo fogo, envolto
pelo suor e as mãos do homem.


Lá se despediu o povo do ouro.

E era terrestre o seu contacto, puro
como a matriz cinzenta da esmeralda.

Igual era a mão suarenta
que recolheu o lingote emaranhado
ao cepo de terra reduzida
pela infinita dimensão do tempo,
à cor terrenal das sementes,
ao solo poderoso dos segredos,
à terra que lavra os racimos.


Terras do ouro sem manchar, humanos
materiais, metal imaculado
do povo, virginais minerações,
que se tocam sem se verem na implacável
encruzilhada de seus caminhos:
o homem continuará mordendo o pó,
continuará sendo terra pedregosa,
e ouro subirá sobre seu sangue
até ferir e reinar sobre o ferido.




VIII
O caminho do ouro

Entrai, senhor, comprai pátria e terreno,
casas, bênçãos, ostras,
tudo se vende aqui aonde chegastes.

Não há torre que não caia em vossa pólvora,
não há presidência que rechace nada,
não há rede que não reserve o seu tesouro.


Como somos tão “livres” como o vento,
podeis comprar o vento, a cachoeira,
e na desenrolada celulose
ordenar as impuras opiniões,
ou recolher amor sem alvitre,
destronado no linho mercenário.


O ouro mudou de roupa usando
formas de trapo, de papel puído,
frios fios de lâmina invisível, cinturões de dedos enroscados.


À donzela em seu novo castelo
levou o pai de aberta dentadura
o prato de cédulas
que devorou a bela disputando-o
no chão e a golpes de sorriso.

Ao bispo subiu a investidura
dos séculos de ouro, abriu a porta
dos juízes, manteve as alfombras,
fez tremer a noite nos bordéis,
correu com os cabelos no vento.


(Eu vivi a idade em que reinava.

Eu vi consumida podridão,
pirâmides de esterco angustiadas
pela honra: conduzidos e trazidos
césares da chuva purulenta,
convencidos do peso que punham
nas balanças, rígidos
bonecos da morte, calcinados
por sua cinza dura e devorante.
)



IX

Fui além do ouro:
entrei na greve.

Lá durava o fio delicado
que une os seres, lá o cordão puro
do homem está vivo.

A morte os mordia,
o ouro, ácidos dentes e veneno
lançava para eles, mas o povo
pôs os seus pedernais na porta,
foi torrão solidário que deixava
transcorrer a ternura c o combate
como duas águas paralelas,
fios
das raízes, ondas da estirpe.


Vi a greve nos braços reunidos
que apertam o desvelo
e em uma pausa trêmula de luta

vi pela primeira vez o único vivo!
A unidade das vidas dos homens!

Na cozinha da resistência
com seus fogões pobres, nos olhos
das mulheres, nas mãos insignes
que com torpor se inclinavam
para o ócio de um dia
como em um mar azul desconhecido,
na fraternidade do pão escasso,
na reunião inquebrantável, em todos
os germes de pedra que surgiam,
naquela romã valorosa
elevada no sal do desamparo,
achei por fim a fundação perdida,
a remota cidade da ternura.




X
O poeta

Antes andei pela vida, em meio
a um amor doloroso: antes retive
uma pequena página de quartzo
cravando-me os olhos na vida.


Comprei bondade, estive no mercado
da cobiça, respirei as águas
mais surdas da inveja, a inumana
hostilidade de máscaras e seres.

Vivi um mundo de lamaçal marinho
no qual a flor de súbito, a açucena
me devorava em tremor de espuma,
e onde pus o pé resvalou minha alma
pelas dentaduras do abismo.

Assim nasceu minha poesia, apenas
resgatada de urtigas, empunhada
sobre a solidão como um castigo,
ou apartou no jardim da impudicícia
sua mais secreta flor até enterrá-la.

Asilado assim como a água sombria
que vive em seus profundos corredores,
corri de mão em mão, ao insulamento
de cada ser, ao ódio cotidiano.

Soube que assim viviam, escondendo
a metade dos seres, como peixes
do mais estranho mar, e nas lodosas
imensidades encontrei a morte.

A morte abrindo portas e caminhos.

A morte deslizando pelos muros.




XI
A morte no mundo

A morte ia mandando e recolhendo
em lugares e tumbas seu tributo:
o homem com punhal ou com bolso,
ao meio-dia ou na luz noturna,
esperava matar, ia matando,
ia enterrando seres e ramagens,
assassinando e devorando mortos.

Preparava as suas redes, esmagava,
sangrava, saía nas manhãs
cheirando o sangue da caçada,
e ao voltar de seu triunfo estava envolto
por fragmentos de morte e desamparo,
e então matando-se enterrava
com cerimônia funeral os seus passos.


As casas dos vivos eram mortas.

Escória, tetos rotos, urinóis,
vermiculadas ruelas, covas
acumuladas com o pranto humano.

- Assim deves viver - disse o decreto.

- Apodrece em tua substância - disse o chefe.

- És imundo - arrazoou a Igreja.

- Estende-te no lodo - te disseram.

E uns tantos armaram a cinza
para que ela governasse e decidisse,
enquanto a flor do homem se batia
contra as paredes que lhe construíram.


O cemitério teve pompa e pedra.

Silêncio para todos e estatura
de vegetais altos e afiados.


Por fim estás aqui, por fim nos deixas
um vazio nu meio da selva amarga,
por fim te encontras teso entre paredes
que não transpassarás.
E cada dia
as flores como um rio de perfume
se juntaram ao rio dos mortos.

As flores que a vida não tocava
caíram sobre o vazio que deixaste.




XII
O homem

Aqui encontrei o amor.
Nasceu na areia,
cresceu sem voz, tocou os pedernais
da dureza e resistiu à morte.

Aqui o homem era vida que juntava
a intacta luz, o mar sobrevivente,
e atacava e cantava e combatia
com a mesma unidade dos metais.

Aqui os cemitérios eram terra
apenas erguida, cruzes partidas,
sobre cujas madeiras derretidas
adiantavam-se os ventos arenosos.




XIII
A greve

Estranha era a fábrica inativa.

Um silêncio na planta, uma distância
entre máquinas e homem, como um fio
cortado entre planetas, um vazio
das mãos do homem que consomem
o tempo construindo, e as desnudas
estâncias sem trabalho e sem um som.

Quando o homem deixou as tocas
da turbina, quando desprendeu
os braços da fogueira e decaíram
as entranhas do forno, quando tirou os olhos
da roda e a luz vertiginosa
se deteve em seu círculo invisível,
de todos os poderes poderosos,
dos círculos puros de potência,
da energia surpreendedora,
ficou um montão de inúteis aços
e nas salas sem homem, o ar viúvo,
o solitário aroma do azeite.


Nada existia sem aquele fragmento
batido, sem Ramírez,
sem o homem de roupa rasgada.

Lá estava a pele dos motores,
acumulada em morto poderio,
como negros cetáceos no fundo
pestilento dum mar sem ondulação,
ou montanhas escondidas de repente
sob a solidão dos planetas.




XIV
O povo

Passeava o povo suas bandeiras rubras
e entre eles na pedra que tocaram
estive, na jornada fragorosa
e nas altas canções da luta.

Vi como passo a passo conquistavam.

Somente a resistência dele era caminho,
e isolados eram como troços partidos
duma estrela, sem boca e sem brilho.

Juntos na unidade feita em silêncio,
eram o fogo, o canto indestrutível,
o lento passo do homem na terra
feito profundidades e batalhas.

Eram a dignidade que combatia
o que foi pisoteado, e despertava
como um sistema, a ordem das vidas
que tocavam as portas e se sentavam
na sala central com suas bandeiras.




XV
A letra

Assim foi.
E assim será.
Nas serras
calcárias, à beira
da fumaça, nas oficinas,
há uma mensagem escrita nas paredes
e o povo, só o povo, pode vê-la.

Suas letras transparentes se formaram
com suor e silêncio.
Estão escritas.

Amassaste-as, povo, em teu caminho
e estão sobre a noite como o fogo
abrasador e oculto da aurora.

Entra, povo, nas margens do dia.

Anda como um exército, reunido,
e bate a terra com teus passos
e com a mesma identidade sonora.

Seja uniforme o teu caminho como
é uniforme o suor da batalha,
uniforme o sangue poeirento
do povo fuzilado nos caminhos.


Sobre esta claridade irá nascendo
a granja, a cidade, a mineração,
e sobre esta unidade como a terra
firme e germinadora se há disposto
a criadora permanência, o germe
da nova cidade para as vidas.

Luz dos grêmios maltratados, pátria
amassada por mãos metalúrgicas,
ordem que saiu dos pescadores
como um ramo do mar, muros armados
pela alvenaria transbordante,
escolas cereais, armaduras
de fábricas amadas pelo homem.

Paz desterrada que regressa, pão
compartilhado, aurora, sortilégio
do amor terrenal, edificado
sobre os quatro ventos do planeta.

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Canto XII - Os Rios do Canto

I
Carta a Miguel Otero Silva, em Caracas (1948)

Um amigo me trouxe a tua carta escrita
com palavras invisíveis, sobre sua roupa, em seus olhos.

Como és alegre, Miguel, como somos alegres!
Nada resta num mundo de úlceras estucadas
senão nós, indefinidamente alegres.

Vejo passar o corvo e não me pode fazer mal.

Tu observas o escorpião e limpas a tua guitarra.

Vivemos entre as feras, cantando, e quando tocamos
um homem, a matéria de alguém em quem acreditávamos,
e este homem se desmorona como um pastel podre,
tu em teu venezuelano patrimônio recolhes
o que pode salvar-se, enquanto eu defendo
a brasa da vida.

Que alegria, Miguel!
Me perguntarás onde estou? Te contarei
- dando só detalhes úteis ao governo -
que nesta costa cheia de pedras selvagens
unem-se o mar e o campo, ondas e pinheiros,
águias e procelárias, espumas e prados.

Já viste de muito perto e o dia todo
como voam os pássaros do mar? É como
se levassem as cartas do mundo a seus destinos.

Passam os alcatrazes como barcos do vento,
outras aves que voam como flechas e trazem
as mensagens dos reis defuntos, dos príncipes
enterrados com fios de turquesa nas costas andinas,
e as gaivotas feitas de brancura redonda,
que esquecem continuamente as suas mensagens.

Como é azul a vida, Miguel, quando pusemos nela
amor e luta, palavras que são o pão e o vinho,
palavras que eles ainda não podem desonrar,
porque nós saímos para a rua de escopeta e cantos.

Eles estão perdidos conosco, Miguel.

Que podem fazer senão matar-nos, e ainda assim
não lhes é um bom negócio, só podem
tratar de alugar um andar diante de nós e seguir-nos
para aprender a rir e a chorar como nós.

Quando eu escrevia versos de amor, que me brotavam
de todos os lados, e me morria de tristeza,
errante, abandonado, roendo o alfabeto,
me diziam: “Como és grande, ó Teócrito!”
Eu não sou Teócrito: tomei a vida,
me pus diante dela, dei-lhe beijos até vencê-la,
e logo me fui pelas vielas das minas
para ver como viviam outros homens.

E quando saí com as mãos manchadas de imundícies e dores,
eu as levantei a mostrá-las nas cordas de ouro,
e disse: “Eu não compartilho do crime”.

Tossiram, ficaram muito desgostosos, me cortaram o cumprimento,
deixaram de me chamar de Teócrito, e acabaram
por me insultar e mandar toda a polícia para prender-me,
porque eu não continuava preocupado exclusivamente de assuntos
[metafísicos.

Mas eu tinha conquistado a alegria.

Desde então me levantei para ler as cartas
que trazem as aves do mar de tão longe,
cartas que chegam molhadas, mensagens que pouco a pouco
vou traduzindo com lentidão e segurança: sou meticuloso
como um engenheiro neste estranho ofício.

E saio de repente à janela.
É um quadrado
de transparência, é pura a distância
de ervas e penhascos, e assim vou trabalhando
entre as coisas que amo: ondas, pedras, vespas,
com uma embriagadora felicidade marinha.

Mas ninguém gosta de que estejamos alegres, a ti te incumbiram
de um papel bonachão: “Mas não exagere, não se preocupe”,
e a mim me quiseram espetar num insectário, entre as lágrimas,
para que estas me afogassem e eles pudessem fazerseus discursos
[em meu túmulo.


Eu me lembro que um dia no pampa arenoso
do salitre, havia quinhentos homens
em greve.
Era a tarde abrasadora
de Tarapacá.
E quando os rostos haviam recolhido
toda a areia e o exangue sol seco do deserto,
vi chegar a meu coração, como uma taça de ódio,
a velha melancolia.
Naquela hora de crime,
na desolação das salinas, nesse minuto débil
da luta, em que poderíamos ter sido vencidos,
uma menina pequenina e pálida chegada das minas
disse com uma voz valente em que se juntavam o cristal e o aço
um poema teu, um velho poema teu que roda entre os olhos enrugados
de todos os operários e lavradores de minha pátria, da América.

E aquele pedaço de teu canto refulgiu de repente
em minha boca como uma flor purpúrea
e desceu pelo meu sangue, enchendo-o de novo
com uma alegria transbordante nascida de teu canto.

E eu pensei não só em ti, mas em tua Venezuela amarga.

Há anos, vi um estudante que tinha nos tornozelos
o sinal das cadeias que um general lhe havia imposto,
e me contou como os acorrentados trabalhavam nos caminhos
e os calabouços onde a gente se perdia.
Porque assim foi a nossa América:
uma planura com rios devoradores e constelações
de mariposas (em alguns lugares, as esmeraldas são espessas
[como maçãs),
porém sempre ao longo da noite e dos rios,
há tornozelos que sangram, antes perto do petróleo,
hoje perto do nitrato, em Pisagua, onde um déspota sujo
enterrou a flor de minha pátria para que morra, e ele
[possa comerciar com os ossos.

Por isso cantas, por isso, para que a América desonrada e ferida
faça tremer as suas mariposas e recolha suas esmeraldas
sem o espantoso sangue do castigo coagulado
nas mãos dos verdugos e dos mercadores.

Eu compreendi como estarias alegre, perto do Orenoco, cantando,
certamente, ou então comprando vinho para a tua casa,
ocupando o teu posto na luta e na alegria,
largo de ombros, como são os poetas deste tempo,
- com roupas claras e sapatos de uso para caminhar.

Desde então, fiquei pensando em escrever-te algum dia,
e quando Guillén chegou, todo cheio de histórias tuas
que se desprendiam de toda a roupa
e que sob as castanheiras de minha casa se derramaram,
me disse: “Agora”, nem assim comecei a escrever-te.

Mas hoje foi demais: passou pela minha janela
não apenas uma ave do mar, mas milhares,
e recolhi as cartas que ninguém lê e que elas levam
pelas praias do mundo, até perdê-las.

E aí, em cada uma lia palavras tuas
e eram como as que eu escrevo e sonho e canto,
e aí decidi enviar-te esta carta, que aqui termino
para olhar pela janela o mundo que nos pertence.




II
A Rafael Alberti
(Puerto de Santa María, Espanha)

Rafael, antes de chegar à Espanha me apareceu a caminho a tua poesia, rosa literal, cacho biselado,
e ela até agora tem sido para mim não uma lembrança
mas uma luz olorosa, emanação de um mundo.


A tua terra ressequida pela crueldade trouxeste
o orvalho que o tempo havia esquecido,
e a Espanha acordou contigo na cintura,
outra vez coroada de aljôfar matutino.


Recordarás o que trazia: sonhos despedaçados
por implacáveis ácidos, permanências
em águas desterradas, em silêncios
de onde as raízes amargas emergiam
como paus queimados no bosque,
Com posso esquecer, Rafael, aquele tempo?
A teu país cheguei como quem cai
em uma lua de pedra, encontrando em todas as partes
águias do agreste, secos espinhos,
mas a tua voz, marinheiro, esperava
para dar-me as boas-vindas e a fragrância
da flor de laranjeira, o mel dos frutos marinhos.


E a tua poesia estava na mesa, nua.


Os pinheirais do sul, as raças da uva
deram a teu diamante cortado suas resinas,
e ao tocar tão formosa claridade, muita sombra
da que traz ao mundo se desfez.


Arquitetura feita na luz, como as pétalas,
através de teus versos de embriagador aroma,
eu vi a água de antanho, a neve hereditária,
e a ti mais que ninguém eu devo a Espanha.

Com teus dedos toquei colméia e páramo,
conheci as praias gastas pelo povo
como por um oceano, e os degraus
em que a poesia foi rasgando
toda a sua vestimenta de safiras.


Tu sabes que só se ensina ao irmão.
E nessa
hora não só aquilo me ensinaste,
não só a apagada pompa de nossa estirpe,
mas a retidão de teu destino,
e quando mais uma vez chegou o sangue à Espanha
defendi o patrimônio do povo que era meu.


Já sabes, já todo mundo sabe estas coisas.

Eu quero somente estar contigo,
e hoje que te falta a metade da vida,
tua terra, a que tens mais direito que uma árvore,
hoje que das desgraças da pátria não só
o luto do que amamos, mas também a tua ausência cobrem
a herança da oliveira que devoram os lobos,
te quero dar, ai!, se pudesse, irmão grande,
a estrelada alegria que então me deste.


Entre nós dois a poesia
se toca como pele celeste,
e contigo gosto de recolher um cacho de uvas,
este pâmpano, aquela raiz das trevas.


A inveja que abre portas nos seres
não pôde abrir a tua porta nem a minha.
És belo
como quando a cólera do vento
desencadeia seu vestido lá fora
e estão o pão, o vinho e o fogo conosco,
deixar que uive o vendedor de fúria,
deixar que silve o que passou entre teus pés,
e levantar a taça cheia de âmbar
com todo o rito da transparência.


Alguém quer esquecer que és o primeiro?
Deixa-o navegar e encontrará o teu rosto.

Alguém quer enterrar-nos precipitadamente?
Está bem, mas tem a obrigação do vôo.


Virão, mas quem pode sacudir a colheita
que com a mão do outono foi erguida
até tingir o mundo com o tremor do vinho?

Dá-me esta taça, irmão, e escuta: estou rodeado
de minha América úmida e torrencial, às vezes
perco o silêncio, perco a corola noturna,
e me rodeia o ódio, talvez nada, o vazio
dum vazio, o crepúsculo
dum cão, duma rã,
e então sinto que tanta terra minha nos separe,
e quero ir a tua casa, em que eu sei, me esperas,
só para sermos bons como só nós
podemos sê-lo.
Não devemos nada.

E a ti, sim, é que devem, e és uma pátria: espera.


Voltarás, voltaremos.
Quero contigo um dia
em tuas ribeiras ir embriagados de ouro
até teus portos, portos do sul que então não atingi.

Me mostrarás o mar onde sardinhas
e azeitonas disputam as areias,
e aqueles campos com os touros de olhos verdes
que Villalón (amigo que também
não veio me ver, pois estava enterrado)
tinha, e os tonéis de xerez, catedrais
em cujos corações gongorinos
arde o topázio com pálido fogo.


Iremos, Rafael, aonde jaz
aquele que com suas mãos e as tuas
a cintura da Espanha sustentava.

O morto que não pôde morrer, aquele a quem guardas,
porque só a tua existência o defende.


Lá está Federico, mas há muitos que, mergulhados, enterrados,
entre as cordilheiras espanholas, tombados
injustamente, derramados,
perdido cereal nas montanhas,
são nossos, e nós estamos em sua argila.


Vives porque sempre foste um deus milagroso.

A ninguém mais que a ti procuraram, queriam
devorar-te os lobos, quebrar teu poderio.

Cada um queria ser verme em tua morte.


Pois bem, se enganaram.
É talvez a estrutura
de tua canção, intacta transparência,
armada decisão de tua doçura,
dureza, fortaleza delicada,
o que salvou teu amor para a tua terra.


Eu irei contigo para provar a água
do Genil, do domínio que me deste,
a olhar na prata que navega
as efígies adormecidas que fundaram
as sílabas azuis de teu canto.


Entraremos também nas forjas: agora
o metal dos povos aí espera
nascer nas facas: passaremos cantando
junto às redes vermelhas que move o firmamento.

Facas, redes, cantos apagarão as dores.

Teu povo levará com as mãos queimadas
pela pólvora, como loureiro dos prados,
o que o teu amor foi debulhando na desgraça.


Sim, de nossos desertos nasce a flor, a forma
da pátria que o povo reconquista com trovões,
e não é um dia só o que elabora
o mel perdido, a verdade do sonho,
mas também cada raiz que se faz canto
até povoar o mundo com as suas folhas.


Lá estás, não há nada que não mova
a lua diamantina que deixaste:
a solidão, o vento nos rincões,
tudo toca o teu puro território,
e os últimos mortos, os que caem
na prisão, leões fuzilados,
e os das guerrilhas, capitães
do coração, estão umedecendo
a tua própria investidura cristalina,
teu próprio coração com suas raízes.


Passou o tempo desde aquele dia em que compartilhamos
dores que deixaram uma ferida radiante,
o cavalo da guerra que com suas ferraduras
atropelou a aldeia destroçando as vidraças.

Tudo aquilo nasceu debaixo da pólvora,
tudo aquilo te aguarda para erguer a espiga,
e nesse nascimento te envolverão de novo
o fumo e a ternura daqueles duros dias.


Vasta é a pele da Espanha e nela a tua espora
vive como uma espada de ilustre punho,
e não há olvido, não há inverno que te apague,
irmão fulgurante, dos lábios do povo.

Assim te falo, esquecendo talvez uma palavra,
respondendo por fim às cartas de que não te lembras
e que quando os climas do leste me cobriram
como aroma escarlate, chegaram
até a minha solidão.

Que teu rosto dourado
encontre nesta carta um dia de outro tempo,
e outro tempo de um dia que virá.

Me despeço
hoje, 1948, 16 de dezembro,
em algum ponto da América na qual canto.




III
A González Carbalho
(no Rio da Prata)

Quando a noite devorou os sons humanos, e desaprumou
sua sombra linha a linha,
ouvimos, no silêncio acrescentado, além dos seres,
o rumor do rio de González Carbalho,
sua água profunda e permanente, seu transcurso que parece
imóvel como o crescimento da árvore ou do tempo.

Este grande poeta fluvial acompanha o silêncio do mundo,
com sonora austeridade, e o que desejar no meio
do tráfego ouvi-lo, que coloque (como faz nos
bosques ou nos lhanos o explorador extraviado) seu ouvido
sobre a terra: e ainda mesmo no meio da rua ouvirá subir
entre os passos do estrondo esta poesia: as vozes
profundas da terra e da água.


Então sob a cidade e seu atropelo, sob as lâmpadas
de fralda escarlate, como o trigo que nasce, irrompendo em
toda latitude, este rio que canta.

Sobre seu leito, assustadas aves de
crepúsculo, gargantas de arrebol que dividem o espaço,
folhas purpúreas que descem.


Todos os homens que se atrevam a olhar a solidão:
os que toquem a corda abandonada, todos os
imensamente puros, e aqueles que da nau escutaram
sal, solidão e noite se reunirem,
ouvirão o coro de González Carbalho surgir alto e cristalino
da sua primavera noturna.

Lembrais outro? Príncipe de Aquitânia: à sua torre abolida
substituiu na hora inicial, o rincão das lágrimas
que o homem milenário extravasou taça a taça.

E que o saiba aquele que não olhou os rostos, o vencedor
ou o vencido:
preocupados pelo vento de safira ou pela taça amarga:
além da rua e rua, além de uma hora,
tocai estas trevas, e continuemos juntos.


Então, no mapa desordenado das pequenas vidas
com tinta azul: o rio, o rio das águas que cantam,
feito da esperança, do padecer perdido,
da água sem angústia que sobe à vitória.


Meu irmão fez este rio:
de seu alto e subterrâneo canto se construíram
estes graves sons molhados de silêncio.

Meu irmão é este rio que rodeia as coisas.


Onde estiverdes, na noite, de dia, a caminho,
sobre os desvelados trens dos prados,
ou junto à empapada rosa da alva fria,
ou ainda
entre as roupas, tocando
o torvelinbo,
caí por terra, que o vosso rosto receba
este grande pulsar de água secreta que circula.


Irmão, és o rio mais longo da terra:
atrás do orbe, soa a tua voz grave de rio,
e eu molho as mãos em teu peito
fiel a um tesouro nunca interrompido,
fiel à transparência da lágrima augusta,
fiel à eternidade agredida do homem.




IV
A Silvestre Revueltas, do México, em sua morte
(Oratório menor)

Quando um homem como Silvestre Revueltas
volta definitivamente à terra,
há um rumor, uma onda
de voz e pranto que prepara e propaga sua partida.

As pequenas raízes dizem aos cereais: “Morreu Silvestre”,
e o trigo ondula o seu nome nas encostas
e logo o pão o sabe.

Todas as árvores da América já o sabem
e também as flores geladas da nossa região ártica.


As gotas d'água o transmitem,
os rios indomáveis da
Araucania já sabem a notícia.

Da nevada ao lago, do lago á planta,
da planta ao fogo, do fogo ao fumo:
tudo o que arde, canta, floresce, dança e revive,
todo o permanente, alto e profundo da nossa América o acolhem,
pianos e pássaros, sonhos e sons, a rede palpitante
que une na aragem todos os nossos climas,
treme e traslada o coro funeral.

Silvestre morreu, Silvestre entrou em sua música total,
em seu silêncio sonoro.


Filho da terra, menino da terra, desde hoje entras no tempo.

Desde hoje o teu nome cheio de música voará quando
[se toque tua pátria, como de um sino,
com um som jamais ouvido, com o som do que foste, irmão.

Teu coração de catedral nos cobre neste instante como o firmamento
e teu canto grande e grandioso, tua ternura vulcânica,
enche toda a altura como uma estátua ardendo.

Por que derramaste a vida? Por que verteste
em cada taça o teu sangue? Por que buscaste
como um anjo cego, ferindo-se pelas portas escuras?

Ah, mas de teu nome sai música
e de tua música, como de um mercado,
saem coroas de louro fragrante
e maçãs de olor e simetria.


Neste dia solene de despedida és tu o despedido,
mas já não ouves,
teu nobre rosto falta e é como se faltasse
uma grande árvore no meio da casa do homem.


Mas a luz que vemos é desde hoje outra luz,
a rua que viramos é uma nova rua,
a mão que tocamos desde hoje tem a tua força,
todas as coisas adquirem vigor em teu descanso
e tua pureza subirá das pedras
para mostrar-nos a claridade da esperança.


Repousa, irmão, o dia teu terminou,
com a tua alma doce e poderosa o encheste
de luz mais alta que a luz do dia
e de um som azul como a voz do céu.

Teu irmão e teus amigos me pediram
que repita o teu nome pelos ares da América,
que o conheça o touro do pampa, e a neve,
que o arrebate o mar, que o discuta o vento.


Agora são as estrelas da América a tua pátria
e desde hoje a tua casa sem portas é a Terra.




V
A Miguel Hernández,
Assassinado nos presídios da Espanha

Chegaste a mim diretamente do Levante, Me trazias,
pastor de cabras, tua inocência enrugada,
a escolástica de velhas páginas, um odor
de Frei Luis, de flor de laranjeira, de esterco queimado

sobre os montes, e em tua máscara
a aspereza cereal da aveia segada
e um mel que media a terra com teus olhos.


Também o rouxinol em tua boca trazias.

Um rouxinol manchado de laranjas, um fio
de incorruptível canto, de força desfolhada.

