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1980

Herberto Helder

Herberto Helder

Herberto Helder de Oliveira foi um poeta português, considerado por alguns o 'maior poeta português da segunda metade do século XX' e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.

1930-11-23 Funchal
2015-03-23 Cascais
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Boca.
Brûlure, blessure. Onde
desembocam, como se diz em nome, os canais muitos.
Pura consumpção em voz alta, ou num murmúrio,
entre sangue venoso, ou
traça de lume. Gangrena,
música,
uma bolha.
Arte medonha da paixão.
Um poro monstruoso que respira o mundo.
Nele se coroam
o escuro, o fôlego, o ar ardido.
O ouro, o ouro.
Tubo sonoro por onde se coa o corpo