Ai, rapaz, na luz sobreveio a pólvora
e tu, com rouxinol e com fuzil, andando
sob a lua e sob o sol da batalha.


Já sabes, filho meu, o quanto não pude fazer, já sabes
que para mim, de toda a poesia, tu eras o fogo azul.

Hoje sobre a terra ponho o meu rosto e te escuto,
te escuto, sangue, música, colméia agonizante.


Não vi deslumbrante raça como a tua,
nem raízes tão duras, nem mãos de soldado,
nem vi nada mais vivo que o teu coração
a se queimar na púrpura de minha própria bandeira.


Jovem eterno, vives, comuneiro de antanho,
inundado de germes de trigo e primavera,
enrugado e escuro como o metal inato,
esperando o minuto que erga a tua armadura.


Não estou só desde que morreste.
Estou com os que te buscam.

Estou com os que um dia chegarão a vingar-te.

Reconhecerás os meus passos entre esses
que se despenharão sobre o peito da Espanha
esmagando Caim para que nos devolva
os restos enterrados.


Que saibam os que te mataram que pagarão com sangue.

Que saibam os que te deram tormento que me verão um dia.

Que saibam os malditos que hoje incluem o teu nome
em seus livros, os Dámasos, os Gerardos, os filhos
de cadela, silenciosos cúmplices do verdugo,
que não será apagado o teu martírio, e tua morte
tombará sobre toda sua lua de covardes.

E os que te negaram em seu loureiro apodrecido,
na terra americana, o espaço que cobres
com a tua fluvial coroa de raio sangrado,
deixa-me dar-lhes eu o desdenhoso esquecimento
porque a mim quiseram mutilar com a tua ausência.


Miguel, longe da prisão de Osuna, longe
da crueldade, Mao Tsé-tung dirige
tua poesia despedaçada no combate
para a nossa vitória.

E Praga rumorosa
a construir a doce colméia que cantaste,
Hungria verde limpa seus celeiros
e dança junto ao rio que despertou do sonho.

E de Varsóvia sobe a sereia nua
que edifica a mostrar sua cristalina espada.

Mais além a terra se agiganta,
a terra,
que visitou o teu canto, o aço
que defendeu a tua pátria estão seguros,
acrescentados pela firmeza
de Stálin e seus filhos.


Já se achega
a luz a tua morada.


Miguel da Espanha, estrela
de terras arrasadas, não te esqueço, filho meu,
não te esqueço, filho meu!

Mas aprendi a vida
com a tua morte: meus olhos apenas se velaram,
e encontrei em mim não o pranto
mas as armas
inexoráveis!
Espera-as! Espera-me!
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Canto VI - América, não invoco o teu nome em vão

I
De cima (1942)

O percorrido, o ar
indefinível, a lua das crateras,
a seca lua derramada
sobre as cicatrizes,
o calcário buraco da túnica rota,
a ramagem de veias congeladas, o pânico do quartzo,

do trigo, da aurora,
as chaves estendidas nas rochas secretas,
a aterradora linha
do sul despedaçado,
o sulfato dormido em sua estatura
de longa geografia,
e as disposições da turquesa
girando em torno da luz cortada,
do acre ramo sem cessar florido,
da espaçosa noite de espessura.




II
Um assassino dorme

A cintura manchada pelo vinho
quando o deus tabernário
pisa os copos rotos e desgrenha
a luz da alva desencadeada:
a rosa umedecida no soluço
da pequena prostituta, o vento dos dias febris
que entra pela janela sem vidraças
onde o vingado dorme com os sapatos postos
em um odor amargo de pistolas,
em um a cor azul de olhos perdidos.




III
Na costa

Em Santos, entre o odor doce-agudo das bananeiras
que, como um rio de ouro brando, aberto nas costas,
deixa nas margens a estúpida saliva
do paraíso desengonçado,
e um clamor férreo de sombras, de água e locomotiva,
uma corrente de suor e plumas,
algo que baixa e corre do fundo das folhas ardentes
como de um sovaco palpitante:
uma crise de vôos, uma remota
espuma.




IV
Inverno no sul, a cavalo

Eu transpassei a cortiça mil
vezes agredida pelos golpes austrais:
senti o cachaço do cavalo dormir
sob a pedra fria da noite do sul,
tiritar na bússola do monte desfolhado,
ascender na pálida face que começa:
eu conheço o final do galope na névoa,
o farrapo do pobre caminhante:
e para mim não há deus senão a areia escura,
o lombo interminável da pedra e a noite,
o insociável dia
com um advento
de roupa ruim, de alma exterminada.




V
Os crimes

Talvez tu, das noites escuras percorreste
o grito com punhal, a pisada no sangue:
o solitário fio de nossa cruz mil vezes
pisoteada,
as grandes pancadas na porta calada,
o abismo ou o raio que tragou o assassino
quando ladram os cães e a violenta polícia
chega entre os adormecidos
a torcer com força os fios da lágrima
arrancando-os da pálpebra aterrada.




VI
Juventude

Um perfume como uma ácida espada
de cerejas num caminho,
os beijos do açúcar nos dentes,
as gotas vitais resvalando nos dedos,
a doce polpa erótica,
as eiras, os paióis, os incitantes
lugares secretos das casas amplas,
os colchões dormidos no passado, o acre vale verde
olhado de cima, da vidraça escondida:
toda a adolescência molhando-se e ardendo
como uma lâmpada derrubada na chuva.




VII
Os climas

Caem do álamo no outono
as altas flechas, o renovado olvido:
fundem-se os pés em puro cobertor:
o frio das folhas irritadas
é um espesso manancial de ouro,
e um esplendor de espinhos põe perto do céu
os secos candelabros de estatura eriçada,
e um jaguar amarelo, entre as unhas,
cheira uma gota viva.




VIII
Varadero em Cuba

Fulgor de Varadero desde a costa elétrica
quando, despedaçando-se, recebe nas ancas
a Antilha, o maior golpe de vaga-lume e água,
o sem-fim fulgurante do fósforo e a lua,
o intenso cadáver da turquesa morta:
e o pescador escuro retira dos metais
uma cauda eriçada de violetas marinhas.




IX
Os ditadores

Ficou um aroma entre os canaviais:
uma mescla de sangue e corpo, uma penetrante
pétala nauseabunda.

Entre os coqueiros os túmulos estão cheios
de ossos demolidos, de estertores calados.

O delicado sátrapa conversa
com taças, pescoços e cordões de ouro.

O pequeno palácio brilha como um relógio
e os rápidos risos enluvados
atravessam às vezes os corredores
e se reúnem às vozes mortas
e às bocas azuis frescamente enterradas.

O pranto está escondido como uma planta
cuja semente cai sem cessar sobre o chão
e faz crescer sem luz suas grandes folhas cegas.

O ódio se formou escama por escama,
golpe por golpe, ria água terrível do pântano,
como um focinho cheio de lodo e silêncio.




X
América Central

Que lua como uma culatra ensangüentada,
que ramagem de látegos,
que luz atroz de pálpebra arrancada
te fazem gemer sem voz, sem movimento,
rompem teu padecer, sem voz, sem boca,
ó, cintura central, ó, paraíso
de chagas implacáveis.

Noite e dia vejo os martírios,
dia e noite vejo o acorrentado,
o rubro, o negro, o índio
escrevendo com mãos batidas e fosfóricas
nas intermináveis paredes da noite.




XI
Fome no sul

Vejo o soluço no carvão de Lota
e a enrugada sombra do chileno humilhado
picar a amarga veia da entranha, morrer,
viver, nascer na dura cinza
agachados, caídos como se o mundo
entrasse assim e saísse assim
entre pó negro, entre chamas,
e só acontecesse
a tosse no inverno, o passo
de um cavalo na água negra, onde caiu
uma folha de eucalipto como faca morta.




XII
Patagônia

As focas estão parindo
na profundidade das zonas geladas,
nas crepusculares grutas que formam
os últimos focinhos do oceano,
as vacas da Patagônia
se destacam do dia
como um tumulto, como um vapor pesado
que levanta no trio sua quente coluna
para as solidões.


Deserta és, América, como um sino:
cheia por dentro dum canto que não se eleva,
o pastor, o llanero, o pescador
não têm uma mão, nem uma orelha, nem um piano,
nem um rosto perto: a lua os vigia,
a extensão os aumenta, a noite os espreita,
e um velho dia, lento como os outros, nasce.




XIII
Uma rosa

Vejo uma rosa junto à água, uma pequena taça
de pálpebras vermelhas,
sustentada na altura por um som aéreo:
uma luz de folhas verdes toca os mananciais
e transfigura o bosque com solitários seres
de transparentes pés:
o ar está povoado de claras vestimentas
e a árvore estabelece sua magnitude adormecida.




XIV
Vida e morte de uma mariposa

Voa a mariposa de Muzo na tormenta:
todos os fios equinociais,
a pasta gelada das esmeraldas,
tudo voa no raio
são sacudidas as últimas conseqüências da aragem
e então uma chuva de estames verdes
o pólen das esmeraldas sobe;
seus grandes veludos de fragrância molhada
caem nas ribas azuis do ciclone,
unem-se aos tombados fermentos terrestres,
regressam à pátria das folhas.




XV
O homem enterrado no pampa

De tango em tango, se conseguisse
riscar o domínio, as pradarias,
se já adormecido
saindo de minha boca o cereal selvagem,
se eu escutasse nas planuras
um trovão de cavalos,
uma furiosa tempestade de patas
passar sobre os meus dedos enterrados,
beijaria sem lábios a semente
e amarraria nela os vestígios
de meus olhos
para ver o galope que amou minha turbulência:
mata-me, vidalita,
mata-me e que minha substância se derrame
como o rouco metal das guitarras.




XVI
Operários marítimos

Em Valparaíso, os operários do mar
me convidaram: eram pequenos e duros,
e seus rostos queimados eram a geografia
do oceano Pacífico: eram uma corrente
por dentro das imensas águas, uma onda muscular,
um ramo de asas marinhas na tormenta.

Era formoso vê-los como pequenos deuses pobres,
semidesnudos, malnutridos, era formoso
vê-los lutar e palpitar com outros homens além do oceano,
com outros homens de outros portos miseráveis, e ouvi-los,
era a mesma linguagem de espanhóis e chineses,
a linguagem de Baltimore e Kronstadt,
e quando cantaram A internacional cantei com eles:
um hino me subia do coração, quis dizer-lhes: “Irmãos”,
mas tive apenas a ternura que se me fazia canto
e que ia com o seu canto de minha boca até o mar.

Eles me reconheciam, me abraçavam com seus poderosos olhares
sem dizer-me nada, olhando-me e cantando.




XVII
Um rio

Quero ir pelo Papalopán
como tantas vezes pelo terroso espelho,
tocando com as unhas a água poderosa:
quero ir a matrizes, à contextura
de suas originais ramagens de cristal:
ir, molhar meu rosto, mergulhar na secreta
confusão do orvalho
a pele, a sede, o sonho.

O sável saindo da água
como um violino de prata,
e na margem as flores atmosféricas
e as asas imóveis
num calor de espaço defendido
por espadas azuis.




XVIII
América

Estou, estou rodeado
por madressilva e páramo, por chacal e centelha,
pelo acorrentado perfume dos lilases:
estou, estou rodeado
por dias, meses, águas que só eu conheço,
por unhas, peixes, meses que só eu estabeleço,
estou, estou rodeado
pela delgada espuma combatente
do litoral povoado de sinos.

A camisa escarlate do vulcão e do índio,
o caminho, que o pé descalço levantou entre as folhas
e os espinhos entre as raízes,
chega a meus pés à noite para que o caminhe.

O escuro sangue como num outono
derramado no solo,
o temível estandarte da morte na selva,
os passos invasores se desfazendo, o grito
dos guerreiros, o crepúsculo das lanças adormecidas,
o sobressaltado sonho dos soldados, os grandes
rios em que a paz do caimão chapinha,
tuas recentes cidades de alcaides imprevistos,
o coro dos pássaros de costume indomável,
no pútrido dia da selva, o fulgor
tutelar do vaga-lume,
quando em teu ventre existo, em tua tarde
de almenaras, em teu descanso, no útero de teu nascimento,
no terremoto, no diabo dos camponeses, na cinza
que cai das nevadas, no espaço,
no espaço puro, circular, inatingível,
na garra sangrenta dos condores, na paz humilhada
da Guatemala, nos negros,
nos cais de Trinidad, na Guayra:
tudo é minha noite, tudo
é meu dia, tudo
é meu ar, tudo
é o que vivo, sofro, levanto e agonizo.

América, nem da noite
nem do dia estão feitas as sílabas que eu canto.

De terra é a matéria apoderada
do fulgor e do pão de minha vitória,
e não é sonho meu sonho porém terra.

Durmo rodeado de espaçosa argila
e por minhas mãos corre quando vivo
um manancial de caudalosas terras.

E não é vinho o que bebo porém terra,
terra escondida, terra de minha boca,
terra de agricultura com orvalho,
vendaval de legumes luminosos,
estirpe cereal, adega de ouro.




XIX
América, não invoco o teu nome em vão

América, não invoco o teu nome em vão.

Quando sujeito ao coração a espada,
quando agüento na alma a goteira,
quando pelas janelas
um novo dia teu me penetra,
sou e estou na luz que me produz,
vivo na sombra que me determina,
durmo e desperto em tua essencial aurora:
doce como as uvas, e terrível,
condutor do açúcar e o castigo,
empapado em esperma de tua espécie,
amamentado em sangue de tua herança.
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Canto VII - Canto Geral do Chile

Eternidade
Escrevo para uma terra recém-secada, recém-
fresca de flores, de pólen, de argamassa,
escrevo para umas crateras cujas cúpulas de giz
repetem seu redondo vazio junto à neve pura,
opino de imediato para o que apenas
leva o vapor ferruginoso recém-saído do abismo,
falo para as pradarias que não conhecem nome
além da pequena campânula do líquen ou o estame queimado
ou a áspera mata onde se inflama a égua.

De onde venho, senão destas primíparas, azuis
matérias que se enredam ou se encrespam ou se destituem
ou se esparzem a gritos ou se derramam sonâmbulas,
ou se galgam e formam o baluarte da árvore,
ou se somem e amarram a célula do cobre,
ou saltam ao ramo dos rios, ou sucumbem
na raça enterrada do carvão ou reluzem
nas trevas verdes da uva?

Nas noites durmo como os rios, percorrendo
algo incessantemente, rompendo ultrapassando
a noite natatória, levantando as horas
para a luz, apalpando as secretas
imagens que a cal desterrou, subindo pelo bronze
até as cataratas recém-disciplinadas, e toco
em um caminho de rios o que não distribui
nada além da rosa nascida, o hemisfério afogado.

A terra é uma catedral de pálpebras pálidas,
eternamente unidas e agregadas em um
vendaval de segmentos, em um sal de abóbadas,
em uma cor final de outono perdoado.


Não haveis, não haveis tocado nunca no caminho
o que a estalactite desnuda determina,
a festa entre as lâmpadas glaciais,
o alto frio das folhas negras,
não haveis entrado comigo nas fibras
que a terra escondeu,
não haveis tornado a subir depois de mortos
grão por grão os degraus da areia
até que as coroas do orvalho
cubram de novo urna rosa aberta,
não podeis existir sem ir morrendo
com o vestuário usado do destino.


Porém eu sou o nimbo metálico, a argola
encadeada a espaços, a nuvens, a terrenos
que toca precipitadas e emudecidas águas,
e torna a desafiar a intempérie infinita.




I
Hino e regresso (1939)

Pátria, minha pátria, volto a ti o sangue.

Mas te peço, como à mãe o menino
cheio de pranto.

Acolhe
esta guitarra cega
e este rosto perdido.

Saí para encontrar-te filhos pela terra,
saí para cuidar caídos com o teu nome de neve,
saí pata fazer uma casa com a tua madeira pura,
saí para levar tua estrela aos heróis feridos.


Agora quero dormir em tua substância.

Dá-me tua clara noite de penetrantes cordas,
tua noite de navio, tua estatura estrelada.

Pátria minha: quero mudar de sombra.

Pátria minha: quero trocar de rosa.

Quero pôr meu braço em tua cintura exígua
e sentar-me em tuas pedras pelo mar calcinadas,
a deter o trigo e espiá-lo por dentro.


Vou eleger a flora delgada do nitrato,
vou fiar o estame glacial do sino,
e espiando tua ilustre e solitária espuma
um ramo litoral tecerei para tua beleza.


Pátria, minha pátria
toda rodeada de água combatente
e neve combatida,
em ti se junta a águia ao enxofre
e em tua antártica mão de arminho e de safira
uma gota de pura luz humana
brilha acendendo o inimigo céu.


Guarda tua luz, ó pátria!, mantém
tua dura espiga de esperança em meio
ao cego ar temível.


Em tua remota terra caiu toda esta luz difícil,
este destino dos homens
que te faz defender uma flor misteriosa
só, na imensidade da América adormecida.




II
Quero voltar ao sul (1941)

Enfermo em Veracruz, recordo um dia do sul, minha terra, um dia de prata
como um rápido peixe na água do céu.

Loncoche, Lonquimay, Carahue, de cima
esparzidos, rodeados por silêncio e raízes,
sentados em seus tronos de couros e madeiras.

O sul é um cavalo lançado a pique
coroado com lentas árvores e rocio,
quando levanta o verde focinho caem as gotas,
a sombra de sua cauda molha o grande arquipélago
e em seu intestino cresce o carvão venerado.

Nunca mais, dize-me, sombra, nunca mais, dize-me, mão,
nunca mais, dize-me, pé, porta, perna, combate,
transtornarás a selva, o caminho, a espiga,
a névoa, o frio, o que, azul, determinava
cada um de teus passos sem cessar consumidos?
Céu, deixa-me um dia de estrela a estrela ir-me
pisando luz e pólvora destroçando meu sangue
até chegar ao ninho da chuva!

Quero ir
por detrás da madeira pelo rio
Toltén fragrante, quero sair das serrações,
entrar nas cantinas com os pés empapados,
guiar-me pela luz da aveleira elétrica,
espichar-me junto ao excremento das vacas,
morrer e reviver mordendo o trigo.


Oceano, traze-me
um dia do sul, um dia agarrado a tuas ondas,
um dia de árvore molhada, traze um vento
azul polar a minha bandeira fria!



III
Melancolia perto de Orizaba (1942)

Que há para ti no sul senão um rio, uma noite,
umas folhas que o ar frio manifesta
e estende até cobrir as margens do céu?
Acaso a cabeleira do amor desemboca
como outra neve ou água do desfeito arquipélago,
como outro movimenta subterrâneo do fogo
e espera nos barracões outra vez,
onde as folhas caem tantas vezes
tremulando, devoradas por essa boca espessa,
e o brilho da chuva fecha sua trepadeira
desde a reunião dos grãos secretos
até a folhagem cheia de sinos e gotas?

Onde a primavera traz uma voz molhada
que zumbe nas orelhas do cavalo adormecido
e logo caí no ouro do trigo triturado
e logo assoma um dedo transparente na uva.

Que há para ti a esperar-te, onde, sem corredores,
sem paredes, te chama o sul?
Como o llanero escutas em tua mão a taça
da terra, pondo o teu ouvido nas raízes:
de longe um vento do hemisfério temível,
o galope no orvalho dos carabineiros:
onde a agulha cose com água fina o tempo
e sua esmiuçada costura se destrói:
que há para ti na noite de costados selvagens
uivando com a boca toda cheia de azul?

Há um dia talvez detido, um espinho
crava no velho dia seu aguilhão degradado
e sua antiga bandeira nupcial se despedaça.

Quem guardou um dia de bosque negro, quem
esperou umas horas de pedra, quem rodeia
a herança lastimada pelo tempo, quem foge
sem desaparecer no centro do ar?
Um dia, um dia cheio de folhas desesperadas,
um dia, uma luz partida pela fria safira,
um silêncio de ontem preservado no oco
de ontem, na reserva do território ausente.

Amo tua emaranhada cabeleira de couro,
tua antártica formosura de intempérie e cinza.

teu doloroso peso de céu combatente:
amo o vôo do ar do dia em que me esperas,
sei que não muda o beijo da terra, e não muda,
sei que não cai a folha da árvore, e não cai:
sei que o mesmo relâmpago detém seus metais
e a desamparada noite é a mesma noite,
porém és minha noite, porém és minha planta, a água
das glaciais lágrimas que conhecem meu cabelo.


Seja eu o que ontem me esperava no homem:
o que em louro, cinza, quantidade, esperança,
desenrola sua pálpebra no sangue,
no sangue que povoa a cozinha e o bosque,
as fábricas que o ferro cobre de plumas negras,
as minas verrumadas pelo suor sulfúrico.


Não só o ar agudo do vegetal me espera:
não só o trovão sobre o nevado esplendor:
lágrimas e fome como dois calafrios
sobem ao campanário da pátria e repicam:
é aí que em meio do fragrante céu,
é aí que quando outubro rebenta, e corre
a primavera antártica sob o fulgor do vinho,
há um lamento e outro e outro lamento e outro
até que cruzam neve, cobre, caminhos, naus,
e passam através da noite e da terra
até minha dessangrada garganta que os ouve.


Povo meu, que dizes? Marinheiro,
peão, alcaide, operário do salitre, me escutas?
Eu te ouço, irmão morto, irmão vivo, te ouço,
o que tu desejavas, o que enterraste, tudo,
o sangue que na areia e no mar derramavas,
o coração golpeado que resiste e assusta.


Que há para ti no sul? A chuva onde cai?
E desde o interstício, que mortos açoitaste?
Os meus, os do sul, os heróis sós,
o pão disseminado pela cólera amarga,
o longo luto, a fome, a dureza e a morte,
as folhas sobre eles tombaram, as folhas,
a lua sobre o peito do soldado, a lua.

o beco do miserável, e o silêncio
do homem em todas as partes, como um mineral duro
cujo veio de frio gela a luz de minh'alma
antes de construir o campanário nas alturas.


Pátria cheia de germes, não me chames, não posso
dormir sem teu olhar de cristal e treva.

Teu grito rouco de águas e seres me sacode
e ando no sonho à beira de tua espuma solene
até a última ilha de tua cintura azul.

Me chamas docemente como uma noiva pobre.

Tua longa luz de aço me cega e me busca
como uma espada cheia de raízes.


Pátria, terra estimável, queimada luz ardendo:
como o carvão dentro do fogo precipita
teu sal temível, tua despida sombra.

Seja eu o que ontem me esperava, e amanhã
resista num punhado de papoulas e poeira.




IV
Oceano

Se tua nudez evidente e verde,
se tua maçã desmedida, se
nas trevas tua mazurca, onde
está a tua origem?
Noite
mais doce que a noite,
sal
mãe, sal sangrento, curva mãe da água,
planeta percorrido pela espuma e a medula:
titânica doçura de estelar longitude:
noite com uma única onda na mão:
tempestade contra a águia marinha,
cega sob as mãos do sulfato insondável:
adega em tanta noite sepultada,
corola fria toda de invasão e ruído,
catedral enterrada a golpes na estrela.


Há o cavalo ferido que na idade de tua margem
percorre, pelo fogo glacial substituído,
há o abeto rubro transformado em plumagem
e desfeito em tuas mãos de atroz cristalaria,
e a incessante rosa combatida nas ilhas
e o diadema de água e lua que estabeleces.

Pátria minha, a tua terra
todo este céu escuro!
Toda esta fruta universal, toda esta
delirante coroa!
Para ti esta taça de espumas onde o raio
se perde como um albatroz cego, e onde o sol do sul
se levanta olhando tua condição sagrada.




V
Selaria
Para mim este arreio esboçado
como pesada rosa em prata e couro,
suave de fundura, liso e duradouro.

Cada recorte é uma mão, cada
costura é uma vida, nele vive
a unidade das vidas florestais,
uma cadeia de olhos e cavalos.

Os grãos da aveia o formaram,
o fizeram duro matagais e água,
a colheita opulenta lhe deu orgulho,
metal e tafiletes trabalhados:
e assim de desventuras e domínio
este trono saiu pelas campinas.



Olaria
Tarda pomba, alcanzia de argila,
em teu lombo de luto um signo, apenas
algo que te decifra.
Povo meu,
como com as tuas dores nas costas,
espancado e rendido, como foste
acumulando ciência desfolhada?
Prodígio negro, mágica matéria
elevada à luz por dedos cegos,
mínima estátua em que o mais secreto
da terra nos abre seus idiomas,
cântaro de Pomaire em cujo beijo
terra e pele se congregam, infinitas
formas do barro, luz das vasilhas,
a forma de uma mão que foi minha,
o passo de uma sombra que me chama,
sois reunião de sonhos escondidos,
cerâmica, pomba indestrutível!


Teares
Sabeis que lá a neve vigiando
os vales ou, melhor,
a primavera escura do sul, as aves negras
a cujo peito só uma gota de sangue
veio a tremer, a bruma
de um grande inverno que estendeu as asas,
assim é o território, e sua fragrância
sobe de flores pobres, derrubadas
pelo peso de cobre e cordilheiras.

- lá o tear fio a fio, buscando
reconstruiu a flor, subiu a pluma
a seu império escarlate, entretecendo
azuis e açafrões, a meada
do fogo e seu amarelo poderio,
a estirpe do relâmpago violeta,
o verde areento do lagarto.

Mãos do povo meu nos teares,
mãos pobres que tecem, uma a uma,
as plumagens de estrela que faltaram
a tua pele, Pátria de cor escura,
substituindo fibra por fibra o céu
para que cante o homem os seus amores
e galope acendendo cereais!



VI
Inundações
Os pobres vivem embaixo esperando que o rio
se levante à noite e os leve para o mar.

Vi pequenos berços que flutuavam, destroços
de vivendas, cadeiras, e uma cólera augusta
de lívidas águas em que se confundem o céu e o terror
Só é para ti, pobre, para tua esposa e tua sementeira,
para teu cão e tuas ferramentas, para que aprendas a ser mendigo.

A água não sobe até as casas dos cavalheiros
cujos nevados pescoços voam das lavanderias.

Come este lodo de roldão e estas ruínas que nadam
com teus mortos vagando docemente para o mar,
entre as pobres mesas e as perdidas árvores
que vão de tombo em tombo mostrando as raízes.



Terremoto
Acordei quando a terra dos sonhos faltou
sob a minha cama.

Uma coluna cega de cinza cambaleava no meio
da noite,
eu te pergunto: morri?
Dá-me a mão nesta ruptura do planeta
enquanto a cicatriz do céu roxo se faz estrela.

Ai! porém recordo, onde estão? onde estão?
Por que ferve a terra enchendo-se de morte?
Oh, máscaras sob as vivendas enroladas, sorrisos
que não atingiram o espanto, seres despedaçados
sob as vigas, cobertos pela noite.

E hoje amanheces, ó dia azul, vestido
para um baile, com a tua cauda de ouro
sobre o mar apagado dos escombros, ígneo,
buscando o rosto perdido dos insepultos.




VII
Atacama

Voz insofrível, disseminado
sal, substituída
cinza, ramo negro
em cujo extremo aljôfar aparece a lua
cega, por corredores enlutados de cobre.

Que material, que cisne oco
funde na areia sua nudez agônica
e endurece sua luz líquida e lenta?
Que raio duro rompe sua esmeralda
entre suas pedras indomáveis até
coagular o sal perdido?
Terra, terra
sobre o mar, sobre o ar, sobre o galope
da amazona cheia de corais:
adega amontoada onde o trigo
dorme na tremulante raiz do sino:
ó mãe do oceano!, produtora
do cego jaspe e a dourada sílica:
sobre tua pele pura de pão, longe do bosque,
nada, a não ser tuas linhas de segredo,
nada, a não ser o teu rosto de areia,
nada, a não ser as noites e os dias do homem,
mas junto à sede do cardo, lá,
onde um papel enterrado e esquecido, uma pedra
marca os fundos berços da espada e da taça,
indica os adormecidos pés do cálcio.




VIII
Tocopilla

De Tocopilla ao sul, ao norte, areia,
calações ruídas, o lanchão, as tábuas
partidas, o retorcido ferro.

Quem à linha pura do planeta,
áurea e cozida, sonho, sal e pólvora
agregou o utensílio desfeito, a imundície?

Quem pôs o teto arriado, quem deixou as paredes
abertas, como um ramo
de papéis pisados?
Lôbrega luz do homem em ti destituído,
sempre tornando à conca de tua lua calcária,
apenas recebido por tua letal areia!

Gaivota rara das obras, arenque,
petrel anelado,
frutos, vós, filhos do espinhel sangrento
e da tempestade, vistes o chileno?
Vistes o humano, entre as duplas linhas do frio
e das águas, sob a dentadura
da linha de terra, na baía?

Piolhos, piolhos ardentes atacando o sal,
piolhos, piolhos da costa, povoações, mineiros,
de uma cicatriz do deserto até a outra,
contra a costa da lua, fora!,
bicando o selo frio sem idade.

Além dos pés do alcatraz, quando
nem água nem pão nem sombra tocam a dura etapa,
o exercício do salitre assoma
ou a estátua do cobre decide sua estatura.

É tudo como estrelas enterradas
como pontas amargas, como infernais
flores
brancas, nevadas de luz tremulante
ou verde e negro ramo de esplendores pesados.

Não vale ali a pena mas só a mão rota
do chileno escuro, não vale ali a dúvida.

Só o sangue.
Só esse golpe duro
que pergunta na veia pelo homem.

Na veia, na mina, na esburacada cova
sem água e sem laurel.


Ó pequenos
compatriotas queimados por esta luz mais agra
que o banho da morte, heróis escurecidos
pelo amanhecer do sal na terra,
onde fazeis vosso ninho, errantes filhos?
Quem vos viu entre as fibras rotas
dos portos desérticos?

Sob
a névoa de salmoura
ou atrás da costa metálica,
ou talvez ou talvez,
sob o deserto já, sob
sua palavra de pó
para sempre!
Chile, Metal e Céu,
e vós, chilenos,
semente, irmãos duros,
tudo disposto em ordem e silêncio
como a permanência das pedras.




IX
“Peumo”
Parti uma folha lajeada do matagal: um doce
aroma das bordas partidas
me tocou como asa profunda que voasse
da terra, de longe, de nunca.

Peumo, então vi tua folhagem, tua verdura
minuciosa, encrespada, cobrir com seus impulsos
teu tronco terrenal e tua largueza olorosa.

Pensei como és toda a minha terra: minha bandeira
deve ter aroma de peumo ao despregar-se,
um odor de fronteiras que de súbito
entram em ti com toda a pátria em sua corrente.

Peumo puro, fragrância de anos e cabeleiras
no vento, na chuva, sob a curvatura
da montanha, com um ruído de água que baixa
até nossas raízes, ó amor, ó tempo agreste
cujo perfume pode nascer, desenredar-se
de uma folha e encher-nos até derramarmos
a terra, como velhos cântaros enterrados!


“Quilas”
Entre as folhas retas que não sabem sorrir
encondes teu plantel de lanças clandestinas.

Tu não esqueceste.
Quando passo por tua folhagem
murmura a dureza, e despertam palavras
que ferem, sílabas que amamentam espinhos.

Tu não esqueces.
Eras argamassa molhada
com sangue, eras a coluna da casa e a guerra,
eras bandeira, teto de minha mãe araucana,
espada do guerreiro silvestre, Araucania
eriçada de flores que feriram e mataram.

Asperamente escondes as lanças que fabricas
e que conhece o vento da região selvagem,
a chuva, a águia dos bosques queimados,
e o sutil habitante recém-despossuído.

Talvez, talvez: não digas a ninguém o teu segredo.

Guarda para mim uma lança silvestre, ou madeira
de uma flecha.
Eu tampouco esqueci.



“Drimis Winterei”
Plantas sem nome, folhas
e cordas montanhosas,
ramos tecidos de ar verde, fios
recém-bordados, ganchos de metais escuros,
inumerável flora coronária
da umidade, do vasto vapor, da água imensa.

E entre toda a forma que buscou este entrelaçado,
entre estas folhas cujo molde intacto
equilibrou na chuva seu prodígio,
ó árvore, despertaste como um trovão
e em tua copa povoada por toda a verdura
adormeceu como um pássaro o inverno.




X
Zonas frias

Termo abandonado! Linha louca
em que a fogueira ou o cardo enfurecido
formam capas de azul eletrizado.

Pedras batidas por
agulhas do cobre, estradas
de material silêncio, ramos mergulhados
no sal das pedras.


Aqui estou, aqui estou,
boca humana entregue ao passo pálido
de um tempo detido como taça ou cadeira,
central presídio de água sem saída,
árvore de corporal flor derrubada,
unicamente surda e brusca areia.

Pátria minha, terrestre e cega como
nascidos aguilhões da areia, para ti toda
a fundação de minha alma, para ti as perpétuas
pálpebras de meu sangue, e de volta
o meu prato de papoulas.


Dá-me de noite, em meio às plantas terrestres,
a hostil rosa de orvalho que dorme em tua bandeira,
dá-me de lua ou de terra teu pão polvilhado
com teu temível sangue escuro:
sob a tua luz de areia
não há mortos, mas longos ciclos de sal, azuis
ramos de misterioso metal morto.




XI
“Chercanes”
Gostaria que não desconfiásseis: é verão,
a água me regou c levantou um desejo
como um ramo, um canto meu me mantém
como um tronco enrugado, com certas cicatrizes.

Minúsculos, amados, vinde a minha cabeça.

Aninhai em meus ombros nos quais passeia
o fulgor de um lagarto, em meus pensamentos
sobre os quais caíram tantas folhas,
ó círculos pequenos da doçura, grãos
de alado cereal, ovozinho emplumado,
formas puríssimas em que o olho
certeiro dirige vôo e vida,
aqui, aninhai em minha orelha, desconfiados
e diminutos: ajudai-me:
quero ser mais pássaro cada dia.



“Loica”
Perto de mim, sangrenta, mas ausente.

Com tua máscara cruel e teus olhos guerreiros,
Entre os torrões, saltando de um tesouro
Para outro, na plenitude pura e selvagem.

Conta-me como entre todas,
Em nossos matagais que a chuva
Tingiu com seus lamentos, como, só,
Teu peitilho recolhe todo o carmim do mundo?
Ai, és polvilhada pelo rubro verão,
Entraste na gruta do pólen escarlate
E tua mancha recolhe todo o fogo
E tua mancha recolhe todo o fogo.

E a este olhar mais que ao firmamento
E à noite nevada em seu baluarte andino
Quando abre o leque de cada dia, nada
A detém: só a tua sarça
Que continua ardendo sem queimar a terra.



“Chucao”

Na fria folhagem multiplicada, de súbito
A voz do chucao como se ninguém existisse
A não ser esse grito de toda a solidão unida,
Como essa voz de todas as árvores molhadas.

Passou a voz a tremer e escura sobre o meu cavalo,
mais lenta e mais profunda que um vôo: parei,
onde estava? Que dias eram aqueles?
Tudo o que vivi galopando naquelas
Estações perdidas, no mundo da chuva
Nas janelas, o puma na intempérie
Rondando com duas pontas de fogo sangüinário,
E o mar dos canis, entre túneis verdes
De empapada formosura, a solidão, o beijo
Da que amei mais jovem sob as aveleiras,
Tudo surgiu de súbito quando na selva o grito
Do chucao com as suas sílabas úmidas.




XII
Botânica
O sanguinário litre e o benéfico boldo
disseminam seu estilo
em irritantes beijos de animal esmeralda
ou antologias de águas escuras entre as pedras.


A gomeleira no cimo da árvore estabelece
sua dentadura nívea
e a selvagem aveleira constrói seu castelo
de páginas e gotas.

A artemísia e a chépica rodeiam
os olhos do orégano
e o radiante louro da fronteira
perfuma as longínquas intendências.


Quila e quelenquelén das manhãs.

Idioma frio das fúcsias,
que se vai por pedras tricolores
gritando viva o Chile com a espuma!

O dedal de ouro espera
os dedos da neve
e roda o tempo sem seu matrimônio,
que uniria os anjos do fogo e do açúcar.


A caneleira mágica
lava na chuva sua racial ramagem,
e precipita os seus lingotes verdes
sob a vegetal água do sul.


A doce aspa do olmo
com fanegas de flores
sobe as gotas do copihue rubro
para conhecer o sol das guitarras.


A agreste delgadilla
e o celestial poejo
bailam nos prados com o jovem orvalho
recentemente armado pelo rio Toltén.


A indecifrável doca
decapita a sua purpura na areia
e conduz seus triângulos marinhos
até as secas luas litorais.


A brunida papoula,
relâmpago e ferida, dardo e boca,
sobre o trigo queimante
põe as suas pontuações escarlates.


A tiliácea evidente
condecora os seus mortos
e tece suas famílias
com águas mananciais e medalhas de rio.


O paico arranja lâmpadas
no clima do sul, desamparado,
quando vem a noite
do mar jamais adormecido.


O roble dorme sozinho,
muito vertical, muito pobre, muito mordido,
muito decisivo no prado puro
com a sua roupa de maltrapilho maltratado
e sua cabeça cheia de solenes estrelas.




XIII
Araucária

Todo o inverno, toda a batalha,
todos os ninhos do molhado ferro,
em tua firmeza atravessada de aragem,
em tua cidade silvestre se levantam.


O cárcere renegado das pedras,
os fios submersos do espinho,
fazem de tua aramada cabeleira
um pavilhão de sombras minerais.


Pranto eriçado, eternidade da água,
monte de escamas, raio de ferraduras,
tua atormentada casa se constrói
com pétalas de pura geologia.


O alto inverno beija a tua armadura
e te cobre de lábios destruídos:
a primavera de violento aroma
rompe a tua sede em tua implacável estátua:
e o grave outono espera inutilmente
derramar ouro em tua estatura verde.




XIV
Tomás Lago
Outras pessoas se deitaram entre as páginas dormindo
como insetos elzevirianos, entre eles
foram disputados certos livros recém-impressos
como no futebol, marcando gols de sabedoria.

Nós então cantamos na primavera
junto aos rios que arrastam pedras dos Andes,
e estávamos entrançados com nossas mulheres sorvendo
mais de uma colméia, devorando até o enxofre do mundo.

E não só isso mas muito mais: compartilhamos
a vida com humildes amigos que amamos,
e que nos ensinaram com as flechas do vinho
o alfabeto honrado da aldeia, o repouso
dos que conseguiram na dureza
sair cantando.
Ó dias em que juntos
visitamos a cova e os tugúrios,
destroçamos as teias de aranha, e nas margens
do sul sob a noite e sua argamassa
removida viajamos:
tudo era flor e pátria passageira,
tudo era chuva e material do fumo.

Que longa estrada caminhamos, detendo
o passo nas pousadas, dirigindo
nossa atenção a um extremo crepúsculo, a uma pedra,
a uma parede escrita por um carvão, a um grupo
de foguistas que de repente
nos ensinaram todas as canções do inverno.

Mas não só a lagarta andava camaleando,
em nossas janelas, banhada em celulose,
cada vez mais celestial em seu papel de culto,
mas também o ferruginoso, o iracundo, o vaqueiro
que nos queria cobrar com duas pistolas no peito,
ameaçando devorar as nossas mães
e empenhar nossos bens
(chamando a tudo isso heroísmo e outras coisas).

Nós os deixamos passar a olhá-los, não puderam
arrancar-nos uma casca, amolecer um ganido,
e cada um se foi a seu túmulo,
de jornais europeus ou pesos bolivianos.

Nossas lâmpadas continuam acesas, ardendo
mais altas que o papel e que os foragidos.



Rubén Azócar
Para as ilhas!, dissemos.
Eram dias de confiança
e estávamos sustentados por árvores ilustres:
nada nos parecia longe, tudo podia enredar-se
dum momento para outro na luz que produzíamos.

Chegamos com sapatos de couro grosso: chovia,
chovia nas ilhas, assim se mantinha o território
como uma mão verde, como luva
cujos dedos flutuavam
entre as algas vermelhas.

Enchemos de tabaco o arquipélago, fumávamos
até tarde no Hotel Nilsson, e disparávamos
ostras frescas para todos os pontos cardeais.

A cidade tinha uma fábrica religiosa
de cujas portas grandes, na tarde inanimada,
saía como um longo coleóptero um desfile
negro de sotainazinhas sob a triste chuva:
acudíamos a todos os borgonhas, enchíamos
o papel com os signos de uma dor hieróglifa.

Eu me evadi de repente: por muitos anos, distante,
em outros climas que acaudalaram minhas paixões
recordei as barcas sob a chuva, contigo,
que ali ficavas para que as tuas grandes sobrancelhas
lançassem suas raízes molhadas sobre as ilhas.



Juvencio Valle
Juvencio, ninguém sabe como tu e eu o segredo
do bosque de Boroa: ninguém
conhece certas veredas de terra avermelhada
sobre as quais acorda a luz da aveleira.

Quando as pessoas não nos ouvem não sabem
que ouvimos chover sobre árvores e tetos
de zinco, e que ainda amamos a telegrafista,
aquela, aquela moça que como nós
conhece o grito fundido das locomotivas
de inverno, nas comarcas.

Só tu, silencioso,
entraste no aroma que a chuva despenca,
incitaste o aumento dourado da flora,
recolheste o jasmim antes que ele nascesse.

O barro triste, defronte dos armazéns,
o barro triturado pelas graves carretas
como a negra argila de certos sofrimentos,
está (quem o sabe como tu?) derramado
por trás da profunda primavera.

Também
temos em segredo outros tesouros:
folhas que como línguas escarlates
cobrem a terra, e pedras suavizadas
pela torrente, pedras dos rios.



Diego Muñoz
Nós só nos defendemos, assim parece, com descobrimentos
e signos estendidos no papel tempestuoso,
mas que, capitães, corrigimos
a murros a rua maligna
e logo entre acordeões elevamos
o coração com águas e cordames.

Marinheiro, já regressaste de teus portos
de Guayaquil, odores de frutas poeirentas,
e de toda a terra um sol de aço
que te fez derramar vitoriosas espadas.

Hoje sobre os carvões da pátria chegou
uma hora - dores e amor - que compartilhamos,
e do mar sobressai sobre tua voz o fio
de uma fraternidade mais vasta que a terra.




XV
Ginete na chuva

Fundamentais águas, paredes de água, trevo
e aveia combatida,
cordoagens já unidas na rede duma noite
úmida, gotejante, selvagemente fiada,
gota desgarradora repetida no lamento,
cólera diagonal cortando o céu.

Galopam os cavalos de perfume empapado,
sob a água, golpeando a água, nela intervindo
com suas ramagens rubras de pelo, pedra e água:
e o vapor acompanha como um leite louco
a água endurecida com fugazes pombas.

Não há dia mas apenas as cisternas
do clima duro, do verde movimento
e as patas atam veloz terra c transcurso
entre bestial aroma de cavalo com chuva.

Mantas, montarias, xairéis agrupados
em sombrias romãs sobre os
ardentes lombos de enxofre que golpeiam
a selva decidindo-a.

Mais além, mais além, mais além, mais além,
mais além, mais além, mais além, mais alééééém,
os ginetes despencam a chuva, os ginetes
passam sob as aveleiras amargas, a chuva
torce em trêmulos raios seu trigo sempiterno.

Há luz da água, relâmpago confuso
derramado na folha, e do mesmo som do galope
sai uma água sem vôo, ferida pela terra.

Úmida rédea, abóbada enramada,
passos de passos, vegetal noturno
de estrelas rotas como gelo ou lua, ciclônico cavalo
coberto pelas flechas como um gelado espectro,
cheio de novas mãos nascidas na fúria,
golpeante maçã rodeada pelo medo
e sua grande monarquia de temível estandarte.




XVI
Mares do Chile

Em longínquas regiões
teus pés de espuma, tua esparzida praia
reguei com pranto desterrado e louco.
,

Hoje a tua boca venho, hoje a teu rosto.


Não ao coral sanguinário, não à queimada estrela,
nem às incandescentes e despencadas águas
entreguei o respeitoso segredo, nem a sílaba.

Guardei a tua voz enfurecida, uma pétala
de tutelar areia
entre os móveis e as velhas roupas.


Um pó de sinos, uma rosa molhada.


E muitas vezes era a água própria
de Arauco, a água dura:
mas eu conservava minha pedra submersa
c nesta, o palpitante som da tua sombra.


Ó mar do Chile, ó água
alta e cingida como aguda fogueira,
pressão e sonho e unhas de safira,
ó terremoto de sal e leões!
Vertente, origem, costa
do planeta, tuas pálpebras
abrem o meio-dia da terra
atacando o azul das estrelas!
O sal e o movimento se desprendem de ti
e repartem oceano às grutas do homem
até que além das ilhas teu peso
parte-se e estende um ramo de substâncias totais.


Mar do deserto norte, mar que fere o cobre
e adianta a espuma para a mão
do áspero habitante solitário,
entre alcatrazes, rochas de frio e esterco,
costa queimada ao passo de uma aurora desumana!

Mar de Valparaíso, onda
de luz sozinha e noturna,
janela do oceano
a que se assoma
a estátua de minha pátria
a ver com os olhos ainda cegos.


Mar do sul, mar oceano,
mar, lua misteriosa,
em Imperial aterrador de robles,
em Chiloé ao sangue assegurado
e de Magalhães ao limite
todo o silvo do sal, toda a lua louca,
e o estelar cavalo sem freio do gelo.




XVII
Ode de inverno ao rio Mapocho

Ó, sim, neve imprecisa.

Ó, sim, tremulando em plena flor de neve.

pálpebra boreal, pequeno raio gelado
quem, quem té chamou até o acinzentado vale,
quem, quem te arrastou desde o pico da águia
até onde as tuas puras águas tocam
os terríveis farrapos de minha pátria?
Rio, por que conduzes
água fria e secreta,
água que a alba dura das pedras
guardou em sua catedral inacessível,
até os pés feridos de meu povo?
Torna, torna à tua taça de neve, rio amargo,
torna, torna à tua taça de espaçosas escarchas,
submerge a tua prateada raiz em tua secreta origem
ou despenha-te e arrebenta-te em outro mar sem lágrimas!
Rio Mapocho quando a noite chega
e como negra estátua tombada
dorme sob as tuas pontes como um cacho negro
de cabeças batidas pelo frio e pela fome
como por duas imensas águias, ó rio,
ó duro rio parido pela neve,
por que não te ergues como imenso fantasma
ou como nova cruz de estrelas para os esquecidos?
Não, a tua rápida cinza corre agora
junto ao soluço lançado à água negra,
junto à manga rota que o vento endurecido
faz tremer sob as folhas do ferro.

Rio Mapocho, aonde levas
plumas de gelo para sempre feridas,
sempre junto à tua encardida ribeira
a flor selvagem nascerá mordida pelos piolhos
e a tua língua de frio raspará as faces
de minha pátria desnuda?
Oh, que não seja isso,
oh, que não seja, e que uma gota de tua espuma negra
salte da lama à flor do fogo
e precipite a semente do homem!
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Canto VIII - A terra se chama Juan

I
Cristóbal Miranda
(“palero”, Tocopilla)

Te conheci, Cristóbal, nas lanchas
da baía, quando desce
o salitre, para o mar, na queimante
vestimenta de um dia de novembro.

Relembro aquele garbo extático,
os cerros de metal, a água quieta.

E só o homem das lanchas, úmido
de suor, removendo neve.

Neve dos nitratos, derramada
sobre os ombros da dor, caindo
na barriga cega das naves.

Ali, sapadores, heróis de uma aurora
carcomida por ácidos, sujeita
aos destinos da morte, firmes,
recebendo o nitrato caudaloso.

Cristóbal, esta lembrança para ti.

Para os camaradas da sapa,
em cujos peitos entra o ácido
e as emanações assassinas,
inchando como águias machucadas
os corações, até que tomba o homem,
até que role o homem pelas ruas,
para as cruzes quebradas do pampa.

Bem, não digamos mais nada, Cristóbal, agora
este papel que te recorda, a todos,
aos lancheiros da baía, ao homem
enegrecido dos barcos, meus olhos
seguem com vocês nesta jornada
e minha alma é uma pá que se ergue
carregando e descarregando sangue e neve,
junto de vocês, vida do deserto.




II
Jesús Gutiérrez
(“agrarista”)

Em Monterrey morreu meu pai
Genovevo Gutiérrez, se foi
com Zapata.
De noite os cavalos
perto de casa, a fumaça
dos federais, os tiros no vento,
o furacão que sai do milho,
levei o fuzil de lado a lado,
desde as terras de Sonora,
dormíamos de vez em quando, medíamos
rios e bosques, a cavalo,
entre mortos, a defender
a terra do pobre, feijões,
omelete, guitarra, rolávamos
até o limite, éramos pó,
os senhores nos faziam madrugar,
até que de cada pedra
nasciam os nossos fuzis.

Aqui está minha casa, minha terra
pequena, o certificado
firmado por meu general
Cárdenas, os perus,
os patinhos na lagoa,
agora já não se luta,
meu pai ficou em Monterrey
e aqui pendurado na parede
junto à porta a cartucheira,
o fuzil pronto, o cavalo pronto,
pela terra, por nosso pão,
amanhã talvez a galope,
se o meu general me aconselha.




III
Luis Cortés
(de Tocopilla)

Camarada, meu nome é Luis Cortés.

Quando veio a repressão, em Tocopilla
me agarraram.
Me atiraram em Pisagua.

Você, camarada, sabe como é isso.

Muitos caíram doentes, outros
enlouqueceram.
É o pior
campo de concentração de González
Videla.
Vi Ángel Veas morrer,
do coração, uma manhã.
Foi horrível
ver Veas morrer nessa areia assassina,
rodeado de cercas de arame, depois de toda
sua vida generosa.
Quando me senti doente
também do coração, me mudaram
para Garitaya.
Você não conhece, camarada.

É lá no alto, na fronteira com a Bolívia.

Um ponto desolado, a 5000 metros de altura.

Há uma água salobre para beber, mais
salobre que a água do mar, e cheia de pulgões
como vermes rosados que pululam.

Faz frio e parece que o céu em cima
da solidão vai cair sobre nós,
sobre meu coração que já mal se agüenta.

Os próprios carabineiros tiveram pena
e contra a ordem de deixar a gente morrer
sem querer nunca mandar uma maca,
me amarraram a uma mula e descemos as montanhas:
26 horas caminhou a mula, e meu corpo
já não resistia, camarada, entre a cordilheira sem caminhos,
e meu coração doente, e aqui estou eu, olhe
os machucados, não sei até quando vou viver,
mas você sente, não quero pedir nada,
conte você, camarada, o que faz ao povo o desgraçado,
a nós que o levamos à altura em que ri
com um riso de hiena em cima de nossas dores,
conte, você, camarada, conte, conte, pouco importa minha morte,
nem os nossos sofrimentos, pois a nossa luta é grande,
mas que fiquem sabendo destes sofrimentos,
que fiquem sabendo, camarada, não se esqueça.




IV
Olegario Sepúlveda
(sapateiro, Talcahuano)

Olegario Sepúlveda é meu nome.

Sou sapateiro, fiquei
coxo desde o grande terremoto.

Sobre o cortiço um pedaço de morro
e o mundo em cima de minha perna.

Lá gritei dois dias,
mas minha boca ficou cheia de terra,
gritei mais mansamente
até que adormeci para morrer.

Foi um grande silêncio o terremoto,
o terror dos morros,
as lavadeiras choravam,
uma montanha de pó
enterrou as palavras.

Aqui está me vendo com esta sola
defronte do mar, o único limpo,
as ondas nem eram pra chegar
azuis na minha porta.

Talcahuano, tuas grades sujas,
teus corredores de pobreza,
nos morros água podre,
madeira quebrada, covas negras
onde o chileno mata e morre.

(Ó dores do fio aberto
da miséria, lepra do mundo,
arrabalde dos mortos, gangrena
acusadora e venenosa!
Haveis vindo do sombrio
Pacífico, à noite, ao porto?
Haveis tocado entre as pústulas
a mão do menino, a rosa
salpicada de sangue e urina?
Haveis erguido os olhos
para os degraus retorcidos?
Haveis visto a mendiga
com um arame na lixeira
tremer, levantar os joelhos
e olhar lá do fundo onde
já não restam lágrimas nem ódio?)
Sou sapateiro em Talcahuano.

Sepúlveda, na frente do dique Grande.

Quando quiser, meu senhor, pobre
nunca fecha a porta.




V Arturo Carrión
(navegante, Iquique)

junho, 1948.
Querida Rosaura, aqui
estou eu, em Iquique, preso, me mande uma camisa
e fumo.
Não sei
até quando vai durar este baile.

Quando embarquei no Glenfoster
pensei em você, escrevi de Cádiz,
ali fuzilaram à vontade, e aí foi mais
triste em Atenas, naquela manhã
no cárcere mataram com tiro
duzentos e setenta e três moços:
o sangue corria até fora do muro,
vimos saírem os oficiais
gregos com os chefes norte-americanos, vinham rindo:
eles gostam do sangue do povo,
mas tinha um espécie de fumo preto
na cidade, estava escondido o choro, a dor, o luto,
comprei pra você uma carteira de cartões de visita, lá
conheci um patrício de Chiloé,
tem um pequeno restaurante, me disse
as coisas andam ruíns, há ódio:
mas ficou melhor na Hungria,
os camponeses têm terra,
distribuem livros, em Nova York
encontrei tua carta, mas todos
se juntam, pau e pau no pobre,
está vendo só, eu, marinheiro velho
e porque sou do sindicato,
já na coberta
me pegaram, me perguntaram
besteiras, me deixaram preso,
polícia em toda parte.

lágrimas também no pampa:
até quando estas coisas
vão continuar, perguntam todos, hoje é um
e outro pau para o pobre,
dizem que em Pisagua há dois mil,
eu pergunto o que está acontecendo no mundo,
mas não se tem direito de perguntar
assim, diz a polícía: não esqueça o fumo, fale com o Rojas
se ele não está preso, não chores,
o mundo já tem lágrimas
demais, outra coisa é que faz falta
e aqui digo até breve pra você, um
abraço e um beijo do esposo amoroso
Arturo Carrión Cornejo, cárcere de Iquiyue.




VI
Abraham Jesús Brito
(poeta popular)

Jesús Brito é seu nome, Jesús Parreira ou povo,
e foi-se fazendo água pelos olhos,
e pelas mãos se foi fazendo raízes.

até que o plantaram de novo onde esteve
antes de ser, antes que brotasse
do território, entre as pedras pobres.


E foi entre mina e marinheiro uma ave
nodosa, um patriarcal seleiro
da cortiça suave da pátria terrível:
quanto mais fria, mais luz a encontrava:
quanto mais duro o solo, mais lua lhe saía:
quanto mais fome, mais cantava.


E todo o mundo ferroviário abria
com sua chave e sua lira sarmentosa,
e pela espuma da pátria caminhava
cheio de pacotinhos estrelados,
ele, a árvore do cobre, ia regando
cada pequeno trevo acontecido,
o espantoso crime, o incêndio,
e o ramo dos rios tutelares.


Sua voz era a dos gritos roucos
perdidos na noite dos raptos,
ele levava sinos torrenciais
recolhidos à noite em seu chapéu,
e recolhia em seu casaco esfarrapado
as transbordantes lágrimas do povo.

Ia pelos ramais arenosos,
pelo espaço afundado do salitre,
pelos ásperos montes litorâneos
construindo o romance prego a prego,
e telha a telha levantando o verso:
deixando nele a mancha das mãos
e as goteiras da ortografia.


Brito, pelas paredes capitais,
entre o rumor dos cafés,
andavas como uma árvore peregrina
procurando terra com os pés profundos,
até que foste te fazendo raízes,
pedra e torrão e mineração escura.


Brito, a tua majestade foi batida
como um tambor de majestoso couro
e era uma monarquia à intempérie
a tua altivez de arvoredo e povo.


Árvore errante, agora as tuas raízes
cantam debaixo da terra, e em silêncio.

Um pouco mais profundo és agora.

Agora tens terra e tens tempo.




VII
Antonino Bernales
(pescador, Colômbia)

No rio Magdalena anda como a lua,
lento pelo planeta de folhas verdes,
uma ave vermelha ulula, zumbe o som
de velhas asas negras, as margens
têm o transcorrer de águas e águas.

Tudo ê o rio, toda vida é rio,
e Antonino Bernales era rio.

Pescador, carpinteiro, voga, agulha
de rede, prego para as tábuas,
martelo e canto, tudo era Antonino
enquanto o Magdalena como a lua lenta
arrastava o caudal das vidas do rio.

Mais alto em Bogotá, chamas, incêndio,
sangue, se diz, não é bem claro,
Gaytán morreu.
Entre as folhas
como um chacal o riso de Laureano
açula as fogueiras, um tremor
de povo como um calafrio
percorre o Magdalena.

É Antonino Bernales o culpado.

Não se mexeu de sua pequena choça.

Passou dormindo aqueles dias.

Mas os advogados o intimam,
Enrique Santos deseja sangue.

Unem-se todos debaixo dos fraques.

Antonino Bernales tombou
assassinado na vingança,
caiu abrindo os braços no rio,
voltou ao rio como à água mãe.

O Magdalena leva ao mar seu corpo
e do mar a outros rios, a outras águas
e a outros mares e a outros pequenos rios
girando em redor da terra.

Outra vez
entra no Magdalena, são as margens
que ele ama, abre os braços de água vermelha,
passa entre sombras, entre luz espessa,
e outra vez segue o seu caminho de água.

Antonino Bernales, ninguém pode
distinguir-te na torrente, eu sim, eu te recordo
e ouço arrastar teu nome que não pode
morrer, e que envolve a terra,
nome apenas, entre os nomes, povo.




VIII
Margarita Naranjo
(Salitreira María Elena, Antofagasta)

Estou morta.
Sou de María Elena.

Vivi a vida toda no pampa.

Demos o sangue para a companhia
norte-americana, meus pais antes, meus irmãos.

Sem greve nenhuma, sem nada, nos cercaram.

Era de noite, veio todo o Exército,
iam de casa em casa acordando a gente,
levando todos para o campo de concentração.

Eu esperava que nós não fôssemos.

Meu marido trabalhou tanto para a companhia,
e para o presidente, foi o mais esforçado,
conseguindo os votos aqui, é tão querido,
ninguém tem nada pra dizer dele, ele luta
por seus ideais, é puro e honrado
como poucos.
Aí chegaram à nossa porta,
mandados pelo Coronel Urízar,
e o pegaram ainda se vestindo e a empurrões
o lançaram no caminhão que partiu na noite,
para Pisagua, para a escuridão.
Então
achei que já não podia mais respirar, parecia
que a terra me faltava debaixo dos pés,
é tanta traição, tanta injustiça,
que me subiu à garganta algo como um soluço
que não me deixou mais viver.
Me trouxeram comida
as companheiras, e eu lhes disse: “Não comerei até que ele volte”.

Três dias depois falaram com o Sr.
Urízar,
que deu grandes gargalhadas, mandaram
telegramas e telegramas que o tirano em Santiago
não respondeu.
E eu fui dormindo e morrendo,
sem comer, apertei os dentes para não receber
nem mesmo sopa ou água.
Não voltou, não voltou,
e pouco a pouco fiquei morta, e me enterraram:
aqui, no cemitério do escritório salitreiro,
havia naquela tarde um vento de areia,
choravam os velhos e as mulheres cantavam
as canções que tantas vezes cantei com elas.

Se eu pudesse, teria espiado para ver se lá estava
Antonio, meu marido, mas não estava, não estava,
não o deixaram vir nem a minha morte: agora
aqui estou morta, no cemitério do pampa
só tenho a solidão ao redor de mim, que já não existo,
que já não existirei sem ele, nunca mais, sem ele.




IX
José Cruz Achachalla
(mineiro, Bolívia)

Sim, senhor, José Cruz Achachalla,
da serra de Granito, no sul de Oruro.

Pois lá deve viver ainda
minha mãe Rosalía:
trabalha para uns senhores,
pois é, lavando roupa.

A gente passava fome, capitão,
e com uma varinha batiam
em minha mãe todos os dias.

Por isso virei mineiro.

Fugi pelas grandes serras,
uma folhinha de coca, senhor,
uns ramos na cabeça
e andar, andar, andar.
Os abutres
me perseguiam lá do céu,
e eu pensava: são melhores
que os senhores brancos de Oruro,
e assim andei até o território
das minas.

Já faz
quarenta anos, eu era então
um menino faminto.
Os mineiros
me receberam.
Fui aprendiz
nas galerias escuras,
unha por unha contra a terra,
apanhei o estanho escondido.

Não sei aonde nem pra quê
saem os lingotes prateados:
vivemos mal, as casas em ruínas,
e a fome, outra vez, senhor,
e quando
a gente se juntava, capitão,
para mais um peso de salário,
o vento vermelho, o pau, o fogo,
a polícia nos batia,
e aqui estou, pois é, capitão,
despedido do serviço,
me diga pra onde eu vou,
ninguém me conhece em Oruro,
estou velho como as pedras,
já não posso cruzar os montes,
que posso fazer por esses caminhos,
aqui mesmo agora eu fico,
podem me enterrar no estanho,
pois só o estanho me conhece.

José Cruz Achachalla, sim,
não continues a bater pernas,
até aqui chegaste, até aqui,
Achachalla, até aqui chegaste.




X
Eufrosino Ramírez
(Casa Verde, Chuquicamata)

Tínhamos de tomar as pranchas quentes
de cobre com as mãos, e entregá-las
à pá mecânica.
Saíam quase ardendo,
pesavam mais que o mundo, íamos extenuados
transportando as lâminas do mineral, às vezes
uma delas caía sobre um pé e o quebrava,
sobre uma mão que virava um coto.

Vieram os gringos e disseram: “Trabalhem
mais depressa e podem ir pra casa”.

A duras penas, pra sair mais cedo,
fizemos o trabalho.
Mas eles voltaram:
“Agora trabalhem menos, ganhem menos”.

Foi a greve na Casa Verde, dez semanas,
greve, e quando voltamos ao trabalho,
com um pretexto: onde está a tua ferramenta?
me atiraram na rua.
Olhe o senhor estas mãos,
é um calo só que o cobre fez,
escute meu coração, não parece
que dá pulos?, é o cobre que machuca,
e mal posso andar de um lugar pra outro,
procurando, faminto, serviço que não encontro:
parece que me enxergam agachado, levando
as folhas invisíveis do cobre que me mata.




XI
Juan Figueroa
(Casa do Iodo, María Elena, Antofagasta)

O senhor é Neruda? Entre, camarada.

É, da Casa do Iodo, já não existem
outros vivendo.
Eu me agüento.

Sei que não estou mais vivo, que me espera
a terra do pampa.
São quatro horas
por dia, na Casa do Iodo.

Chega por uns tubos, sai como uma massa,
como uma goma roxa.
Nós a passamos
de bateia em bateia, nós a envolvemos
como um recém-nascido.
Enquanto isso,
o ácido nos corrói, nos consome,
entrando pelos olhos, pela boca,
pela pele, pelas unhas.

Da Casa do Iodo ninguém sai
cantando, companheiro.
E se pedimos
mais uns pesos de salário
para os filhos sem sapatos,
dizem: “Moscou vai mandar”, camarada,
e declaram estado de sítio, e nos cercam,
como se a gente fosse uns animais e nos batem,
eles são assim, camarada, estes filhos da puta!
Aqui estou eu, já sou o último:
onde está Sánchez? onde está Rodríguez?
Podres debaixo do pó de Polvillo.

Afinal a morte deu a eles o que pedíamos:
seus rostos estão com máscaras de iodo.




XII
O mestre Huerta
(da mina A Desprezada, Antofagasta)

Quando o senhor for ao norte,
vá até a mina A Desprezada,
pergunte lá pelo mestre Huerta.

De longe não vai o senhor ver nada,
só os areais cinzentos.

Depois, verá as estruturas,
o corrimão, os desmontes.

Os cansaços, os sofrimentos
a gente não vê, estão debaixo da terra
mexendo, partindo seres,
ou então descansam, estendidos,
se transformando, silenciosos.

Era “picano” o mestre Huerta.

Media um metro e noventa e cinco.

Os picanos são os que abrem
o terreno até o desnível,
quando o veio se rebaixa.

Quinhentos metros abaixo,
com água até a cintura,
o picano, pica, pica, vai furando.

Só pode sair do inferno
cada quarenta e oito horas,
até que as perfuradoras
na rocha, na escuridão,
no barro, deixam a polpa
por onde a mina caminha.

O mestre Huerta, grande picano,
parecia que enchia a picada
com as suas costas.
Entrava
cantando como um capitão.

Saía gretado, amarelo,
encurvado, ressecado, e seus olhos
olhavam como olho de morto.

Depois se arrastou pela mina.

Já não podia descer à galeria.

O antimônio lhe comeu as tripas.

Emagreceu de dar medo.

Mas nem podia andar.

Tinha as pernas picadas
como por pontas, e como era
tão alto, parecia
um fantasma faminto
pedindo sem pedir, o senhor sabe.

Ainda não tinha trinta anos.

Pergunte onde está enterrado.

Ninguém sabe dizer,
porque a areia e o vento derrubam
e enterram as cruzes, mais tarde.

Ainda não tinha trinta anos.

É em cima, na Desprezada,
onde trabalhou o mestre Huerta.




XIII
Amador Cea
(de Coronel, Chile, 1949)

Como tinham detido meu pai
e entrou o presidente que elegemos
e disse que éramos livres, eu pedi que soltassem o meu velho.

Me levaram e me bateram um dia inteiro.

Não conheço ninguém no quartel.
Não sei, não posso
nem me lembrar das caras deles.
Era a polícia.

Quando perdia o sentido, me atiravam
água no corpo e continuavam batendo.

Numa tarde, antes de sair, me levaram
arrastado a um banheiro,
me enfiaram a cabeça dentro dum vaso
de WC cheio de excrementos.
Ia me afogando.

“Agora, vai pedir liberdade ao presidente,
que te manda este presente”, me diziam.

Me sinto arrebentado, me quebraram esta costela.

Mas por dentro estou como antes, camarada.

A gente eles só quebram matando.




XIV Benilda Varela
(Concepción, Cidade Universitária, Chile, 1949)

Arrumei a comida das criancinhas e saí.

Quis entrar em Lota para ver meu marido.


Como se sabe, mandam a polícia
e ninguém pode entrar sem sua licença.

Minha cara não agradou.
Eram ordens
de González Videla, antes de começar
a dizer seus discursos, para que nossa gente
tenha medo.
Foi assim: me agarraram,
me despiram, me atiraram ao chão com pancadas.

Perdi o sentido.
Acordei no chão
nua, com um lençol molhado sobre
o meu corpo em sangue.
Reconheci um verdugo:
chama-se Víctor Molina esse bandido.

Mal abri os olhos, continuaram me batendo
com pedaços de borracha.
Estou toda roxa
de sangue, e nem posso me mexer.

Eram cinco, e os cinco me espancavam
como um saco.
Durou seis horas isso.

Só não morri para dizer a vocês, camaradas:
temos de lutar muito mais, até que desapareçam
esses verdugos da face da terra.

Que os povos conheçam seus discursos
Na ONU sobre a “liberdade”,
enquanto os bandidos matam de pancadas as mulheres
nos porões, sem ninguém ficar sabendo.

Aqui não aconteceu nada, vão dizer, e Dom Enrique
Molina nos vai falar do triunfo do “espírito”.

Mas isto não vai acontecer pra sempre.

Um fantasma percorre o mundo, e podem começar de novo
a espancar nos porões: vão pagar por seus crimes, não demora.




XV
Calero, trabalhador dos bananais
(Costa Rica, 1940)

Não te conheço.
Nas páginas de Fallas li a tua vida,
gigante obscuro, menino batido, esfarrapado e errante.

Dessas páginas voam o teu riso e as tuas canções
entre os bananais, no barro sombrio, a chuva e o suor.

Que vida a dos nossos, que alegrias ceifadas,
que forças destruídas pela comida ignóbil,
que cantos derrubados pela moradia em pedaços,
que poderes do homem desfeitos pelo homem!
Porém mudaremos a terra.
Não irá a tua sombra alegre
de charco em charco até a morte desnuda.

Mudaremos, juntando tua mão com a minha,
a noite que te cobre com a sua abóbada verde.

(As mãos dos mortos que tombaram
com estas e outras mãos que constroem
estão seladas como as alturas andinas
com a profundidade de seu ferro enterrado.
)

Mudaremos a vida para que a tua linhagem
sobreviva e construa sua luz organizada.




XVI
Catástrofe em Sewell

Sánchez, Reyes, Ramírez, Núnez, Alvarez.

Estes nomes são como o cimento do Chile.

O povo é o cimento da pátria.

Se os deixais morrer, a pátria vai caindo,
vai sangrando-se até ficar vazia.

O campo nos disse: cada minuto
há um ferido, e cada hora um morto.

Cada minuto e cada hora
o nosso sangue cai, o Chile morre.

Hoje é o fumo do incêndio, ontem foi o gás grisu,
anteontem o despenhadeiro, amanhã o mar ou o frio,
a máquina ou a fome, a imprevisão ou o ácido.

Mas lá onde morre o marinheiro,
mas lá onde morrem os pampeiros,
mas lá em Sewell onde se perderam,
está todo o cuidado, as máquinas, as vidraças,
os ferros, os papéis,
menos o homem, a mulher ou o menino.

Não é o gás: é a cobiça que mata em Sewell.

Essa torneira fechada de Sewell para que não caísse
nem uma gota d'água para o pobre café dos mineiros,
aí está o crime, o fogo não é culpado.

Por todas as partes se fecham as torneiras ao povo
para que não se distribua a água da vida.

Mas a fome e o frio e o fogo que devora
a nossa raça, a flor, os cimentos do Chile,
os farrapos, a casa miserável,
isso não se raciona, sempre há bastante
para que cada minuto haja um ferido
e cada hora um morto.

Não temos nós deuses que nos socorram.

As pobres mães vestidas de preto
terão rezado depois de choradas todas as suas lágrimas.


Nós não rezamos.

Stálin disse: “Nosso melhor tesouro
é o homem”,
os cimentos, o povo.

Stálin ergue, limpa, constrói, fortifica,
preserva, olha, protege, alimenta,
porém também castiga.

E isto é que desejava dizer-vos, camaradas:
faz falta o castigo.

Não pode ser esse desmoronamento humano,
esta sangria da pátria amada,
este sangue que cai do coração do povo
cada minuto, esta morte
de cada hora.

Eu me chamo como eles, como os que morreram.

Eu também sou Ramírez, Munoz, Pérez, Fernández.

Me chamo Álvarez, Núnez, Tapia, López, Contreras.

Sou parente de todos os que morrem, sou povo
e por todo este sangue que tomba estou de luto.

Compatriotas, irmãos mortos, de Sewell, mortos
do Chile, operários, irmãos, camaradas,
hoje que estais silenciosos, vamos conversar.

E que vosso martírio nos ajude
a construir uma pátria severa
que saiba florescer e castigar.




XVII
A terra se chama Juan

Atrás dos libertadores estava Juan
trabalhando, pescando e combatendo,
em seu trabalho de carpintaria ou em sua mina molhada.

Suas mãos araram a terra e mediram
os caminhos.

Seus ossos estão em todos os lugares.

Mas vive.
Regressou da terra.
Nasceu.

Nasceu de novo como uma planta eterna.

Toda a noite impura tratou de submergi-lo
e hoje afirma na aurora seus lábios indomáveis.

Amarraram-no, e é agora decidido soldado.

Feriram-no, e conserva sua saúde de maçã.

Cortaram-lhe as mãos, e hoje fere com elas.

Enterraram-no, e vem cantando conosco.

Juan, é tua a porta e o caminho.

A terra
é tua, povo, a verdade nasceu
contigo, de teu sangue.

Não puderam exterminar-te.
Tuas raízes,
árvore de humanidade,
árvore de eternidade,
hoje estão defendidas com aço,
hoje estão defendidas com tua própria grandeza
na pátria soviética, blindada
contra as mordeduras do lobo agonizante.

Povo, do sofrimento nasceu a ordem.


Da ordem a tua bandeira de vitória nasceu.


Levanta-a com todas as mãos que tombaram,
Defenda-a com todas as mãos que se juntam:
E que avance até a luta final, até a estrela
A unidade de teus rostos invencíveis.
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Canto XIII - Coral de Ano-Novo para a Pátria em trevas

I
Saudação (1949)

De arames oxidados pela água salobre?
É Pisagua também teu rosto agora?
Quem te fez mal, como atravessaram
com um punhal o teu mel despido?

Antes de ninguém, para eles minha saudação,
para os homens, para o plinto de dores,
para as mulheres, ramos de mañio,
para as crianças, escolas transparentes,
que sobre as areias de Pisagua
foram a pátria perseguida, foram
toda a honra da terra que amo.

Será a honra sagrada de amanhã
ter sido arrojado a tuas areias,
Pisagua: ter sido de repente
recolhido à noite do terror
por ordem de um traidor envilecido
e ter chegado a teu calcário inferno
para defender a dignidade do homem.




II Os homens de Pisagua
Não esquecerei as tuas costas mortas onde
do mar hostil a suja dentada
ataca as paredes do tormento
e a pique se levantam os baluartes
dos pelados cerros infernais:
não esquecerei como olhais as águas,
para o mundo que esquece os vossos rostos,
não esquecerei quando de olhos cheios
de interrogante luz, voltais
o rosto às terras pálidas do Chile
dominadas por lobos e ladrões.


Sei como vos lançaram a comida,
como a cães sarnentos, no chão,
até que fizestes de pequenas latas
vazias os vossos pratos:
sei como vos lançaram para dormir
e como em fila recebestes,
carrancudos e valentes,
os imundos feijões
que tantas vezes às areias lançastes.

Sei como, quando recebíeis
roupa, alimentos que de toda
a extensão da pátria se juntaram,
sentistes com orgulho
que talvez, que talvez não estáveis sós.

Valentes, temperados compatriotas
que dais um novo sentido à terra:
fostes os escolhidos na caçada,
para que por vós todo o povo
sofresse em desterrados areais.

E escolheram inferno examinando
o mapa, até que acharam
este salobre cárcere, estes muros
de solidão, de surpreendedora
angústia, para que golpeareis a cabeça
sob os pés do ínfimo tirano.


Mas não acharam sua própria matéria:
não sois feitos de esterco como o pútrido,
vermiforme traidor: mentiram
seus informes, acharam
a firmeza metálica do povo,
o coração do cobre e seu silêncio.


É o metal que fundará a pátria
quando o vento do povo areento
expulsar o capitão da imundície.

Firmes, firmes irmãos,
firmes quando em caminhões, agredidos
à noite nas cabanas, empurrados,
amarrados os braços com arame,
sem despertar, apenas surpreendidos
e atropelados, fostes para Pisagua,
levados por armados carcereiros.


Depois voltaram eles
e encheram caminhões com famílias
desamparadas, batendo nas crianças.

E um pranto de filhos doces aparece
ainda na noite do deserto, um pranto
de milhares de bocas infantis,
como um coro que busca o duro vento
para que escutemos, para que não nos esqueçamos.




III
Os heróis

Félix Morales, Ángel Vcas,
assassinados em Pisagua,
feliz ano-novo, irmãos,
sob a dura terra que amastes,
que defendestes.
Hoje estais
sob as salinas que rangem
dizendo os vossos nomes puros,
sob as rosas estendidas
do salitre, sob a areia
cruel do deserto ilimitado.


Feliz ano-novo, irmãos
meus, quanto amor
me ensinastes, quanto
domínio sobre a ternura
abarcastes na morte!

Sois como as ilhas que nascem
de repente no meio do oceano,
sustentadas pelo espaço
e pela firmeza marinha.


Aprendi o mundo de vós:
a pureza, o pão infinito.

Me mostrastes a vida, a área
do sal, a cruz dos pobres.

Cruzei as vidas do deserto
como um barco num mar escuro
e me mostráveis a meu lado
os trabalhos do homem, o solo,
a casa andrajosa, o silvo
da miséria nas planuras.


Félix Morales, te recordo
pintando um retrato alto, fino
esbelto e jovem como uma nova
algarobeira, nas extensões
sedentas do pampa.


Tuas melenas bravias batiam
em teu rosto pálido, pintavas
o retrato de um demagogo
para as próximas eleições.


Te recordo dando a vida
em tua pintura, encarapitado
na escada, resumindo
toda a sua doce juventude.


Ias fazendo o sorriso
de teu verdugo na tela,
agregando branco, medindo,
acrescentando luz na boca
que ordenou depois tua agonia.


Ángel, Ángel, Ángel Veas,
operário do pampa, puro
como o metal desenterrado,
já te assassinaram, já estás
onde quiseram que estivesses
os amos do chão do Chile:
debaixo das pedras devoradoras
que com as tuas mãos tantas vezes
levantaste para a grandeza.


Nada mais puro que a tua vida.


Só as pálpebras dos ares.


Só as águas mananciais.


Só o metal inacessível.


Levarei pela vida inteira
a honra de ter estreitado
tua nobre mão combatente.


Eras tranqüilo, eras madeira
educada no sofrimento
até ser ferramenta pura.

Te recordo quando se honrava
a intendência de Iquique contigo,
trabalhador, asceta, irmão.


Faltava pão, farinha.
Então
levantavas antes da aurora
e com as tuas mãos repartias
o pão para todos.
Nunca
te vi tão grande, eras o pão,
eras o pão do povo, aberto
com o teu coração na terra.


E quando tarde na jornada
voltavas carregando o volume
do dia de luta terrível,
sorrias como a farinha,
entravas em tua paz de pão,
e te repartias de novo,
até que o sonho reunia
teu debulhado coração.




IV
González Videla

Quem foi? Quem é? onde estou, me perguntam,
em outras terras onde vou errante.

No Chile não perguntam, os punhos contra o vento,
os olbos nas minas se dirigcm a um ponto,
a um vicíoso traidor que com eles chorava
quando pediu seus votos para trepar ao trono.

Viram-no estes homens de Pisagua, os bravos
titãs do carvão: derramava as lágrimas,
arrancava os dentes prometendo,
abraçava e beijava as crianças que agora
limpam com areia a marca de sua pústula.

Fm minha cidade, em minha terra o conhecemos.
Dorme
o lavrador pensando quando suas duras mãos
poderão cercar seu pescoço de cão mentiroso,
e o mineiro na sombra de sua cova intranqüila
estira o pé sonhando que esmagou com a sola
este piolho maligno, degradado insaciável.


Sabe quem é o que fala atrás duma cortina
de baionetas, ou atrás de animais de feira,
ou atrás dos novos mercadores,
mas nunca atrás do povo que o procura
para falar uma hora com ele, sua última hora.


A meu povo arrancou a esperança, sorrindo,
vendeu-a nas trevas a seu melhor licitador,
e em vez de casas frescas e liberdades, feriram-no,
espancaram-no na garganta da mina,
lhe decretaram o salário atrás duma coronha,
enquanto uma tertúlia governava dançando
com dentes afiados de jacarés noturnos.




V
Eu não sofri

Mas não sofreste tu? Eu não sofri.
Eu sofro
só os sofrimentos do meu povo.
Eu vivo
por dentro, por dentro de minha pátria, célula
de seu infinito e abrasado sangue.

Não tenho tempo para as minhas dores.

Nada me faz sofrer além destas vidas
que a mim deram sua confiança pura,
e que um traidor fez rolar para o fundo
do buraco morto, de onde
é preciso de novo erguer-se a rosa.


Quando o verdugo pressionou os juízes
para que condenassem
o meu coração, meu enxame decidido,
o povo abriu seu labirinto imenso,
o porão em que dormem os seus amores,
e lá me sustentaram, vigiando
até a entrada da luz e do ar.

Me disseram: “Somos teus credores,
és o que há de pôr a marca fria
sobre os sujos nomes do perverso”.

E só sofri de não ter sofrido.

Só de não ter percorrido os escuros
cárceres de meu irmão e de meu irmão,
com toda a minha paixão como uma ferida,
e cada passo falso a mim rolava.

cada golpe nas tuas costas me machucava,
cada gota de sangue do martírio
resvalou até meu canto que sangrava.




VI
Neste tempo

Feliz ano.
.
.
Hoje que tens
minha terra a teus dois lados, és feliz, irmão.

Eu sou errante filho do que amo.

Responde-me, pensa que estou contigo
a perguntar-te, pensa que sou o vento de janeiro,
vento puelche, vento velho das montanhas
que quando abres a porta te visita
sem entrar, ventilando suas rápidas perguntas.

Dize-me, entraste por um campo de trigo ou de cevada,
estão dourados? Fala-me de um dia de cerejas.

Longe do Chile penso num dia redondo,
cor de amora, transparente, de açúcar em cachos,
e de grãos espessos e azuis que gotejam
em minha boca as suas taças carregadas de delícia.

Dize-me, mordeste hoje a anca pura
de um pêssego, e enchendo-te de imortal ambrosia,
até que também foste fonte da terra,
fruto c fruto entregues ao esplendor do mundo?



VII
Antes me falaram

Por estas mesmas terras forasteiras andei
eu outro tempo: o nome de minha pátria brilhava
como os constelados segredos de seu céu.


O perseguido de todas as latitudes, cego,
oprimido pela ameaça e pela ignomínia,
me tocava as mãos, me dizia “chileno”
com uma voz manchada pela esperança.
Então
a tua voz tinha o eco de um hino, eram pequenas
as tuas mãos arenosas, pátria, mas cobriram
mais de uma ferida, resgataram
mais de uma primavera desolada.

Levas guardada toda essa esperança,
reprimida em tua paz, sob a terra,
vasta semente para todo homem,
ressurreição segura da estrela.




VIII
As vozes do Chile

Antes a voz do Chile foi metálica
voz da liberdade, de vento e prata,
antes ressoou nas alturas
do planeta recém-cicatrizado,
de nossa América agredida
por matagais e centauros.

Até à neve intacta subiu, no desvelo,
subiu o teu coro de folhas honoráveis,
o canto de águas livres de teus rios,
a majestade azul de teu decoro.

Era Isidoro Errázuriz vertendo
sua combatente estrela cristalina,
sobre cidades obscuras e amarradas,
era Bilbao com sua cara
de pequeno planeta tumultuoso,
foi Vicuña Mackenna transportando
sua inumerável e germinal folhagem
prenhe de indícios e sementes
por outras cidades em que a janela
foi fechada á luz.
Eles entraram
e acenderam a lâmpada na noite,
e no amargo do dia de outras cidades
foram a luz mais alta da neve.




IX
Os mentirosos

Hoje se chamam Gajardo, Manuel Trucco,
Hernán Santa Cruz, Enrique Berstein,
Germán Vergara, os que - pagamento adiantado -
dizem falar, ó Pátria, em teu sagrado
nome e pretendem defender-te afundando
a tua herança de leão na imundície.

Anões amassados como pílulas
na botica do traidor, ratazanas
do pressuposto, mínimos
mentirosos, esporeadores
de nossa força, pobres
mercenários de mãos estendidas
e línguas de coelhos caluniadores.

Não são minha pátria, eu o declaro
a quem me queira ouvir por estas terras,
não são o homem grande do salitre,
não são o sal do povo transparente,
não são as lentas mãos que constroem
o monumento da agricultura,
não são, não existem, mentem e arrazoam
para continuar, sem existir, cobrando.




X
Serão nomeados

Enquanto escrevo minha mão esquerda me reprova.

Me diz: por que os nomeias, que são, que valem?
Por que não os deixaste em seu anônimo lodo
de inverno, nesse lodo em que urinam os cavalos?
E minha mão direita lhe responde: “Nasci
para bater nas portas, para brandir os golpes,
para acender as últimas retiradas sombras
nas quais se alimenta a aranha venenosa”.

Serão nomeados.
Não me entregaste, pátria,
o doce privilégio de nomear-te
apenas em teus alhelies e tua espuma,
não me deste palavras, pátria, para chamar-te
apenas com nomes de ouro, de pólen, de fragrância,
para esparzir semeando as gotas de orvalho
que caem de tua negra cabeleira imperiosa:
me deste com o leite e a carne as sílabas
que nomearão também os pálidos vermes
que viajam no teu ventre,
os que acossam o teu sangue, saqueando-te a vida.




XI
Os vermes do bosque

Algo do bosque antigo caiu, foi a tormenta
talvez, purificando crescimentos e camadas,
e nos troncos caídos fermentaram os fungos,
as lesmas cruzaram seus fios nauseabundos,
e a madeira morta que caiu das alturas
encheu-se de buracos e de larvas espantosas.

Assim está o teu costado, pátria, a desditada
governação de insetos que povoam tuas feridas,
os grossos traficantes que mastigam arame,
os que desde palácio negociam com o ouro,
os vermes que juntam micros e pescarias,
os que te roem algo cobertos pelo manto
do traidor que dança sua zamba excitada,
o jornalista que encarcera seus companheiros,
o sujo delator que faz governo,
o pedante que se apodera duma revista pedante
com o ouro roubado dos yaganes,
o almirante tonto como um tomate, o gringo
que cospe a seus vassalos uma bolsa com dólares



XII
Pátria, querem te repartir

“Chamavam-no de chileno”, dizem de mim estas larvas.

Querem tirar-me a pátria sob os pés, desejam
corrar-te para eles como um baralho sujo
e repartir-te entre eles como uma carne gordurosa.

Não os amo.
Crêem eles que já te têm morta,
esquartejada, e na orgia de seus desígnios sujos
te gastam como donos.
Não os amo.
A mim deixa-me
amar-te em terra e povo, deixa-me perseguir
o meu sonho em tuas fronteiras marinhas e nevadas,
deixa-me recolher todo o perfume amargo
teu que numa taça levo pelos caminhos,
mas não posso estar com eles, não me peças
quando sacudires os ombros e tombem no chão
com suas germinações de animais apodrecidos,
não me peças que acredite que sejam teus filhos.
É outra
a madeira sagrada de meu povo.


Amanhã
serás na estreitem da tua embarcação cingida,
entre as duas marés de oceano e de neve,
a mais amada, o pão, a terra, o filho.

De dia o nobre rito do tempo libertado,
de noite a entidade estrelada do céu.




XIII
Recebem ordens contra o Chile

Mas atrás de todos eles há que buscar, há algo
atrás dos traidores e dos ratos que roem,
há um império que põe a mesa,
que serve a comida e as balas.

Querem fazer de ti o que logram na Grécia.

Os señoritos gregos no banquete, c balas
ao povo nas montanhas: há que extirpar o vôo
da nova Vitória de Samotrácia, há que enforcar,
matar, perder, mergulhar o punhal assassino
empunhado em Nova York, há que romper com fogo
o orgulho do homem que assomava
por todas as partes como se nascesse
da terra regada pelo sangue.

Há que armar Chianga e o ínfimo Videla,
há que dar-lhes dinheiro para cárceres, asas
para que bombardeiem compatriotas, há que dar-lhes
um pão velho, alguns dólares, fazem eles o resto,
eles mentem, corrompem, dançam sobre os mortos
e suas esposas reluzem os visões mais caros.

Não importa a agonia do povo, deste martírio
necessitam os amos donos do cobre: há fatos:
os generais deixam o exército e servem
de assistentes no staff de Chuquicamata,
e no salitre o general “chileno”
ordena com sua espada quanto devem pedir
como aumento de salário os filhos do pampa.

Assim ordenam de cima, da bolsa com dólares,
assim recebe a ordem o anão traidor,
assim os generais se fazem de polícias,
assim apodrece o tronco da árvore da pátria.




XIV
Recordo o mar

Chileno, tens ido ao mar neste tempo?
Vai em meu nome, molha tuas mãos e levanta-as
e eu de outras terras adorarei essas gotas
que caem da água infinita em teu rosto.

Eu conheço, vivi toda a minha costa,
o grosso mar do norte, dos páramos, até
o peso tempestuoso da espuma nas ilhas.

Recordo o mar, as costas gretadas e férreas
de Coquimbo, as águas altaneiras de Tralca,
as solitárias ondas do sul, que me criaram.

Recordo em Puerto Montt e nas ilhas, à noite,
ao voltar pela praia, a embarcação que espera,
e nossos pés deixavam em suas marcas o fogo,
as chamas misteriosas de um deus fosforescente.


Cada pisada era um regueiro de fósforo.

Íamos escrevendo com estrelas a terra.

E no mar resvalando a barca sacudia
uma ramagem de fogo marinho, de vaga-lumes,
uma onda inumerável de olhos que despertavam
uma vez c tornavam a dormir em seu abismo.




XV
Não há perdão

Eu quero terra, fogo, pão, açúcar, farinha,
mar, livros, pátria para todos, por isso
ando errante: os juízes do traidor me perseguem
e seus turiferários tratam, como os micos
amestrados, de encharcar minha lembrança.

Fui eu com ele, com esse que preside, à boca
da mina, ao deserto da aurora esquecida,
eu fui com ele e disse a meus pobres irmãos:
“Não guardareis os fios da roupa esfarrapada,
não tereis este dia sem pão, sereis tratados
como se fôsseis filhos da pátria”.
“Agora
vamos repartir a beleza, e os olhos
das mulheres não chorarão por seus filhos.

E quando em vez de amor repartido, na noite
à fome e ao martírio lançaram a esse mesmo,
a esse que o escutou, a esse que sua força
e sua ternura de árvore poderosa entregara,
então eu não estive com o pequeno sátrapa,
mas com aquele homem sem nome, com meu povo.

Eu quem a minha pátria para os meus, quero
a luz igual sobre a cabeleira
de minha pátria acesa,
quero o amor do dia e do arado,
quero apagar a linha que com ódio
fazem para apartar o pão do povo,
e ao que desviou a linha da pátria
até entregá-la como carcereiro,
atada, aos que pagam para feri-la,
eu não vou cantá-lo nem calá-lo,
vou deixar seu número e seu nome
cravado na parede da desonra.




XVI
Tu lutarás

Este ano-novo, compatriota, é teu.

Nasceu mais de ti do que do tempo, escolhe
o melhor de tua vida e o entrega ao combate.

Este ano que caiu como morto em seu túmulo
não pode repousar com amor e com medo.

Este ano morto é ano de dores que acusam.

E quando suas raízes amargas, na hora
da festa, à noite, se desprenderem e caírem
e subir outro cristal ignorado até o vazio
de um ano que a tua vida encherá pouco a pouco,
dá-lhe a dignidade que requer a minha pátria,
a tua, esta estreiteza de vulcões e vinhos.

Eu não sou cidadão de meu país: me escrevem
que o clown indecoroso que governa apagou
com outros milhares de nomes o meu
das listas que eram as leis da República.

Meu nome está apagado para que eu não exista,
para que o torvo abutre da masmorra vote
e votem os bestiais encarregados que dão
pancadas e o tormento nos porões
do governo, para que votem bem garantidos
os mordomos, caporais, sócios
do negociante que entregou a Pátria.

Eu estou errante, vivo a angústia de estar longe
do preso e da flor, do homem e da terra,
porém tu lutarás para apagar a mancha
de esterco sobre o mapa, tu lutarás sem dúvida
para que a vergonha deste tempo termine
e se abram as prisões do povo e se levantem
as asas da vitória traída.




XVII
Feliz ano-novo para minha pátria em trevas

Feliz ano este ano, para ti, para todos
os homens, e as terras, Araucania amada.

Entre ti e minha existência há esta noite nova
que nos separa, e bosques e rios e caminhos.

Porém até a ti, pequena pátria minha,
como um cavalo escuro meu coração galopa:
entro por seus desertos de pura geografia,
passo pelos vales verdes onde a uva acumula
seus verdes álcoois, o mar de seus cachos.

Entro em tuas aldeias de jardim fechado,
brancas como camélias, no acre
odor de tuas adegas, e penetro
como um madeiro a água dos rios que tremem
trepidando e cantando com lábios transbordados.


Recordo, nos caminhos, talvez neste tempo,
ou melhor no outono, sobre as casas deixam
as espigas douradas do milho secando,
e quantas vezes fui como um menino extasiado
a ver o ouro nos retos dos pobres.


Te abraço, devo agora
retornar a meu lugar escondido.
Te abraço
sem conhecer-te: dize-me quem és, reconheces
a minha voz no coro do que está nascendo?
Entre todas as coisas que te rodeiam, ouves
minha voz, não sentes como te cerca meu acento
emanado como água natural da terra?

Sou eu que abraço toda a superfície doce,
a cintura florida de minha pátria e te chamo
para que falemos quando se apague a alegria
e entregar-te esta hora como uma flor fechada.

Feliz ano-novo para minha pátria em trevas.

Vamos juntos, está o mundo coroado de trigo,
o alto céu corre deslizando e rompendo
suas altas pedras puras contra a noite: apenas
se encheu a nova taça com um minuto
que há de juntar-se ao rio do tempo que nos leva.

Este tempo, esta taça, esta terra são teus:
conquista-os e escuta como nasce a aurora.

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Canto XIV - O Grande Oceano

I
O grande oceano

Se de teus dons e de tuas destruições, oceano, a minhas mãos
pudesses destinar uma medida, uma fruta, um fermento,
escolheria teu repouso distante, as linhas de teu aço,
a tua extensão vigiada pelos ares e pela noite,
e a energia de teu idioma branco
que destroça e derruba as suas colunas
na sua própria pureza demolida.


Não é a última onda com o seu salgado peso
a que tritura costas e produz
a paz de areia que rodeia o mundo:
é o central volume da força,
a potência estendida das águas,
a imóvel solidão cheia de vidas.

Tempo, talvez, ou taça acumulada
de todo movimento, unidade pura
que não selou a morte, verde víscera
da totalidade abrasadora.


Do braço submerso que levanta uma gota
fica apenas um beijo de sal.
Dos corpos
do homem em tuas praias uma úmida fragrância
de flor molhada permanece.
Tua energia
parece resvalar sem ser gasta,
parece regressar a seu repouso.


A onda que desprendes,
arco de identidade, pluma estrelada,
quando se despenhou foi só espuma,
e regressou para nascer sem consumir-se.


Toda a tua força volta a ser origem.

Só entregas despojos triturados,
cascas que apartou o teu carregamento,
o que expulsou a ação de tua abundância,
tudo o que deixou de ser um cacho.


Tua estátua está estendida além das ondas.


Vivente e ordenada como o peito e o manto
de um só ser e suas respirações,
na matéria da luz irisadas,
planícies levantadas pelas ondas,
formam a pele nua do planeta.

Enches o teu próprio ser com a tua substância.


Cumulas a curvatura do silêncio.


Com o teu sal e o teu mel treme a taça,
a cavidade universal da água,
e nada falta em ti como na cratera
destampada, no corpo rude:
cumes vazios, cicatrizes, sinais
que vigiam os ares mutilados.


Tuas pétalas palpitam contra o mundo,
tremem os teus cereais submarinos,
as suaves algas penduram a sua ameaça,
navegam e pululam as escolas,
e só sobe ao fio das redes
o relâmpago morto da escama,
um milímetro ferido na distância
de tuas totalidades cristalinas.




II
Os nascimentos

Quando se transmutaram as estrelas
em terra e em metal, quando apagaram
a energia e entornada foi a taça
de auroras c carvões, submersa
a fogueira em suas moradas,
o mar caiu como uma gota ardendo
de distância em distância, de hora em hora:
seu fogo azul converteu-se em esfera,
o ar de suas rodas foi sino,
seu interior essencial tremeu na espuma,
e na luz do sal foi levantada
a flor de sua espaçosa autonomia.


Enquanto como lâmpadas letárgicas
dormiam as estrelas segregadas
adelgaçando a sua pureza imóvel,
o mar encheu de sal e mordeduras
a sua magnitude, povoou de labaredas
e movimentos a extensão do dia,
criou a terra e desatou a espuma,
deixou rastros de goma em suas ausências,
invadiu com estátuas o abismo,
e em suas praias se fundou o sangue.


Estrela de marulhadas, água manancial,
mãe matéria, medula invencível,
trêmula igreja levantada em lodo:
a vida em ti apalpou pedras noturnas,
retrocedeu quando chegou à ferida,
avançou com escudos e diademas,
estendeu dentaduras transparentes,
acumulou a guerra em sua barriga.

O que formou a escuridão quebrada
pela substância fria do relâmpago,
oceano, em tua vida está vivendo.


A terra fez do homem o seu castigo.


Demitiu bestas, aboliu montanhas,
esquadrinhou os ovos da morte.


Enquanto isso em tua idade sobreviveram
as etapas do transcurso submerso,
e a criada magnitude mantém
as mesmas esmeraldas escamosas,
os abetos famintos que devoram
com bocas azuladas de anel,
o cabelo que absorve olhos afogados,
a madrépora de astros combatentes,
e na força azeitada do cetáceo
desliza-se a sombra triturando.


Sem mãos se construiu a catedral
com golpes de maré inumerável,
o sal adelgaçou-se como uma agulha,
se fez lâmina de água incubadora,
e seres puros, recém-estendidos,
pulularam tecendo as paredes
até que como ninhos agrupados
com o cinzento atavio da esponja,
deslizou-se a túnica escarlate,
viveu a apoteose amarela,
cresceu a flor calcária de amaranto.


Tudo era ser, substância tremulante,
pétalas carniceiras que mordiam,
acumulada quantidade nua,
palpitação de plantas seminais,
sangria das úmidas esferas,
perpétuo vento azul que derrubava
os limites abruptos dos seres.

E assim a luz imóvel foi uma boca
e mordeu sua pedraria roxa.


Foi, oceano, a forma menos dura,
a translúcida gruta da vida,
a massa existencial, deslizadora
de cachos, as teias do ovário,
os germinais dentes derramados,
as espadas do soro matutino,
os órgãos acerbos do enlace:
tudo em ti palpitou enchendo a água
de cavidades e estremecimentos.

Assim a taça das vidas teve
seu turbulento aroma, suas raízes
e estrelada invasão foram as ondas:
cintura e plenitude sobreviveram,
penacho c latitude arvoraram
os hóspedes dourados da espuma.

E tremeu para sempre nas praias
a voz do mar, os tálamos da água,
a pele de furacão demolidora,
o leite enfurecido da estrela.




III
Os peixes c o afogado

De repente vi povoadas regiões
de intensidade, de formas aceradas,
bocas como uma linha que cortava,
relâmpagos de prata submersa,
peixes de luto, peixes ogivais,
peixes de firmamento tachonado.

peixes cujas pintas resplandecem,
peixes que cruzam como calafrios,
branca velocidade, ciências delgadas
da circulação, bocas ovais
da carniçaria e do aumento.


Formosa foi a mão ou a cintura
que rodeada de lua fugitiva
viu trepidar a povoação pescadora,
úmido rio elástico de vidas,
crescimento de estrelas nas escamas,
opala seminal disseminada
no lençol escuro do oceano.


Viu arder as pedras de prata que mordiam,
estandartes de trêmulo tesouro,
e submeteu seu sangue descendo
à profundidade devoradora,
suspenso por bocas que percorrem
seu torso com anéis sanguinários
até que desgrenhado e dividido
coma espiga sangrenta, é um escudo
da maré, um traje que trituram
as ametistas, uma herança ferida
sob o mar, na árvore numerosa.




IV
Os homens e as ilhas

Os homens oceânicos despertaram, cantavam
as águas nas ilhas, de pedra em pedra verde:
as donzelas têxteis cruzavam o recinto
em que o fogo e a chuva entrelaçados
procriavam diademas e tambores.

A lua melanésica
foi uma dura madrépora, as flores enxofradas
vinham do oceano, as filhas
da terra tremiam como ondas
no vento nupcial das palmeiras,
e entraram na carne os arpões
perseguindo as vidas da espuma.


Canoas balançadas no dia deserto,
das ilhas como ponto de pólen na direção
da metálica massa da América noturna:
diminutas estrelas sem nome, perfumadas
como mananciais secretos, transbordantes
de plumas e corais, quando
os olhos oceânicos descobriram a altura
sombria da costa do cobre, a escarpada
torre de neve, e os homens de argila
viram bailar os estandartes úmidos
e os ágeis filhos atmosféricos
da remota solidão marinha,
chegou o ramo
de flores de laranjeira perdido, veio o vento
da magnólia oceânica, a doçura
do acicate azul nos quadris,
o beijo das ilhas sem metais,
puras como o mel desordenado,
sonoras como lençóis do céu.




V
Rapa-Nui

Tepito-Te-Henúa, umbigo do mar grande,
oficina do mar, extinto diadema.

De tua lava escorial subiu o rosto
do homem mais acima do oceano,
os olhos gretados da pedra
mediram o ciclônico universo,
e foi central a mão que elevava
a pura magnitude de tuas estátuas.


Tua rocha religiosa foi cortada
em todas as linhas do oceano
e os rostos do homem apareceram
surgindo da entranha das ilhas,
nascendo das crateras vazias
com os pés enredados no silêncio.


Foram as sentinelas e fecharam
o ciclo das águas que chegavam
de todos os úmidos domínios,
e o mar distante das máscaras deteve
suas tempestuosas árvores azuis.

Ninguém mas só os rostos habitaram
o círculo do reino.
Era calado
como a entrada de um planeta, o fio
que envolvia a boca da ilha.


Assim, na luz da abside marinha
a fábula da pedra condecora
a imensidade com suas medalhas mortas,
e os pequenos reis que levantam
toda esta solitária monarquia
para a eternidade das espumas,
voltam ao mar na noite invisível,
voltam a seus sarcófagos de sal.


Só o peixe-lua que morreu na areia.


Só o tempo que morde os moais.


Só a eternidade nas areias
conhecem as palavras:
a luz selada, o labirinto morto,
as chaves da taça submersa.




VI
Os construtores de estátuas (Rapa-Nui)

Eu sou o construtor das estátuas.
Não tenho nome.

Não tenho rosto.
O meu se desviou até correr
sobre a sarça e subir impregnando as pedras.

Elas têm o meu rosto petrificado, a grave
solidão de minha pátria, a pele da Oceania.


Nada querem dizer, nada quiseram
senão nascer com todo o seu volume de areia,
subsistir destinadas ao tempo silencioso.


Tu me perguntarás se a estátua em que tantas
unhas e mãos, braços escuros fui gastando,
te reserva uma sílaba da cratera, um aroma
antigo, preservado por um signo de lava?

Não é assim, as estátuas são o que fomos, somos
nós, nosso rosto que olhava as ondas,
nossa matéria às vezes interrompida, às vezes
continuada na pedra semelhante a nós.


Outros foram os deuses pequenos e malignos,
peixes, pássaros que entretiveram a manhã,
escondendo as machadinhas, rompendo a estátua
dos mais altos rostos que concebeu a pedra.


Guardem os deuses o conflito, se o quiserem,
da colheita postergada, e alimentem
o açúcar azul da flor no baile.


Subam eles e desçam a chave da farinha:
empapem todos os lençóis nupciais
com o pólen molhado que imperceptível dança
dentro da rubra primavera do homem,
mas até estas paredes, a esta cratera, só venhas
tu, pequenino mortal, canteiro.


Vão ser consumidas esta carne e a outra,
a flor perecerá talvez, sem armadura,
quando estéril aurora, pó ressequido, um dia
venha a morte à cintura da ilha orgulhosa,
e tu, estátua, filha do homem, ficarás
olhando com os olhos vazios que subiram
de uma e outra mão de imortais ausentes.


Arranharás a terra até que nasça
a firmeza, até que caia a sombra na estrutura
como sobre uma abelha colossal que devora
o seu próprio mel perdido no tempo infinito.


Tuas mãos tocarão a pedra até lavrá-la
dando-lhe a energia solitária que possa
subsistir, sem se gastarem os nomes que não existem,
e assim de uma vida a uma morte, amarrados
no tempo como uma única mão que ondula,
elevamos a torre calcinada que dorme.


A estátua cresceu sobre a nossa estatura.


Olhai-as hoje, tocai esta matéria, estes lábios
têm o mesmo idioma silencioso que dorme
em nossa morte, e esta cicatriz arenosa,
que o mar e o tempo como lobos lamberam,
eram parte de um rosto que não foi derrubado,
ponto de um ser, cacho que derrotou cinzas.


Assim nasceram, foram vidas que lavraram
sua própria cela dura, seu panal na pedra.

E este olhar tem mais areia que o tempo.

Mais silêncio que toda a morte em sua colmeia.


Foram o mel de um grave desígnio que habitava
a luz deslumbrante que hoje resvala na pedra.




VII
A chuva (Rapa-Nui)

Não, que a rainha não reconheça
o teu rosto, é mais doce
assim, amor meu, longe das efígies, o peso
de tua cabeleira em minhas mãos, recordas
a árvore de Mangareva cujas flores caíam
sobre teu cabelo? Estes dedos não se parecem
com pétalas brancas: olha-os, são como raízes,
são como talos de pedra sobre os quais desliza
o lagarto.
Não temas, esperemos que caia a chuva, nus,
a chuva, a mesma que cai sobre Manu Tara.


Mas assim como a água endurece seus rasgos na pedra,
sobre nós cais levando-nos suavemente
para a escuridão, mais abaixo do buraco
de Ranu Raraku.
Por isso
não te divise o pescador nem o cântaro.
Sepulta
os teus peitos de queimadura gêmea em minha boca,
e que a tua cabeleira seja uma pequena noite minha,
uma escuridão cujo perfume molhado me cobre.

À noite sonho que tu e eu somos duas plantas
que se ergueram juntas, com raízes enredadas,
e que conheces a terra e a chuva como minha boca,
porque de terra e de chuva estamos feitos.
Às vezes
penso que com a morte dormiremos abaixo,
na profundidade dos pés da efígie, olhando
o oceano que nos trouxe para construir e amar.


Minhas mãos não eram férreas quando te conheceram, as águas
de outro mar as passavam como por uma rede; agora
água e pedras sustêm sementes e segredos.


Ama-me adormecida e nua, que na praia
és como a ilha: teu amor confuso, teu amor
assombrado, escondido na cavidade dos sonhos,
é como o movimento do mar que nos rodeia.


E quando também eu vá me adormecendo
em teu amor, nu,
deixa a minha mão entre os teus peitos para que palpite
ao mesmo tempo que os teus mamilos molhados na chuva.




VIII
os oceânicos

Sem outros deuses que o couro das focas apodrecidas,
honor do mar, yámanas açoitados
pelo látego antártico, alacalufes
untados com azeites e detritos:
entre os muros de cristal e abismo
a pequena canoa, na eriçada
inimizade de timbales e chuvas,
levou o amor errante dos lobos
e as brasas do fogo sustentadas
sobre as últimas águas mortais.


Homem, se o extermínio
não desceu dos rios da neve
nem da lua endurecida
sobre o vapor glacial das geleiras,
mas do homem que até na substância
da neve perdida e das águas
finais do oceano,
especulou com ossos desterrados
até empurrar-te para além de tudo,
hoje mais para além de tudo e da neve
e da tempestade desatada do gelo
vai tua piroga pelo sal selvagem
e pela furiosa solidão buscando
a guarida do pão, és oceano,
gota do mar e de seu azul furioso,
e teu gasto coração me chama
como incrível fogo que não morre.


Amo a gelada planta combatida
pelo uivo do vento espumoso,
e ao pé das gargantas,
o diminuto povo lucernário
que arde sobre as lâmpadas crustáceas
da água removida pelo frio,
e antártica aurora em seu castelo
de pálido esplendor imaginário.

Amo até as raízes turbulentas
das plantas queimadas pela aurora
de mãos transparentes,
porém a ti, sobra do mar, filho
das plumas glaciais, esfarrapada
oceânica, vai esta onda
nascida nas rupturas, dirigida
com o amor ferido sob o vento.




IX
Antártica

Antártica, coroa austral, cacho
de lâmpadas geladas, cinerária
de gelo desprendida
da pele terrenal, igreja quebrada
pela pureza, nave desbocada
sobre a catedral da brancura,
imoladora de quebradas vidraças,
furacão estilhaçado nas paredes
da neve noturna,
dá-me o teu nobre peito removido
pela invasora solidão, o leito
do vento aterrador mascarado
por todas as corolas do arminho,
com todas as buzinas do naufrágio
e o afundamento branco dos mundos,
ou o teu peito de paz que limpa o frio
como um puro retângulo de quartzo,
e o não respirado, o infinito
material transparente, o ar aberto,
a solidão sem terra e sem pobreza.

Reino do meio-dia mais severo,
harpa de gelo sussurrada, imóvel,
perto das estrelas inimigas.


Todos os mares são o teu mar redondo.

Todas as resistências do oceano
concentraram em ti sua transparência,
e o sal te povoou com seus castelos,
o gelo fez cidades elevadas
sobre uma agulha de cristal, o vento
percorreu teu salgado paroxismo
como um tigre queimado pela neve.


Tuas cúpulas pariram o perigo
da nave das nevadas,
e em teu dorsal deserto está a vida
como uma vinha sob o mar, ardendo
sem consumir-se, reservando o fogo
para a primavera da neve.




X
Os filhos da costa

Párias do mar, antárticos
cães chicoteados,
yaganes mortos sobre cujos ossos
dançam os proprietários que pagaram
por tarifa os pescoços altaneiros
cerceados a golpes de navalha.


Carregadores de Antofagasta e da costa seca,
párias, piolhos gelados do oceano,
netos de Rapa, pobres de Anga-Roa,
lêmures rotos, leprosos de Hotu-Iti,
servos das Galápagos, cobiçados
esfarrapados dos arquipélagos,
roupas desfiadas que através
do emplastro sujo mostram
a contextura do combate,
a pele salgada pela brisa, o valente
troço de ser humano e ambarino:
à pátria do mar veio o embarque,
veio a corda, o selo, o fundamento,
o bilhete com um perfil borrado,
detritos de garrafa na praia,
veio o governador, o deputado,
e o coração do mar se fez costura,
se fez bolso, iodo e agonia.


Quando chegaram a vender foi doce
o amanhecer, as camisas
eram como a neve no navio,
e os filhos celestes se acenderam,
flor e fogacho, lua e movimento.


Piolhos do mar, comei agora esterco,
espreitai os despojos, os sapatos
rotos do navegante, do gerente,
cheirai a dejeções e a pescado.

Já entrastes no círculo
do qual só saireis para morrer.

Não na morte do mar, com água e lua,
mas a dos desengonçados buracos
da necrologia, porque agora
se quereis esquecer, estais perdidos.

Antes a morte teve territórios,
transmigração, etapas, estações,
e pudestes subir dançando, envoltos
no orvalho diurno da rosa
ou na navegação do peixe de prata:
hoje estais mortos para sempre: afundados
no decreto tétrico do frade,
e sois apenas vermes da terra
que no máximo revolverão a cauda
sob os cartórios do inferno.


Vinde e pululai pelas praias
do mar: ainda vos
aceitamos, podeis sair para pescar sempre
que nossa Sociedad Pesquera Inc.

seja garantida: podeis ir
arranhando as costelas nos cais,
carregando sacos de grão-de-bico,
dormindo nas escórias litorâneas.

Sois na verdade uma ameaça, mofosos
deserdados da espuma; é muito
melhor, se o sacerdote vos permitir,
que entreis no navio que vos espera,
e que, com tudo e piolhos, ao nada
vos levará, sem ataúde, mordidos
pelas últimas ondas e desgraças,
desde que não se paguem, à morte.




XI
A morte

Esqualos parecidos com as algas,
com o naval veludo do abismo,
e que de repente como estreitas luas
apareceis com o fio empurpurado:
barbatanas azeitadas em treva,
luto e velocidade, naves do medo
às quais ascende como uma corola
o crime com a sua luz vertiginosa,
sem uma voz, numa fogueira verde,
na cutelaria de um relâmpago.


Puras formas sombrias que resvalam
sob a pele do mar, como o amor,
como o amor que invade a garganta,
como a noite que brilha nas uvas,
como o fulgor do vinho nos punhais:
vastas sombras de couro desmedido
como estandartes de ameaça: ramos
de braços, bocas, línguas que rodeiam
com ondulante flor o que devoram.


Na mínima gota da vida
aguarda uma indecisa primavera
que fechará com seu sistema imóvel
o que tremeu ao cair no vazio:
a fita ultravioleta que desliza
um cinturão de fósforo perverso
na agonia negra do perdido,
e o tapete do afogado recoberto
por um bosque de lanças e moréias
trementes e ativas como o tear que tece
na profundidade devoradora.




XII
A onda

A onda vem do fundo, com raízes
filhas do firmamento submerso.

Sua elástica invasão foi levantada
pela potência pura do oceano:
sua eternidade apareceu inundando
os pavilhões do poder profundo
e cada ser lhe deu sua resistência,
debulhou fogo frio em sua cintura
até que dos ramos da força
despegou o seu nevado poderio.


Vem como uma flor da terra
quando avançou com decidido aroma
até a magnitude da magnólia,
mas esta flor do fundo que rebentou
traz toda a luz que foi abolida,
traz todos os ramos que não arderam
e todo o manancial da brancura.


E assim quando suas pálpebras redondas,
seu volume, suas taças, seus corais
incham a pele do mar aparecendo
todo este ser de seres submarinos:
é a unidade do mar que se constrói:
a coluna do mar que se levanta:
todos os seus nascimentos e derrotas.


A escola do sal abriu as portas,
voou toda a luz golpeando o céu,
cresceu da noite até a aurora
a levedura do metal molhado,
toda a claridade se fez corola,
cresceu a flor até gastar a pedra;
subiu à morte o rio da espuma,
atacaram as plantas procelárias,
transbordou-se a rosa no aço:
os baluartes da água se dobraram
e o mar se desmoronou sem derramar-se
a sua torre de cristal e calafrio.




XIII
Os portos

Acapulco, cortado como uma pedra azul,
quando desperta, o mar amanhece em tua porta
irisado e bordado como um caracol,
e entre as tuas pedras passam peixes como
[relâmpagos
que palpitam carregados pelo fulgor marinho.


És a luz completa, sem pálpebras, o dia
despido, balançando como uma flor de areia,
entre a infinitude estendida da água
e a altura acesa com lâmpadas de argila.


Junto a ti as lagunas me deram o amor
da tarde cálida com bestas e mangais,
os ninhos como nós nos ramos de onde
o vôo das garças levantava a espuma,
e na água escarlate como um crime fervia
um povo encarcerado de bocas e raízes.

Topolobampo, apenas traçado à beira
da doce e nua Califórnia marinha,
Mazatlán estrelado, porto de noite,
escuto as ondas que golpeiam a tua pobreza
e as tuas constelações, o pulsar
de teus apaixonados orfeões,
o teu coração sonâmbulo que canta
sob as redes vermelhas da lua.


Guayaquil, sílaba de lança, fio
de estrela equatorial, ferrolho aberto
das trevas úmidas que ondulam
como uma trança de mulher molhada:
porta de ferro maltratada
pelo suor amargo
que molha os cachos,
que goteja o marfim nas ramagens
e desliza à boca dos homens
mordendo como um ácido marinho.


Subi às rochas de Mollendo, brancas,
árido resplendor e cicatrizes,
cratera cujo gretado continente
subjuga entre as pedras seu tesouro,
a angústia do homem acurralado
nas calvícies do despenhadeiro,
sombra das metálicas gargantas,
promontório amarelo da morte.


Pisagua, letra da dor, manchada
pelo tormento, em tuas ruínas vazias,
em teus alcantilados pavorosos,
em teu cárcere de pedra e soledades
se pretendeu esmagar a planta humana,
se quis fazer de corações mortos
um tapete, rebaixar a desventura
como marca raivosa até romper
a dignidade: ali pelas salobras
ruelas vazias, os fantasmas
da desolação movem seus mantos,
e nas desnudas gretas ofendidas
está a história como um monumento
golpeado pela espuma solitária.

Pisagua, no vazio de teus cumes,
na furiosa solidão, a força
da verdade do homem se levanta
como um despido e nobre monumento.


Não é só um homem, não é só um sangue
o que manchou a vida em tuas encostas,
são todos os verdugos amarrados
ao lamaçal ferido, aos suplícios,
ao matagal da América enlutada,
e quando se povoaram com prisões
tuas desérticas pedras escarpadas
não foi só mordida uma bandeira,
não foi só um bandido venenoso,
mas a fauna das águas vis
que repete seus dentes na história,
atravessando com mortal punhal
o coração do povo desditado,
manietando a terra que os fez,
desonrando a areia da aurora.


Oh, portos arenosos, inundados
pelo salitre, pelo sal secreto
que deixa as dores na pátria
e leva o ouro ao deus desconhecido
cujas unhas rasparam a cortiça
de nossos dolorosos territórios.


Antofagasta, cuja voz remota
desemboca na luz cristalizada
e se amontoa em sacos e adegas
e se reparte na aridez matutina
na direção dos navios.

Rosa ressecada de madeira, Iquique,
entre tuas brancas balaustradas, junto
de teus muros de pinho, que a lua
do deserto e do mar impregnaram,
foi vertido o sangue de meu povo,
foi assassinada a verdade, desfeita
em sanguinária polpa a esperança:
o crime foi enterrado pela areia
e a distância sepultou os estertores.


Tocopilla, espectral, sob os montes,
debaixo da nudez cheia de agulhas
corre a neve seca do nitrato
sem extinguir a luz de seu desígnio
nem a agonia da mão escura
que sacudiu a morte nos torrões.


Desamparada costa que rechaças
a água afogada do amor humano,
escondido em tuas margens calcárias
como o metal maior da vergonha.

A teus portos desceu o homem enterrado
para ver a luz das ruas vendidas,
para desatar o coração espesso,
para esquecer arenais e desgraças.

Tu quando passas, quem és, quem desliza
por teus olhos dourados, quem acontece
nos cristais? Desces e sorris,
aprecias o silêncio nas madeiras,
tocas a lua opaca das vidraças
e nada mais: o homem está guardado
por carnívoras sombras e barrotes,
está estendido em seu hospital dormindo
sobre os arrecifes da pólvora.


Portos do sul, que desfolharam
a chuva das folhas em meu rosto;
coníferas amargas do inverno
de cujo manancial cheio de agulhas
choveu a solidão em minhas dores.

Puerto Saavedra, gelado nas ribeiras
do Imperial: as desembocaduras
areentas, o glacial lamento
das gaivotas que me pareciam
surgir como flores de laranjeira tempestuosas,
sem que ninguém arrulhasse suas folhagens,
doces desviadas para minha ternura,
despedaçadas pelo mar violento
e salpicadas nas soledades.


Mais tarde meu caminho foi a neve
e nas casas adormecidas do estreito
em Punta Arenas, em Puerto Natales,
na extensão azul do uivo,
na sibilante, na desenfreada
noite final da terra, vi as tábuas
que resistiram, acendi as lâmpadas
sob o vento feroz, meti as mãos
na nua primavera antártica
e beijei o pó frio das ultimas flores.




XIV
Os navios

Os barcos da seda sobre a luz levados,
erigidos na violeta matutina,
cruzando o sol marítimo, com rubros pavilhões
desfiados como estames andrajosos,
o odor caloroso das caixas douradas
que a canela fez ressoar como violinos,
e a cobiça fria que sussurrou nos portos
numa tempestade de mãos esfregadas,
as bem-vindas suavidades verdes
dos jades, e o pálido cereal da seda,
tudo passeou no mar como uma viagem do vento,
como um baile de anêmonas que desapareceram.


Vieram as delgadas velocidades, finas
ferramentas do mar, peixes de trapo,
dourados pelo trigo, destinados
por suas mercadorias cinzentas,
por pedras transbordantes que brilharam
como o fogo caindo entre as suas velas,
ou repletos de flores sulfurosas
recolhidas em ermos salinos.

Outros carregaram raças, dispuseram
na umidade de baixo, acorrentados,
olhos cativos que gretaram com lágrimas
a pesada madeira do navio.

Pés recém-separados do marfim, amarguras
amontoadas como frutos malferidos,
dores esfoladas como cervos: cabeças
que caíram dos diamantes do verão
na profundidade do esterco infame.


Navios cheios de trigo que tremeram
sobre as ondas como nas planícies
o vento cereal das espigas:
barcos das baleias, eriçadas
de corações duros como arpões,
lentos de caçadas, deslocando
para Valparaíso suas adegas,
velas graxentas que se sacudiram
feridas pelo gelo e pelo azeite
até encher as taças da nave
com a colheita branda ela fera.

Barcas desmanteladas que cruzaram
de tombo em tombo no furor marinho
com o homem agarrado a suas lembranças
e os andrajos derradeiros do barco,
antes que, como mãos amputadas,
os fragmentos do mar os conduzissem
às delgadas bocas que povoaram
o espumoso mar em sua agonia.

Naves dos nitratos, aguçadas
e alegres como indômitos delfins
até as sete espumas deslizadas
pelo vento em suas savanas gloriosas,
finas como os dedos e as unhas,
velozes como plumas e corcéis,
navegadoras do mar moreno
que bica os metais de minha pátria.




XV
A uma carranca de proa (elegia)

Nas areias de Magalhães te recolhemos, cansada
navegante, imóvel
sob a tempestade que tantas vezes teu peito doce e duplo
desafiou dividindo em seus mamilos.

Te levantamos outra vez sobre os mares do sul, mas agora
foste a passageira do obscuro, dos rincões, igual
no alto-mar, envolta pela noite marinha.


Hoje és minha, deusa que o albatroz gigante
roçou com a sua estatura estendida no vôo,
como um manto de música dirigida na chuva
por tuas cegas e errantes pálpebras de madeira.

Rosa do mar, abelha mais pura que os sonhos,
amendoada mulher que desde as raízes
de um carvalho povoado pelos cantos
te fizeste forma, força de folhagem com ninhos,
boca de tempestades, doçura delicada
que iria conquistando a luz com seus quadris.


Quando anjos e rainhas que nasceram contigo
se encerraram de musgo, dormiram destinados
à imobilidade com um honor de mortos,
subiste à proa delgada do navio
e anjo e rainha e onda, tremor do mundo foste.

O estremecimento dos homens subia
até a tua nobre túnica com peitos de maçã,
enquanto os teus lábios eram oh! doce! umedecidos
por outros beijos dignos de tua boca selvagem.


Sob a chuva estranha a tua cintura deixava
cair o peso puro da neve nas ondas
cortando na sombria magnitude um caminho
de fogo derrubado, de mel fosforescente.

O vento abriu em teus cacheados sua caixa tempestuosa,
o desencadeado metal de seu gemido,
e na aurora a luz te recebeu tremendo
nos portos, beijando o teu diadema molhado.


Às vezes detiveste sobre o mar o teu caminho
e o barco tremulante desceu por seu costado,
como uma gorda fruta que se desprende e cai,
um marinheiro morto que acolheram a espuma
e o movimento puro do tempo e do navio.

E somente tu entre todos os rostos esmagados
pela ameaça, mergulhados numa dor estéril,
recebeste o sal salpicado em tua máscara,
e os teus olhos guardaram as lágrimas salgadas.

Mais de uma pobre vida resvalou pelos teus braços
para a eternidade das águas mortuárias,
e o rocio que te deram os mortos e os vivos
gastou o teu coração de madeira marinha.


Hoje recolhemos da areia a tua forma.

Afinal, a meus olhos estavas destinada.

Dormes talvez, adormecida, talvez morreste, morta:
teu movimento, por fim, esqueceu o sussurro
e o esplendor errante fechou sua travessia.

Iras do mar, golpes do céu coroaram
tua altaneira cabeça com gretas e rupturas,
e teu rosto como um caracol repousa
com feridas que marcam teu rosto equilibrado.


Para mim tua beleza guarda todo o perfume,
todo o ácido errante, toda a sua noite escura.

E em teu empinado peito de lâmpada ou de deusa,
torre turgente, imóvel amor, vive a vida.

Tu navegas comigo, recolhida, até o dia
em que deixem cair o que sou na espuma.




XVI
O homem no navio

Além da linha do navio
fiada pelo sal em movimento,
entre a graxa morta que transpassa os sonhos
o tripulante dorme com nua fadiga,
alguém de guarda arrasta um cabo de metal,
soa o mundo
do barco, range o vento nas madeiras,
palpitam surdamente os ferros viscerais,
o foguista olha o seu rosto num espelho:
num pedaço partido de vidro, reconhece
dessa ossuda máscara manchada pelo fumo
uns olhos: aqueles olhos que amou Graciela
Gutiérrez, antes de morrer, sem que junto
a seu leito estes olhos que amou pudessem vê-la,
levá-la nesta última embarcação, adentro
da jornada, entre as brasas e o azeite.

Vão importa, com os beijos que se uniam
entre as viagens e aqueles presentes, agora ninguém,
ninguém na casa, O amor na noite do mar,
toca todos os leitos dos que dormem, vive
mais embaixo de navio; como uma alga
noturna que desliza seus ramos para cima.


Há outros estendidos na noite da viagem,
no vazio, sem mar sob os sonhos,
como a vida, alturas fragmentadas, pedaços
da noite, pedregulhos que separaram
a destroçada rede dos sonhos.

A terra
de noite invade o mar com suas ondas e cobre
o coração do pobre passageiro adormecido
com uma única sílaba de pó, com uma
colherada de morte que o reclama.


Toda pedra oceânica é oceano, a mínima
cintura ultravioleta da medusa, o céu
com todo o seu vazio constelado, a lua
tem mar abolido em seus espectros:
mas o homem fecha seus olhos, morde um pouco
seus passos, ameaça seu coração pequeno,
e soluça e arranha a noite com suas unhas,
procurando terra, fazendo-se verme.


É terra que as águas não cobrem e não matam.


É orgulho de argila que morrerá no cântaro,
quebrando-se, separando as gotas que cantaram,
amarrando à terra sua indecisa costura.


Não busques no mar esta morte, não esperes
território, não guardes o punhado de pó
para integrá-lo intacto e entregá-lo à terra.


Entrega-o a estes lábios infinitos que cantam,
doa-os a este coro de movimento e mundo,
destrói-te na eterna maternidade da água.




XVII
Os enigmas

Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre [as suas patas de ouro
e eu vos respondo: O mar o sabe.

Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente? Que espera?
Eu vos digo, espera como vós o tempo.

Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.


Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
[do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.

Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré austral?
E sobre a construção cristalina do pólipo tereis embaralhado, sem dúvida,
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactite que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
[que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.


Eu não sou mais que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, ,medidas
de um tímido hemisfério de laranja.


Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.




XVIII
As pedras da praia

Oceânicas não tendes a matéria
que emerge das terras vegetais
entre a primavera e as espigas.


O tacto azul do ar que navega
entre as uvas não conhece o rosto
que da solidão sai ao oceano.


O rosto das rochas destroçadas,
que não conhece abelhas, que não tem
mais que a agricultura das ondas,
o rosto das pedras que aceitaram
a desolada espuma do combate
em suas eternidades gretadas.


Ásperas naves de granito hirsuto
entregue à cólera, planetas
em cuja imóvel dimensão detêm
as bandeiras do mar seu movimento.


Tronos da intempérie dos furacões.


Torres de soledades sacudidas.


Tendes, rochas do mar, a vitoriosa
cor do tempo, o material gastado
por uma eternidade em movimento.


O fogo fez nascer estes lingotes
que o mar estremeceu com suas granadas.


Esta ruga em que o cobre e a salmoura
se uniram: este ferro alaranjado,
estas manchas de prata c de pomba,
são o muro mortal e a fronteira
da profundidade com seus cachos.


Pedras de solidão, pedras amadas
de cujas duras cavidades pende
o tumultuoso frio das algas,
e a cuja borda ornada pela lua
sobe a solidão das praias.

Dos pés perdidos na areia
que aroma se perdeu, que movimento
de corola nupcial subiu tremendo?

Plantas de areia, triângulos carnosos,
aplanadas substâncias que chegaram
a acender seu fulgor sobre as pedras,
primavera marinha, delicada
taça sobre as pedras erigida,
pequeno raio de amaranto apenas
aceso e gelado pela fúria,
dá-me a condição que desafia
as areias do páramo estrelado.


Pedras do mar, centelhas detidas
no combate da luz, sinos
dourados pelo óxido, afiadas
espadas da dor, cúpulas partidas
em cujas cicatrizes se constrói
a estátua desdentada da terra.




XIX
Molusco gongorino

Da Califórnia trouxe um múrex espinhoso,
a sílica em suas farpas, ataviada com fumo
sua eriçada postura de rosa congelada,
e seu interior rosado de paladar ardia
com uma suave sombra de corola carnosa.


Mas tive uma ciprinóide cujas manchas saíram
sobre sua capa, ornando o seu veludo puro
com círculos queimados de pólvora ou pantera,
e outra levou em seu dorso liso como uma taça
um ramo de rios tatuados na lua.


Mas a linha espiral, sustentada
apenas pelo ar, oh,
escadaria, escadaria delicada,
oh, monumento frágil da aurora
que um anel com opala amassada
enrola deslizando a sua doçura.


Tirei do mar, abrindo as areias,
a ostra eriçada de coral sangrento,
spondylus, fechando em suas metades
a luz de seu tesouro submerso,
cofre envolto em agulhas escarlates,
ou neve com espinhos agressores.


A azeitona grácil recolhi da areia,
úmida caminhante, pé de púrpura,
jóia umedecida em cuja forma
a fruta endureceu sua chamarada,
poliu o cristal sua condição marinha
e ovalou a pomba a sua nudez.


O caracol do tritão reteve
a distância na gruta do som
e na estrutura de sua cal trançada
sustém o mar com pétalas, sua cúpula.


Oh, rostellaria, flor impenetrável
como um signo erguido numa agulha,
mínima catedral, lança rosada,
espada da luz, pistilo de água.


Mas na altura da aurora assoma
o filho da luz, feito de lua,
o argonauta que um tremor dirige,
que um trêmulo contacto da espuma
amassou, navegando em uma onda
com sua nau espiral de jasmineiro.


E então escondida na maré,
boca ondulante do mar cor de amora,
seus lábios de titânica violeta,
a tridacna fechou como um castelo,
e lá a sua rosa colossal devora
as azuis estirpes que a beijam:
monastério de sal, herança imóvel
que encarcerou uma onda endurecida.


Mas devo nomear, tocando apenas,
ó Nautilus, a tua alada dinastia,
a redonda equação em que navegas
deslizando a tua nau nacarada,
a tua espiral geometria em que se fundem,
relógio do mar, o nácar e a linha,
e devo até as ilhas, no vento,
ir-me contigo, deus da estrutura.




XX
As aves maltratadas

Alto sobre Tocopilla está o pampa nitroso,
os ermos, a mancha das salinas, é o
deserto sem uma folha, sem um escaravelho,
sem uma fibra, sem uma sombra, sem tempo.


La a garuma dos mares fez os seus ninhos,
faz tempo, na areia solitária e quente,
deixou seus ovos debulhando o vôo
desde a costa, nas ondas da plumagem,
até a solidão, até o remoto
quadrado do deserto que alcatifaram
com o tesouro suave da vida.


Formoso rio desde o mar, selvagem
solidão do amor, plumas do vento
arredondadas em globos de magnólia,
vôo arterial, palpitação alada
em que todas as vidas acumulam,
num rio reunido, suas pressões:
assim o sal estéril foi povoado,
foi coroado o páramo de plumas
e o vôo se incubou nos areais.


Chegou o homem.
Talvez encheram
a sua miséria de pálido extraviado
do deserto, os ramos do arrulho
que como o mar tremia no deserto,
talvez o deslumbrou como uma estrela
a extensão crepitante de brancura,
mas chegaram outros em seus passos.


Chegaram na alva, com garrotes
e com cestos, roubaram o tesouro,
espancaram as aves, derrotaram
ninho por ninho a nau de plumas,
sopesaram os ovos e esmagaram
aqueles que tinham criatura.


Levantaram-nos à luz e os arremessaram
contra a terra do deserto, em meio
ao vôo e ao grasnido e à onda
do rancor, e as aves estenderam
toda a sua fúria no ar invadido,
e cobriram o sol com as suas bandeiras:
mas a destruição feriu os ninhos,
arvorou o garrote e arrasada
foi a cidade do mar no deserto.


Mais tarde a cidade, na salmoura
vespertina de névoas e bêbados,
ouviu passar os cestos que vendiam
ovos de ave do mar, frutos selvagens
do ermo em que nada sobrevive,
senão a soledade sem estações,
e o sal agredido e rancoroso.




XXI
Leviatã

Arca, paz iracunda, resvalada
noite bestial, antártica estrangeira,
não passarás por mim deslocando
teu timbale de sombra sem que um dia
eu entre por tuas paredes e levante
a tua armadura de inverno submarino.


Para o sul crepitou o teu fogo negro
de expulsado planeta, o território
de teu silêncio que moveu as algas
sacudindo a idade da mata.


Foi só forma, magnitude fechada
por um tremor do mundo em que desliza
a sua majestade de couro amedrontado
por sua própria potência e sua ternura.


Arca de cólera acesa
com as tochas da neve negra,
quando o teu sangue cego foi fundado
a idade do mar dormia nos jardins,
e em sua extensão a lua desfazia
a cauda de seu ímã fosforescente,
A vida crepitava
como uma fogueira azul, mãe medusa,
multiplicada tempestade de ovários,
e todo o crescimento era pureza,
palpitação de pâmpano marinho.


Assim foi a tua gigante mastreação
disposta entre as águas como a passagem
da maternidade sobre o sangue,
e teu poder foi noite imaculada
que resvalou inundando as raízes.

Extravio e terror estremeceram
a solidão, e fugiu o teu continente
para além das ilhas esperadas:
mas o terror passou sobre os globos
da lua glacial, e entrou em tua carne,
agrediu solidões que ampararam
a tua aterradora lâmpada apagada.

A noite foi contigo: te envolvia
aderindo-te um limo tempestuoso
c revolveu a tua cauda de furacão
o gelo em que dormiam as estrelas.


Oh, grande ferida, manancial quente
revolvendo seus trovões derrotados
na comarca do arpão, tingido
pelo mar do sangue, dessangrado,
doce e adormecido bicho conduzido
como um ciclone de partidos hemisférios
até as barcas negras da graxa
povoadas por rancor e pestilência.


Oh, grande estátua morta nos cristais
da luta polar, enchendo o céu
como uma nuvem de terror que chora
e cobre os oceanos de sangue.




XXII
“Phalacrocorax”

Aves estercorárias das ilhas,
multiplicada vontade do vôo,
celeste magnitude, inumerável
emigração do vento da vida,
quando os vossos cometas deslizam
areando o céu sigiloso
do calado Peru, voa o eclipse.

Oh, lento amor, selvagem primavera
que desenraíza sua taça plena
e navega a nave da espécie
com um fluvial tremor de água sagrada
deslocando o seu céu caudaloso
para as ilhas vermelhas do esterco.


Eu quero submergir-me em vossas asas,
ir para o sul dormindo, sustido
por toda a mata tremulante.

Ir no rio escuro das flechas
com uma voz perdida, dividir-me
na palpitação inseparável.

Depois, chuva do vôo, as calcárias
ilhas abrem o seu frio paraíso
de onde cai a lua da plumagem,
a tormenta enlutada das plumas.


O homem inclina então sua cabeça
ante o arrulho das aves mães,
e cava esterco com as mãos cegas
que levantam as grades uma a uma,
raspa a claridade do escremento,
acumula as fezes derramadas.

e se prosterna ao meio das ilhas
da fermentação, corno um escravo,
saudando as ácidas ribeiras
que coroam os pássaros ilustres.




XXIII
Não só o albatroz

Não da primavera, não esperadas
sois, não na sede da corola,
não no mel roxo que se entretece
fibra por fibra em cepas e cachos,
mas na tempestade, na andrajosa
cúpula torrencial do arrecife,
na greta perfurada pela aurora,
e ainda mais, sobre as lanças verdes
do desafio, na desmoronada
solidão dos páramos marinhos.


Noivas do sal, pombas procelárias,
a todo aroma impuro da terra
destes o dorso pelo mar molhado,
e na selvagem claridade mergulhastes
a geometria celestial do vôo.


Sagradas sois, não só a que andou
como gota ciclônica no ramo
do vendaval: não só a que se aninha
nas vertentes da fúria, mas
a gaivota de neve arredondada,
a forma do remeiro sobre a espuma,
o prateado fardel de platina.


Quando tombou fechado como um nó
o alcatraz, mergulhando o seu volume,
e quando navegou a profecia
nas asas extensas do albatroz,
e quando o vento do petrel voava
sobre a eternidade em movimento,
para além dos velhos cormorões,
meu coração se recolheu em sua taça
e estendeu aos mares e às plumas
a desembocadura de seu canto.


Dá-me o estanho gelado que no peito
levais às pedras tempestuosas,
dá-me a condição que se congrega
nas garras da águia marinha,
ou a estatura imóvel que resiste
a todos os crescimentos e rupturas,
o vento da flor de laranjeira desamparado
e o sabor da pátria desmedida.




XXIV
A noite marinha

Noite marinha, estátua branca e verde,
te amo, dorme comigo.
Fui por todas
as ruas calcinando-me e morrendo,
cresceu comigo a madeira, o homem
conquistou a sua cinza e se dispôs
a descansar rodeado pela terra.


Fechou a noite para que os teus olhos
não vissem o seu repouso miserável:
quis proximidade, abriu os braços
custodiado por seres e por muros,
e caiu no sonho do silêncio, baixando
à terra funeral com suas raízes.

Eu, noite oceano, a tua forma aberta,
à tua extensão que Aldebarã vigia,
à boca molhada de teu canto
cheguei com o amor que me constrói.


Te vi, noite do mar, quando nascias
golpeada pelo nácar infinito:
vi se tecerem as fibras estreladas
e a eletricidade de tua cintura
e o movimento azul dos sons
que acossam a tua doçura devorada.


Ama-me sem amor, sangrenta esposa.


Ama-me com espaço, com o rio
de tua respiração, com o aumento
de todos os teus diamantes transbordados:
ama-me sem a trégua de teu rosto,
dá-me a retidão de teu quebranto.


Formosa és, amada, noite formosa:
guardas a tempestade como uma abelha
adormecida em teus estames alarmados,
e sonho e água tremem nas taças
de teu peito acossado de vertentes.


Noturno amor, segui o que erguias,
tua eternidade, a torre tremulante
que assume as estrelas, a medida
de tua vacilação, as povoações
que levanta a espuma em teus costados:
estou acorrentado à tua garganta
e aos lábios que rompes na areia.


Quem és? Noite dos mares, dize-me
se a ma escarpada cabeleira cobre
toda a solidão, se é infinito
este espaço de sangue e de prados.

Dize quem és, cheia de navios,
cheia de luas que tritura o vento,
dona de todos os metais, rosa
da profundidade, rosa molhada
pela intempérie do amor nu.


Túnica da terra, estátua verde,
dá-me uma onda como um sino,
dá-me uma onda de flor de laranjeira furiosa,
a multidão de fogueiras, os navios
do céu capital, a água em que navego,
a multidão do fogo celeste: quero um só
minuto de extensão e mais que todos
os sonhos, tua distância:
toda a púrpura que medes, o grave
pensativo sistema constelado:
toda a tua cabeleira que visita
a escuridão, e o dia que preparas.


Quero ter a tua fronte simultânea,
abri-la em meu interior para nascer
em todas as tuas praias, ir agora
com todos os segredos respirados,
com as tuas escuras linhas resguardadas
em mim como o sangue ou as bandeiras,
levando estas secretas proporções
ao mar de cada dia, aos combates
que em cada porta - amores e ameaças -
vivem adormecidos.

Mas então
entrarei na cidade com tantos olhos
como os teus, e sustentarei a vestimenta
com que me visitaste, e que me toquem
até a água total que não se mede:
pureza e destruição contra toda a morte,
distância que não pode gastar-se, música
para os que dormem e para os que despertam.

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Canto XV - Eu Sou

I
A fronteira (1904)

O primeiro que vi foram árvores, barrancos
decorados com flores de selvagem formosura,
úmido território, bosques que se incendiavam
e o inverno detrás do mundo, transbordado.

Minha infância são sapatos molhados, troncos partidos
tombados na selva, devorados por cipós
e escaravelhos, doces dias sobre a aveia,
e a barba dourada de meu pai saindo
para a majestade da ferroviária.


Diante de minha casa a água austral cavava
fundas derrotas, lameiros de argilas enlutadas,
que no verão eram atmosfera amarela
por onde as carretas rangiam e choravam
prenhadas com nove meses de trigo.

Rápido sol do sul:

restolhos, fumaradas
em caminhos de terras escarlates, ribeiras
de rios de redonda linhagem, currais e potreiros
em que reverberava o mel do meio-dia.


O mundo poeirento entrava grau por grau
nos galpões, entre barricas e cordéis,
nas adegas carregadas com o resumo rubro
da aveleira, todas as pálpebras do bosque.


Pareceu-me ascender com o traje tórrido
do verão, com as máquinas debulhadoras,
pelas costas, na terra envernizada de boldos
erguida entre os carvalhos, indelével,
agarrando-se às rodas como carne esmagada.


Minha infância percorreu as estações: entre
os trilhos, os castelos de madeira recente,
a casa sem cidade, apenas protegida
por reses e maçãs de perfume indizível
fui eu, delgado menino cuja pálida forma
se impregnava de bosques vazios e adegas.




II
O fundeiro (1919)

Amor, talvez amor indeciso, inseguro:
só um golpe de madressilvas na boca,
só umas tranças cujo movimento subia
até minha solidão como uma fogueira negra,
e o mais: o rio noturno, os sinais
do céu, a fugaz primavera molhada,
a enlouquecida fronte solitária, o desejo
levantando as suas cruéis tulipas na noite.

Eu desfolhei as constelações, ferindo-me,
afiando os dedos no tacto das estrelas,
afiando fibra por fibra a contextura gelada
dum castelo sem portas,
ó destroçados amores
cujo jasmim detém sua transparência em vão,
ó nuvens que no dia do amor desembocam
como um soluço entre as ervas hostis,
nua solidão amarrada a uma sombra,
a uma ferida adorada, a uma lua indomável.

Nomeai-me, disse talvez aos rosais:
eles talvez, a sombra de confusa ambrosia,
cada tremor do mundo conhecia meus passos,
me esperava o rincão mais oculto, a estátua
da árvore soberana na planície:
tudo na encruzilhada chegou a meu desvario
debulhando o meu nome sobre a primavera.

E então, doce rosto, açucena queimada,
tu, a que não dormiste com o meu sonho, bravia,
medalha perseguida por uma sombra, amada
sem nome, feita de toda a estrutura do pólen,
de todo o inverno ardendo sobre estrelas impuras:
ó amor, desenredado jardim que se consome,
em ti se levantaram meus sonhos e cresceram
como um fermento de pães tenebrosos.




III
A casa

Minha casa, as paredes cuja madeira fresca,
recém-cortada, cheira ainda: destrambelhada
casa de fronteira, que rangia
a cada passo, e silvava com o vento de guerra
do tempo austral, fazendo-se elemento
de tempestade, ave desconhecida
sob cujas geladas plumas cresceu o meu canto.

Vi sombras, rostos que como plantas
em torno de minhas raízes cresceram, parentes
que cantavam toadas à sombra duma árvore
e disparavam entre os cavalos molhados,
mulheres escondidas na sombra
que deixavam as torres masculinas,
galopes que fustigavam a luz,
enrarecidas
noites de cólera, cachorros que latiam.

Meu pai com a alva escura
da terra, para que perdidos arquipélagos
em seus trens que uivavam se deslizou?
Mais tarde amei o odor do carvão no fumo,
os azeites, os eixos de precisão gelada,
e o grave trem cruzando o inverno estendido
sobre a terra, como uma lagarta orgulhosa.

De repente trepidaram as portas.

É meu pai.

Rodeiam-no os centuriões do caminho:
ferroviários envoltos em suas mantas molhadas,
o vapor e a chuva com eles revestiram
a casa, a sala de jantar se encheu de relatos
enrouquecidos, os copos se verteram,
e até mim, dos seres, como uma separada
barreira, em que viviam as dores,
chegaram as aflições, as carrancudas
cicatrizes, os homens sem dinheiro,
a garra mineral da pobreza.




IV
Companheiros de viagem (1921)

Logo cheguei à capital, vagamente impregnado
de névoa e chuva.
Que ruas eram essas?
Os trajes de 1921 pululavam
num odor atroz de gás, café e tijolos.

Entre os estudantes passei sem compreender,
reconcentrando em mim as paredes, buscando
cada tarde em minha pobre poesia os ramos,
as gotas e a lua que se haviam perdido.

Acudi ao fundo dela, submergindo
cada tarde em suas águas, agarrando impalpáveis
estímulos, gaivotas de um mar abandonado,
até fechar os olhos e naufragar no meio
de minha própria substância.

Foram trevas, foram
apenas escondidas, úmidas folhas do subsolo?
De que matéria ferida se debulhou a morte
até tocar os meus membros, conduzir meu sorriso
e cavar nas ruas um poço desgraçado?

Saí a viver: cresci e endurecido
fui pelas ruelas miseráveis,
sem compaixão, cantando nas fronteiras
do delírio.
Os muros se encheram de rostos:
olhos que não olhavam a luz, águas torcidas
que iluminavam um crime, patrimônios
de solitário orgulho, cavidades
cheias de corações arrasados.

Com eles fui: só em seu coro
a minha voz reconheceu as solidões
onde nasceu.


Comecei a ser homem
cantando entre as chamas, acolhido
por companheiros de condição noturna
que cantaram comigo nas pousadas,
e que me deram mais de uma ternura,
mais de uma primavera defendida
por suas mãos hostis,
único fogo, planta verdadeira
dos desmoronados arrabaldes.




V
A estudante (1923)

Ó tu, mais doce, mais interminável
que a doçura, carnal enamorada
entre as sombras: de outros dias
surges enchendo de pesado pólen
a tua taça, na delícia.

Da noite cheia
de ultrajes, noite como o vinho
destampado, noite de oxidada púrpura,
em ti caí como uma torre ferida,
e entre os pobres lençóis a tua estrela
palpitou contra mim queimando o céu.


Ó redes do jasmim, ó fogo físico
alimentado nesta nova sombra,
trevas que tocamos apertando
a cintura central, golpeando o tempo
com sanguinárias rajadas de espigas.


Amor sem nada mais, no vazio
duma borbulha, amor com ruas mortas,
amor, quando morreu toda a vida
e nos deixou acendendo os rincões.


Mordi mulher, me afundei desvanecendo-me
desde minha força, entesourei cachos de uva,
e saí a caminhar de beijo em beijo,
atado às carícias, amarrado
a esta gruta de fria cabeleira,
a estas pernas por lábios percorridas:
faminto entre os lábios da terra,
devorando com lábios devorados.




VI
O viajante (1927)

E saí pelos mares aos portos.


O mundo entre as gruas
e as adegas da praia sórdida
mostrou em sua greta chusmas e mendigos,
companhias de famintos espectrais
no costado dos navios.

Países
recostados, ressequidos, na areia,
trajes talares, mantos fulgurantes
saíam do deserto, armados
como escorpiões, guardando o buraco
do petróleo, na empoeirada
rede dos calcinados poderios.


Vivi na Birmânia, entre as cúpulas
do metal poderoso, e a mataria
onde o tigre queimava os seus anéis
de ouro sangrento.
De minhas janelas
em Dalhousie Street, o odor
indefinível, musgo nos pagodes,
perfumes e excrementos, pólen, pólvora,
de um mundo saturado pela umidade humana,
subiu até mim.


As ruas me chamaram
com os seus inumeráveis movimentos
de telas de açafrão e escarros vermelhos,
junto à suja marulhada do Irrawaddy, da
água cuja espessura, sangue e azeite,
vinha descarregando a sua linhagem
desde as terras altas cujos deuses
pelo menos dormiam rodeados por seu barro.




VII
Longe daqui

Índia, não amei a tua dilacerada roupa,
a tua desarmada população de farrapos.

Por anos fui com olhos que queriam
subir aos promontórios do desprezo,
entre cidades como cera verde,
entre os talismãs, os pagodes
cuja pastelaria sanguinária
espalhava terríveis aguilhões.

Vi o miserável acumulado, em cima
do outro, do sofrimento de seu irmão,
as ruas como rios de aflição,
as pequenas aldeias esmagadas
entre as grossas unhas das flores,
e fui na multidão, sentinela
do tempo, separando enegrecidas
cicatrizes, cerrames de escravos.

Entrei nos templos, estuque e pedraria
fazem os degraus, sangue e morte sujos,
e os bestiais sacerdotes, ébrios
do estupor ardente, disputando
moedas revolvidas no chão,
enquanto, ó pequeno ser humano,
os grandes ídolos de pés fosfóricos
estiravam as línguas vingativas,
ou sobre um falo de pedra escarlate
deslizavam as pedras trituradas.




VIII
As máscaras de gesso

Não amei.
.
.
Não sei se foi piedade ou vômito.

Corri pelas cidades, Saigon, Madras,
Khandy, até as enterradas, majestosas
pedras de Anuradhapura, e na rocha
do Ceilão, como baleias
as efígies de Siddhartha, fui mais longe:
no saibro de Penang, pelas ribeiras
dos rios, na selva
do silêncio puríssimo, culminado
pelo rebanho das intensas vidas,
para além de Bangkok, as vestimentas
de bailarinas com máscaras de gesso.

Golfos pestilenciais elevavam
tetos de pedraria transbordante,
em largos rios a vivenda
de milhares de pobres, apertados
nas embarcações, e outros, todos
cobriam a infinita terra,
para além dos rios amarelos,
com uma única pele de animal roto,
pele dos povos, pelanca humilhada
por uns e outros amos.

Capitães e príncipes
viviam sobre o úmido estertor
de agonizantes lâmpadas, sangrando
a vida dos pobres artesãos,
e entre as garras e chicotes, mais alto
era a concessão, o europeu,
o norte-americano do petróleo,
fortificando templos de alumínio,
arando sobre a pele desamparada,
estabelecendo novos sacrifícios de sangue.




IX
O baile (1929)

Na profundidade de Java, entre as sombras
territoriais: aqui está o palácio iluminado.

Passo entre arqueiros verdes, aderidos
aos muros, entro
na sala do trono.
Está o monarca,
apoplético porco, pavão impuro,
carregado de cordões, constelado,
entre dois de seus amos holandeses,
mercadores carrancudos que vigiam.

Que repugnante grupo de insetos, como arremessam sobre os seres, conscienciosamente,
pauladas de vileza.

As sentinelas sórdidas
das longínquas terras, e o monarca
como um saco cego, arrastando
a sua carne espessa e as suas estrelas falsas
sobre uma humilde pátria de prateiros.

Mas entraram de repente
do remoto fundo do palácio
dez bailarinas, lentas como um sonho
debaixo das águas.

Cada pé se aproximava
de costas, avançando mel noturno
como um peixe de ouro, e suas máscaras ocre
levavam sobre o cabelo de azeitada espessura
uma coroa fresca de flores de laranjeira.

Até que se colocaram
diante do sátrapa, e com elas a música, um rumor
de élitros de cristal, a dança pura
que cresceu como flor, as mãos claras
construindo uma estátua fugitiva,
a túnica batida nos calcanhares
por um golpe de onda ou de brancura,
e em cada movimento de pomba
feita em metal sagrado, o sussurrante
ar do arquipélago, aceso
como uma árvore nupcial na primavera.




X
A guerra (1930)

Espanha, envolta em sonho, despertando
como uma cabeleira com espigas,
te vi nascer, entre as brenhas
e as trevas, lavradora,
levantar-te entre os carvalhos e os montes
e percorrer o ar com as veias abertas.

Mas te vi atacada nas esquinas
pelos antigos bandoleiros.
Iam
mascarados, com as suas cruzes feitas
de víboras, com os pés metidos
no glacial pântano dos mortos.

Então vi o teu corpo desprendido
de matagais, quebrado
sobre a areia encarniçada, aberto,
sem mundo, aguilhoado na agonia.

Até hoje corre a água de tuas penhas
entre os calabouços, e susténs
a tua coroa de farpas em silêncio,
para ver quem pode mais, se tuas dores
ou os rostos que cruzam sem olhar-te.

Eu vivi com a tua aurora de fuzis,
e quero que de novo povo e pólvora
sacudam as ramagens desonradas
até que trema o sonho e se reúnam
os frutos divididos na terra.




XI
O amor

O firme amor, Espanha, me deste com teus dons.

Veio a mim a ternura que esperava
e me acompanha a que leva o beijo
mais profundo a minha boca.

Não puderam
apartá-la de mim as tempestades
nem as distâncias acrescentaram terra
ao espaço de amor que conquistamos.

Quando antes do incêndio, entre as messes
da Espanha apareceu a tua vestimenta,
eu fui dupla noção, luz duplicada,
e a amargura resvalou em teu rosto
até cair sobre pedras perdidas.

De uma grande dor, de arpões eriçados
desemboquei em tuas águas, amor meu,
como um cavalo que galopa em meio
à ira e à morte, e o recebe
de súbito uma maçã matutina,
uma cascata de tremor silvestre.

Desde então, amor, te conheceram
os páramos que fizeram a minha conduta,
o oceano escuro que me segue,
e os castanhos do outono imenso.


Quem não te viu, amorosa, doce minha,
na luta, a meu lado, como uma
aparição, com todos os sinais
da estrela? Quem, se andou
entre as multidões a procurar-me,
porque sou grão do celeiro humano,
não te encontrou, agarrada a minhas raízes,
elevada no canto de meu sangue?

Não sei, meu amor, se terei tempo e lugar para
escrever outra vez a tua sombra fina
estendida em minhas páginas, esposa:
são duros estes dias e radiantes,
e recolhemos deles a doçura
amassada com pálpebras e espinhos.

Não sei recordar quando começas:
estavas antes do amor,
vinhas
com todas as essências do destino,
e antes de ti, a solidão foi tua,
foi talvez a tua adormecida cabeleira.

Hoje, taça de meu amor, te nomeio apenas,
título de meus dias, adorada,
e no espaço ocupas como o dia
toda a luz que tem o universo.




XII
México (1940)

México, de mar a mar te vivi, transpassado
por tua férrea cor, subindo montes
sobre os quais aparecem monastérios
cheios de espinhos,
o ruído venenoso
da cidade, os dentes solapados
do pululante poetiso, e sobre
as folhas dos mortos e os degraus
que construiu o silêncio irredutível,
como coto dum amor leproso,
o esplendor molhado das ruínas.


Porém do acre acampamento, rude
suor, lanças de grãos amarelos,
sobe a agricultura coletiva
repartindo os pães da pátria.


Outras vezes calcárias cordilheiras
interromperam o meu caminho,
formas
das metralhadas nevadas
que despedaçam a casca escura
da pele mexicana, e os cavalos
que cruzam como o beijo da pólvora
sob os patriarcais arvoredos.


Aqueles que apagaram bravamente
a fronteira do prédio e entregaram
a terra conquistada pelo sangue
entre os esquecidos herdeiros,
também aqueles dedos dolorosos
atados ao sul das raízes,
a minuciosa máscara teceram,
povoaram de floral quinquilharia
e de fogo têxtil o território.


Não soube que mais amei, se a escavada
antigüidade de rostos que guardaram
a intensidade de pedras implacáveis,
ou a rosa recente, construída
por uma mão ontem ensangüentada.


E assim de terra em terra fui tocando
o barro americano, minha estatura,
e subiu por minhas veias o esquecimento
recostado no tempo, até que um dia
estremeceu a minha boca a sua linguagem.




XIII
Nos muros do México (1943)

Os países se estendem junto aos rios, buscam
o suave peito, os lábios do planeta,
tu, México, tocaste
os ninhos do espinho,
a desértica altura da águia sangrenta,
o mel da coluna combatida.


Outros homens buscaram o rouxinol, acharam
o fumo, o vale, regiões como a pele humana:
tu, México, enterraste as mãos na terra,
tu cresceste na pedra de olhar selvagem.

Quando chegou a tua boca a rosa do rocio
o látego do céu a converteu em tormento.

foi a tua origem um vento de punhais
entre dois mares de irritada espuma.


Tuas pálpebras se abriram na espessa papoula
de um dia enfurecido
e a neve estendia sua espaçosa brancura
onde o fogo vivo começava a habitar-te.

conheço a tua coroa de nopais
e sei que sob as tuas raízes
a tua subterrânea estátua, México, se constrói
com as águas secretas da terra
e os lingotes cegos das minas.


Ó terra, ó esplendor
de tua perpétua e dura geografia,
a derramada rosa do mar da Califórnia,
o raio verde que Yucatán derrama,
o amarelo amor de Sinaloa,
as pálpebras rosadas de Morelia,
e o longo fio da piteira fragrante
que amarra o coração à tua estatura.


México augusto de rumor e espadas,
quando a noite na terra era maior,
repartiste o berço do milho entre os homens.

Levantaste a mão cheia de pó santo
e a puseste em meio a teu povo
como uma nova estrela de pão e de fragrância.

O camponês então à luz da pólvora
olhou a sua terra desencadeada
brilhar sobre os mortos germinais.


Canto a Morelos.
Quando caía
seu fulgor verrumado,
uma pequena gota ia chamando
sob a terra até encher a taça
de sangue, e da taça um rio
até chegar a toda a silenciosa praia
da América, empapando-a de misteriosa essência.


Canto a Cuauhtémoc.
Toco
a sua linhagem de lua
e seu fino sorriso de deus martirizado.

Onde estás, perdeste,
antigo irmão, a tua dureza doce?
Em que te converteste?
Onde vive a tua estação de fogo?
Vive na pele de nossa mão escura,
vive nos cinzentos cereais:
quando, depois da noturna sombra
se debulham as cepas da aurora,
os olhos de Cuauhtémoc abrem a sua luz remota
sobre a vida verde da folhagem.


Canto a Cárdenas.
Eu estive;
eu vivi a tormenta de Castilla.

Eram os dias cegos das vidas.

Altas dores como ramos cruéis
feriam a nossa mãe angustiada.

Era o abandonado luto, os muros do silêncio
quando
se atraiçoava, se assaltava e feria
essa pátria da alva e do loureiro.

Então
só a estrela vermelha da Rússia e o olhar
de Cárdenas brilharam na noite do homem.

General, presidente da América, te deixo neste canto
algo do resplendor que recolhi na Espanha.

México, abriste as portas e as mãos
ao errante, ao ferido,
ao desterrado, ao herói.

Sinto que isto não possa se dizer de outra forma
e quero que se agarrem as minhas palavras
outra vez como beijos em teus muros.

De par em par abriste a tua porta combatente
e encheu-se de estranhos filhos a tua cabeleira
e tocaste com as tuas duras mãos
as faces dos filhos
que te pariu com lágrimas e tormenta do mundo.


Aqui termino, México,
aqui te deixo esta caligrafia
sobre as fontes para que a idade
vá apagando este novo discurso
de quem te amou por livre e por profundo.

Adeus te digo, mas não me vou.

Vou-me, mas não posso
dizer-te adeus.


Porque na minha vida, México, vives como uma pequena
águia equivocada que circula nas minhas veias,
e só no fim a morte dobrará as asas
sobre o meu coração de soldado adormecido.




XIV
O regresso (1944)

Regressei.
.
.
O Chile me recebeu com o rosto amarelo do deserto.

Peregrinei sofrendo
de árida lua em cratera arenosa
e encontrei os domínios agrestes do planeta,
a lisa luz sem pâmpanos, a retidão vazia.

Vazia? Mas sem vegetais, sem garras, sem esterco
me revelou a terra sua dimensão nua
e lá longe a sua longa linha em que nascem
aves e peitos ígneos de suave contextura.


Porém mais longe homens cavavam as fronteiras,
recolhiam metais duros, disseminados
alguns como a farinha de amargos cereais,
outros como a altura calcinada do fogo,
e homens e lua, tudo me envolveu em sua mortalha
até perder o fio vazio dos sonhos.


Me entreguei aos desertos e o homem da escória
saiu de seu buraco, de sua aspereza muda
e soube as dores de meu povo perdido.


Então, fui por ruas e curules e disse
o quanto vi, mostrei as mãos que tocaram
os torrões enfartados de dor, as vivendas
da desamparada pobreza, o miserável
pão e a solidão da lua esquecida.


E lado a lado com meu irmão sem sapatos
quis mudar o reino das moedas sujas.


Fui perseguido, mas a nossa luta continua.


A verdade é mais alta que a lua.


É vista, como se estivessem num navio negro,
pelos homens das minas quando a olham à noite.


E na sombra a minha voz é repartida
pelas mais duras estirpes da terra.




XV
A linha de madeira

Eu sou um carpinteiro, cego, sem mãos.
Vivi
sob as águas, consumindo frio,
sem construir as caixas fragrantes, as moradas
que cedro a cedro erguem a grandeza,
porém meu canto foi procurando fios do bosque,
secretas fibras, ceras delicadas,
e foi cortando ramos, perfumando
a solidão com lábios de madeira.

Amei cada matéria, cada gota
de púrpura ou de metal, água e espiga
e entrei em espessas camadas resguardadas
por espaço e areia tremulante
até cantar com a boca destruída,
como um morto, nas uvas da terra.


Argila, barro, vinho, me cobriram,
enlouqueci tocando os quadris
da pele cuja flor foi sustida
como um incêndio sob a minha garganta,
e pela pedra passearam os meus sentidos
invadindo fechadas cicatrizes.


Como mudei sem ser, desconhecendo
o meu ofício antes de ser,
a metalurgia
que estava destinada à minha dureza,
às serranias olfateadas
pelas cavalgaduras no inverno?

Tudo se fez ternura e mananciais
e servi somente para noturno.




XVI
A bondade combatente
Mas não tive a bondade morta nas ruas.

Rechacei o seu aqueduto purulento
e não toquei o seu mar contaminado.


Extraí o bem como um metal, cavando
além dos olhos que mordiam,
e entre as cicatrizes foi crescendo
meu coração nascido nas espadas.


Não saí desbocado, descarregando
terra ou punhal entre os homens.

Não era
meu ofício o da ferida ou o veneno.

Não sujeitei o inerme em ataduras
que lhe atravessassem chicotes gelados,
não fui à praça procurar inimigos
espreitando com a mão mascarada:
não fiz mais que crescer com as minhas raízes,
e o chão que estendeu o meu arvoredo
decifrou os vermes que jaziam.


Veio morder-me Segunda-feira e lhe dei algumas folhas
Veio insultar-me Terça-feira e fiquei dormindo.

Chegou logo Quarta-feira com dentes iracundos.

Eu a deixei passar construindo raízes.

E quando Quinta-feira veio com uma venenosa
lança negra de urtigas e de escamas
eu a esperei em meio à minha poesia
e em plena lua lhe parti um cacho de uva.


Venham aqui estrelar-se nesta espada.


Venham se desfazer em meus domínios.


Venham em amarelos regimentos,
ou na congregação dos sulfurosos.


Morderão sombra e sangue de sinos
sob as sete léguas do meu canto.




XVII
Reúne-se o aço (1945)

Vi o mal e o mau, mas não em seus covis.


É uma história de fadas a maldade com caverna.


Aos pobres depois de terem tombado
em farrapos, à mina desgraçada,
povoaram-no com bruxas o caminho.

Encontrei a maldade sentada nos tribunais:
no Senado a encontrei vestida
e penteada, torcendo os debates
e as idéias para os próprios bolsos.

O mal e o mau
acabavam de sair do banho: estavam
encadernados em satisfações,
e eram perfeitos na suavidade
de seu falso decoro.

Vi o mal, e para
desterrar esta pústula vivi
com outros, acrescentando vidas,
fazendo-me secreta cifra, metal sem nome,
invencível unidade de povo e pó.


O orgulhoso estava feramente
combatendo em seu armário de marfim
e passou a maldade em meteoro
dizendo: “É admirável
a sua solitária retidão.

Deixai-o”.


O impetuoso tirou o seu alfabeto
e montado em sua espada se deteve
a perorar na rua deserta.

Passou o mal e lhe disse: “Que valente!”
e se foi ao clube para comentar a façanha.


Mas quando fui pedra e argamassa,
torre e aço, sílaba associada:
quando apertei a mão de meu povo
e fui ao combate com o mar inteiro;
quando deixei a minha solidão e pus
o meu orgulho no museu, a minha vaidade no
desvão das carruagens desengonçadas,
quando me fiz partido com outros homens, quando
se organizou o metal da pureza,
então veio o mal e disse: “Duro
com eles, no cárcere, morram!”

Mas já era tarde, e o movimento
do homem, meu partido,
é a invencível primavera, dura
sob a terra, quando foi esperança
e fruto geral para mais tarde.




XVIII
O vinho

Vinho da primavera.
.
.
Vinho do outono, dai-me
meus companheiros, uma mesa em que caiam
folhas equinociais, e o grande rio do mundo
que empalideça um pouco movendo o seu som
longe de nossos cantos.

Sou um bom companheiro.


Não entraste nesta casa para que te arrancasses
um pedaço do ser.
Talvez quando te vás
leves algo meu, castanhas, rosas ou
uma segurança de raízes ou navios
que quis compartilhar contigo, companheiro.


Canta comigo até que as taças
se derramem deixando púrpura desprendida
sobre a mesa.

Esse mel vem à tua boca
da terra, de seus obscuros racimos.


Quantos me faltam, sombras do canto,
companheiros
que amei oferecendo a face, tirando de minha vida
a incomparável ciência varonil que professo,
a amizade, arvoredo de rugosa ternura.


Dá-me a mão, encontra-te comigo,
simples, não busques nada em minhas palavras,
a não ser a emanação duma planta nua.

Por que me pedes mais que a um operário? Já sabes
que a golpes fui forjando minha enterrada forja,
e que não quero falar a não ser como ê minha língua.


Sai a procurar doutores se não te agrada o vento.


Nós cantaremos com o vinho áspero
da terra: golpearemos as taças do outono,
e a guitarra ou o silêncio irão trazendo
linhas de amor, linguagem de rios que não existem,
estrofes adoradas que não têm sentido.




XIX
Os frutos da terra

Como sobe a terra pelo milho, buscando
leitosa luz, cabelos, marfim endurecido,
a primorosa rede da espiga madura
e todo o reino de ouro que se vai debulhando?

Quero comer cebolas, traze-me do mercado
uma, um globo pleno de neve cristalina,
que transformou a terra em cera e equilíbrio
como uma bailarina detida em seu vôo.

Dá-me umas codornizes de caça, cheirando
a musgo da selva, um pescado vestido
como um rei, destilando profundidade molhada
sobre a fonte,
abrindo pálidos olhos de ouro
sob o multiplicado mamilo dos limões.


Vamo-nos, e sob a castanheira a fogueira
deixará o seu tesouro branco sob as brasas,
e um cordeiro com toda a sua oferenda irá dourando
a sua linhagem até ser âmbar para a tua boca.


Dá-me todas as coisas da terra, torcazes
recém-tombadas, ébrias de cachos selvagens,
doces enguias que ao morrer, fluviais,
alongaram as suas pétalas diminutas,
e uma bandeja de ácidos ouriços
darão o seu alaranjado submarino
ao fresco firmamento das alfaces.


E antes que a lebre marinada
encha de aroma o ar do almoço
como silvestre fuga de sabores,
para as ostras do sul, recém-abertas,
em seus estojos de esplendor salgado,
vai o meu beijo empapado nas substâncias
da terra que amo e que percorro
com todos os caminhos do meu sangue.




XX
A grande alegria

A sombra que indaguei já não me pertence.

Eu tenho a alegria duradoura do mastro,
a herança dos bosques, o vento do caminho
e um dia decidido sob a luz terrestre.


Não escrevo para que outros livros me aprisionem,
nem para encarniçados aprendizes de lírio,
mas para singelos habitantes que pedem
água e lua, elementos da ordem imutável,
escolas, pão e vinho, guitarras e ferramentas.


Escrevo para o povo ainda que ele não possa
ler a minha poesia com seus olhos rurais.

Virá o instante em que uma linha, a aragem
que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,
então o labrego levantará os olhos,
o mineiro sorrirá quebrando pedras,
o caldeireiro limpará a fronte,
o pescador verá melhor o brilho
dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,
o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio
do aroma do sabão, olhará meus poemas,
e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.


Isso é bastante, essa é a coroa que quero.


Quero que à saída da fábrica e das minas
esteja a minha poesia aderida à terra,
ao ar, à vitória do homem maltratado.

Quero que um jovem ache na dureza
que construí, com lentidão e com metais,
como uma caixa, abrindo-a, cara a cara, a vida,
e afundando a alma toque as rajadas que fizeram
minha alegria, nas alturas tempestuosas.




XXI
A morte

Renasci muitas vezes, desde o fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com as minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre o meu corpo, destinado a ser terra.


Não comprei uma parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.


Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo de estudá-la,
enquanto os espancavam os que têm
o céu dividido e arrumado.


Tenho pronta a minha morte, como uma roupa
que me espera, da cor que amo,
da extensão que procurei inutilmente,
da profundidade que necessito.


Quando o amor gastou a sua matéria evidente
e a luta debulha os seus martelos
em outras mãos de acrescentada força,
vem a morte para apagar os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.




XXII
A vida

Que outro se preocupe com os ossários.
.
.

O mundo

tem uma cor nua de maçã: os rios
arrastam um caudal de medalhas silvestres
e em todas as partes vive Rosalía, a doce,
e Juan, o companheiro.
.
.

Ásperas pedras fazem
o castelo, e o barro mais suave que as uvas
com os restos do trigo fez minha casa.

Vastas terras, amor, sinos lentos,
combates reservados à aurora,
cabeleiras de amor que me esperaram,
depósitos adormecidos de turquesa:
casas, caminhos, ondas que constroem
uma estátua varrida pelos sonhos,
padarias na madrugada,
relógios educados na areia,
papoulas do trigo circulante,
e estas mãos escuras que amassaram
os materiais de minha própria vida:
para viver acendem-se as laranjas
sobre a multidão dos destinos!

Que os coveiros escarvem as matérias
aziagas: que levantem
os fragmentos sem luz da cinza,
e falem do idioma do verme.

Diante de mim só tenho sementes,
desenvolvimentos radiantes e doçura.




XXIII
Testamento (I)

Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
a minha casa junto ao mar de Isla Negra.

Quero que lá repousem os maltratados filhos
da minha pátria, saqueada por machados e traidores,
desbaratada em seu sangue sagrado,
consumida em vulcânicos farrapos.


Quero que ao limpo amor que percorresse
o meu domínio, descansem os cansados,
se sentem a minha mesa os obscuros,
durmam sobre a minha cama os feridos.


Irmão, esta é a minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que ergui lutando em minha pobreza.

Aqui nasceu o som na minha janela
como num crescente caracol
e logo estabeleceu as suas latitudes
em minha desordenada geologia.


Vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.




XXIV
Testamento (II)

Deixo meus velhos livros, recolhidos
pelos rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no rouco tear interrompido
as significações de amanhã.


Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos c mineiros
haja dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão desengonçado, o filamento
que enredou as nossas ávidas planícies.

Toquem eles o inferno, este passado
que esmagou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.


Sobre os ossos de caciques, longe
de nossa herança traída, em pleno
ar de povos que caminham sós,
eles vão para povoar o estatuto
dum longo sofrimento vitorioso.


Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiães, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.

Que em Maiakóvski vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.




XXV
Disposições

Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
diante do mar que conheço, de cada área rugosa
de pedras e ondas que meus olhos perdidos
não tornarão a ver.

Cada dia do oceano
meu trouxe, névoa ou puros precipícios de turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha face.


Cada passagem enlutada de cormorão, o vôo
de grandes aves grises que amavam o inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode o frio,
e ainda mais, a terra que um escondido herbário
secreto, filho de brumas e sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa agarradas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado da minha alegria, sabem
que lá quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra.
.
.

Quero ser arrastado
abaixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos caudais subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.


Abri junto a mim o vazio da que amo, e um dia”
deixai-a que outra vez me acompanhe na terra.




XXVI
Vou viver (1949)

Não vou morrer.
Saio agora
neste dia cheio de vulcões
para a multidão, para a vida.

Aqui deixo arrumadas estas coisas
hoje que os pistoleiros passeiam
com a “cultura ocidental” nos braços,
com as mãos que matam na Espanha
e as forcas que oscilam em Atenas
e a desonra que governa o Chile
e paro de contar.

Aqui fico
com palavras e povos e caminhos
que me esperam de novo, e que batem
com mãos consteladas em minha porta.




XXVII
A meu partido

Me deste a fraternidade para o que não conheço.

Me acrescentaste a força de todos os que vivem.

Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento.

Me deste a liberdade que não tem o solitário.

Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo.

Me deste a retidão que necessita a árvore.

Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens.

Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos.

Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos.

Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha.

Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético.

Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.

Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.




XXVIII
Aqui termino (1949)

Este livro termina aqui.
Nasceu
da ira como uma brasa, como os territórios
de bosques incendiados, e desejo
que continue como uma árvore vermelha
propagando a sua clara queimadura.

Mas não somente cólera em seus ramos
encontraste: não somente as suas raízes
procuraram a dor mas também a força,
e força sou de pedra pensativa,
alegria de mãos congregadas.


Por fim, sou livre dentro dos seres.


Entre os seres, como o ar vivo,
e da solidão acurralada
saio para a multidão dos combates,
livre porque em minha mão vai a tua mão,
conquistando alegrias indomáveis.


Livro comum de um homem, pão aberto
é esta geografia do meu canto,
e uma comunidade de lavradores
algum dia recolherá o seu fogo
e semeará as suas chamas e suas folhas
outra vez na nave da terra.


E nascerá de novo esta palavra,
talvez em outro tempo sem dores,
sem as impuras fibras que aderiram
negras vegetações em meu canto,
e outra vez nas alturas estará ardendo
meu coração queimante e estrelado.

Assim termina este livro, aqui deixo
meu Canto geral escrito
na perseguição, cantando sob
as asas clandestinas de minha pátria.

Hoje, 5 de fevereiro, neste ano
de 1949, no Chile, em “Godomar
de Chena”, alguns meses antes
dos quarenta e cinco anos de minha idade.




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Canto I - A Lâmpada Mágica

Amor América (1400)

Antes do chinó e do fraque
foram os rios, rios arteriais:
foram as cordilheiras em cuja vaga puída
o condor ou a neve pareciam imóveis;
foi a umidade e a mata, o trovão,
sem nome ainda, as pampas planetárias.


O homem terra foi, vasilha, pálpebra
do barro trêmulo, forma de argila,
foi cântaro caraíba, pedra chibcha,
taça imperial ou sílica araucana.

Terno e sangrento foi, porém no punho
de sua arma de cristal umedecido
as iniciais da terra estavam escritas.


Ninguém pôde
recordá-las depois: o vento
as esqueceu, o idioma da água
foi enterrado, as chaves se perderam
ou se inundaram de silêncio ou sangue.


Não se perdeu a vida, irmãos pastorais.

Mas como uma rosa selvagem
caiu uma gota vermelha na floresta
e apagou-se uma lâmpada da terra.


Estou aqui para contar a história.

Da paz do búfalo
até as fustigadas areias
da terra final, nas espumas
acumuladas de luz antártica,
e pelas Lapas despenhadas
da sombria paz venezuelana,
te busquei, pai meu,
jovem guerreiro de treva e cobre,
ou tu, planta nupcial, cabeleira indomável,
mãe jacaré, pomba metálica.


Eu, incaico do lodo,
toquei a pedra e disse:
Quem me espera? E apertei a mão
sobre um punhado de cristal vazio.

Porém andei entre flores zapotecas
e doce era a luz como um veado
e era a sombra como uma pálpebra verde.


Terra minha sem nome, sem América,
estame eguinocial, lança de púrpura,
teu aroma me subiu pelas raízes
até a taça que bebia, até a mais delgada
palavra não nascida de minha boca.




I
Vegetações
Às terras sem nomes e sem números
baixava o vento de outros domínios,
trazia a chuva fios celestes,
e o deus dos altares impregnados
devolvia as flores e as vidas.


Na fertilidade crescia o tempo.


O jacarandá levantava espuma
feita de resplendores transmarinos,
a araucária de lanças eriçadas
era magnitude contra neve,
a primordial árvore acaju,
de sua copa destilava sangue,
e no sul dos lariços,
a árvore trovão, a árvore vermelha,
a árvore do espinho, a árvore mãe,
o ceibo vermelhão, a árvore borracha,
eram volume terrenal, a ressoar,
eram existências territoriais.


Um novo aroma propagado
enchia, pelos interstícios
da terra, as respirações
convertidas em fumo e fragrância:
o tabaco silvestre erguia
seu rosal de ar imaginário.

Qual lança terminada em fogo
surgiu o milho, e sua estatura
debulhou-se e de novo nasceu,
disseminou sua farinha, teve
mortos sob as suas raízes,
e, logo, em seu berço, viu
crescer os deuses vegetais.

Ruga e extensão, disseminava
a semente do vento
sobre as plumas da cordilheira,
espessa luz de gérmen e mamilos,
aurora cega amamentada
pelos ungüentos terrenais
da implacável latitude chuvosa,
das cerradas noites mananciais
e das cisternas matutinas.

E ainda nas planuras
como lâminas de planeta,
sob uma suave povoação de estrelas,
rei da selva, o umbuzeiro detinha
o ar livre, o vôo rumoroso
e cavalgava o pampa, dominando-o
com seu ramal de rédeas e raízes.


América arvoredo,
sarça selvagem entre os mares,
de pólo a pólo balançavas,
tesouro verde, a tua mata.


Germinava a noite
em cidades de cascas sagradas,
em sonoras madeiras,
extensas folhas que cobriam
a pedra germinal, os nascimentos.

Útero verde, americana
savana seminal, adega espessa,
um ramo nasceu como uma ilha,
uma folha foi forma da espada,
uma flor foi relâmpago e medusa,
um cacho arredondou seu resumo,
uma raiz desceu às trevas.




II
Algumas bestas

Era o crepúsculo do iguano.

Da arcoirisada rosácea
sua língua como um dardo
fundia-se na verdura,
o formigueiro monacal pisava
com melodioso pé a selva,
o guanaco fino como o oxigênio
nas largas alturas pardas
ia calçando botas de ouro,
enquanto a lhama abria cândidos
olhos na delicadeza do mundo cheia de rocio.

Os macacos trançavam um fio
interminavelmente erótico
nas ribeiras da aurora,
derrubando muros de pólen
e espantando o vôo violeta
das borboletas de Muzo.

Era a noite dos jacarés,
a noite pura e pululante
dos focinhos saindo do lodo,
e dos lamaçais sonolentos
um ruído opaco de armaduras
retornava à origem terrestre.


O jaguar tocava as folhas
com a sua ausência fosforescente,
o puma corre nas ramagens
como o fogo devorador
enquanto ardem nele os olhos
alcoólicos da selva.

Os texugos coçam os pés
do rio, farejam o ninho
cuja delícia palpitante
atacarão com dentes rubros.


E no fundo da água magna,
como o círculo da terra,
está a sucuri gigante
coberta de barros rituais,
devoradora e religiosa.




III
Vêm os pássaros

Tudo era vôo em nossa terra.

Como gotas de sangue e plumas
os cardeais mergulhavam em sangue
o amanhecer de Anáhuac.

O tucano era uma adorável
caixa de frutas envernizadas,
o colibri guardou as chispas
originais do relâmpago
e suas minúsculas fogueiras
ardiam no ar imóvel.


Os ilustres papagaios enchiam
as profundidades da folhagem
como lingotes de ouro verde
recém-saídos da massa
dos pântanos submersos,
e de seus olhos circulares
mirava uma argola amarela,
velha como os minerais.

Todas as águias do céu

nutriam sua estirpe sangrenta
no azul não-habitado,
e sobre as penas carnívoras
voava acima do mundo
o condor, rei assassino,
frade solitário do céu,
talismã negro da neve,
furacão da falcoaria.


A engenharia do joão-de-barro
fazia do barro fragrante
pequenos teatros sonoros
onde aparecia cantando.


O atalha-caminhos ia
dando o seu grito umedecido
na margem dos poços.

A torcaz araucana fazia
ásperos ninhos de mato
onde deixava a real prenda
de seus ovos azulados.


A loica do sul, fragrante,
doce carpinteira de outono,
mostrava o seu peito estrelado
de constelação escarlate,
e o chincol austral erguia
sua flauta recém-recolhida
da eternidade da água.


Mas, úmido como um nenúfar,
o flamingo abria as suas portas
de rosada catedral
e voava como a aurora
longe do bosque bochornoso
onde se pendura a pedraria
do quetzal, que de repente acorda,
se mexe, desliza, fulgura
e faz voar a sua brasa virgem.


Voa uma montanha marinha
para as ilhas, uma lua
de aves que vão para o sul,
sobre as ilhas fermentadas
do Peru.

É um rio vivo de sombra,
é um cometa de pequenos
corações inumeráveis
que escurecem o sol do mundo
como um astro de cauda espessa
palpitando para o arquipélago.


E no final do iracundo
mar, na chuva do oceano,
surgem as asas do albatroz
como dois sistemas de sal.

instituindo no silêncio,
entre as rajadas torrenciais.

com a sua espaçosa hierarquia,
a ordem das soledades.




IV Os rios acodem

Amada dos rios, combatida
por água azul e gotas transparentes,
uma árvore de veias é teu espectro
de deusa escura que morde maçãs:
então ao acordares despida
eras tatuada pelos rios,
e nas alturas molhadas a tua cabeça
enchia o mundo de novos orvalhos.

A água te estremecia na cintura.

Eras de mananciais construída
e lagos te brilhavam na fronte.

De tua floresta mãe recolhias
a água como lágrimas vitais,
e arrastavas as torrentes às areias
- através da noite planetária,
cruzando ásperas pedras dilatadas,
quebrando no caminho
todo o sal da geologia,
cortando bosques de compactos muros,
separando os músculos do quartzo.



Orinoco
Orinoco, deixa-me em tuas margens
daquela hora sem hora:
deixa-me como outrora partir despido
em tuas trevas batismais.

Orinoco de água escarlate,
deixa-me mergulhar as mãos que retornam
a tua maternidade, a teu transcurso,
rio de raças, pátria de raízes,
teu largo rumor, tua lâmina selvagem
vem de onde eu venho, das pobres
e altivas soledades, dum segredo
como um sangue, de uma silenciosa
mãe de argila.



Amazonas
Amazonas,
capital das sílabas da água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
te caem os rios como aves, te cobrem
os pistilos cor de incêndio,
os grandes troncos mortos te povoam de perfume,
a lua não pode vigiar-te ou medir-te.

És carregado de esperma verde
como árvore nupcial, és prateado
pela primavera selvagem,
és avermelhado de madeiras,
azul entre a lua das pedras,
vestido de vapor ferruginoso,
lento como um caminho de planeta.



Tequendama
Tequendama, lembras
tua passagem solitária nas alturas
sem testemunha, fio
de solidões, vontade fina,
linha celeste, flecha de platina,
lembras passo a passo
abrindo muros de ouro
até cair do céu no teatro
aterrador da pedra vazia?


Bío-bío
Fala-me no entanto, Bío-Bío,
são as tuas palavras na minha boca
as que deslizam, tu me deste
a linguagem, o canto noturno
mesclado de chuva e folhagem.

Tu, sem que ninguém olhasse um menino,
me contaste o amanhecer
da terra, a poderosa
paz de teu reino, o machado enterrado
com um ramo de flechas mortas,
o que as folhas da caneleira
em mil anos te relataram.

e logo te vi ao entregar-te ao mar
dividido em bocas e seios,
largo e florido, murmurando
uma história cor de sangue.




V
Minerais

Mãe dos metais, te queimaram,
te morderam, te martirizaram,
te corroeram, te apodreceram
mais tarde, quando os ídolos
já não podiam defender-te.

Cipós subindo aos cabelos
da noite selvática, acajus
formadores do centro das Flechas,
ferro agrupado no desvão florido,
garra altaneira das condutoras
águias de minha terra,
água desconhecida, sol malvado,
vaga de cruel espuma,
tubarão espreitante, dentadura
das cordilheiras antárticas,
deusa serpente vestida de plumas
e enrarecida por azul veneno,
febre ancestral inoculada
por migrações de asas e formigas,
tremedais, borboletas
de aguilhão ácido, madeiras
avizinhando-se do mineral,
por que o coro dos hostis
não defendeu o tesouro?

Mãe das pedras
escuras que tingiam
de sangue as tuas pestanas!
A turquesa
de suas etapas, do brilho larvário
apenas nascia para as jóias
do sol sacerdotal, dormia o cobre
em seus sulfúricos estratos,
e o antimônio ia de camada em camada
à profundidade de nossa estrela.

A hulha brilhava em resplendores-negros
como o total reverso da neve,
negro gelo enquistado na secreta
tormenta imóvel da terra,
quando um fulgor de pássaro amarelo
enterrou as correntes do enxofre
ao pé das glaciais cordilheiras.

O vanádio vestia-se de chuva
para entrar na câmara do ouro,
afiava facas o tungstênio
c o bismuto trançava
medicinais cabeleiras.


Os vaga-lumes equivocados
ainda continuavam nos altos,
soltando goteiras de fósforo
nos sulcos dos abismos
e nos cumes ferruginosos.


São as vinhas do meteoro,
os subterrâneos da safira.

O soldadinho nas mesetas
dorme com roupa de estanho.


O cobre funda os seus crimes
nas trevas insepultas
carregadas de matéria verde,
e no silêncio acumulado
dormem as múmias destrutoras.

Na doçura chibcha o ouro
sai de opacos oratórios
lentamente até os guerreiros,
converte-se em rubros estames,
em corações laminados,
em fosforescência terrestre,
em dentadura fabulosa.

Durmo então com o sonho
de uma semente, de uma larva,
e as escadas de Querétaro
desço contigo.

Me esperaram
as pedras de lua indecisa,
a jóia pesqueira da opala,
a árvore morta numa igreja
gelada pelas ametistas.


Como podias, Colômbia oral,
saber que tuas pedras descalças
ocultavam uma tormenta
de ouro iracundo,
como, pátria
da esmeralda, ias perceber
que a jóia de morte e mar,
o fulgor no seu calafrio,
escalaria as gargantas
dos dinastas invasores?

Eras pura noção de pedra,
rosa educada pelo sal,
maligna lágrima enterrada,
sereia de artérias adormecidas,
beladona, serpente negra.

(Enquanto a palmeira dispersava
sua coluna em altas travessas,
ia o sal destituindo
o resplendor das montanhas,
convertendo em veste de quartzo
as gotas de chuva nas folhas
e transmutando os abetos
em avenidas de carvão.
)

Corri pelos ciclones até o perigo
e desci à luz da esmeralda,
ascendi ao pâmpano dos rubis,
mas calei-me para sempre na estátua
do nitrato estendido no deserto.

Vi como na cinza
do ossudo altiplano
levantava o estanho
suas corais ramagens de veneno
até estender como uma selva
a névoa equinocial, até cobrir o sinete
de nossas cereais monarquias.




VI
Os homens

Como a taça da argila era a raça mineral, o homem
feito de pedras e atmosfera,
limpo como os cântaros, sonoro.

A lua fez a massa dos caraíbas,
extraiu oxigênio sagrado,
macerou as flores e as raízes.

Andou o homem das ilhas
tecendo ramos e grinaldas,
de panos cor de enxofre,
e soprando o tritão marinho
à beira das espumas.


O tarahumara vestiu-se de aguilhão
e nas extensões do noroeste
com sangue e pederneiras criou o fogo,
enquanto o universo ia nascendo
outra vez na argila do tarasco:
os mitos das terras amorosas,
a exuberância úmida de onde
lodo sexual e frutas derretidas
viriam a ser atitudes dos deuses
ou pálidas paredes de vasilhas.


Como faisões deslumbrantes
desciam os sacerdotes
das escadarias astecas.

Os degraus triangulares
sustinham o inumerável
relâmpago das vestimentas.

E a pirâmide augusta,
pedra por pedra, agonia e ar,
em sua estrutura dominadora
guardava como uma amêndoa
um coração sacrificado.

Num trovão como um uivo
caía o sangue pelas
escarlinatas sagradas.

Mas multidões de povoados
teciam a fibra, guardavam
o porvir das colheitas,
trançavam o fulgor da pluma,
convenciam a turquesa,
e em trepadeiras têxteis
expressavam a luz do mundo.


Maias, havíeis derrubado
a árvore do conhecimento.

Com aroma de raças celeiras
erguiam-se as estruturas
do exame e da morte,
e perscrutáveis nos poços,
arrojando-lhes noivas de ouro,
a permanência dos germes.


Chichén, teus amores cresciam
no amanhecer da selva.

Os trabalhadores iam fazendo
a simetria dos favos de mel
em tua cidade amarela,
e o pensamento ameaçava
o sangue dos pedestais,
desmontava o céu na sombra,
conduzia a medicina,
escrevia sobre as pedras.


Era o sul um assombro dourado.

As altas soledades
de Machu Picchu na porta do céu
estavam cheias de azeite e cantos,
o homem desfizera as moradas.

e no novo domínio, entre os cumes,
o lavrador tocava a semente
com seus dedos feridos pela neve.


O Cuzco amanhecia como um
trono de torreões e celeiros
e era a flor pensativa do mundo
aquela raça de pálida sombra
em cujas mãos abertas tremulavam
diademas de imperiais ametistas.

Germinava nos terraços
o milho das altas serras
e nas vulcânicas sendas
iam os vasos e os deuses.

A agricultura perfumava
o reino das cozinhas
e estendia sobre os tetos
um manto de sol debulhado.


(Doce raça, folha de serras,
estirpe de torre e turquesa;
fecha-me os olhos agora,
antes de irmos ao mar
de onde as dores chegam.
)

Aquela selva azul era uma gruta
e no mistério de árvores e treva
o guarani cantava como
o fumo que sobe na tarde,
a água sobre as folhagens,
a chuva mim dia de amor,
a tristeza junto aos rios.


No fundo da América sem nome
estava Arauco entre as águas
vertiginosas, apartado
por todo o frio do planeta.

Olhai o grande sul solitário.

Não se vê a fumaça nas alturas.

Vêem-se apenas as nevascas
e o vendaval rechaçado
pelas ásperas araucárias.

Não procures sob o verde fechado
o canto da olaria.


Tudo é silêncio de água e vento.


Mas nas folhas espia o guerreiro.

Entre os lariços um grito.

Uns olhos de tigre ao meio
das alturas da neve.


Olha as lanças a descansar.

Escuta o sussurro do ar
atravessado pelas flechas.

Olha os peitos e as pernas
e as cabeleiras sombrias
brilhando à luz da lua.


Olha o vazio dos guerreiros.


Não há ninguém.
Trina a diuca
feito água na noite pura.


Cruza o condor o seu vôo negro.


Não há ninguém.
Escutas? É o passo
do puma no ar e nas folhas.


Não há ninguém.
Escuta.
Escuta a árvore,
escuta a árvore araucana.


Não há ninguém.
Olha as pedras.


Olha as pedras de Arauco.


Não há ninguém, somente as árvores.


Somente as pedras, Arauco.
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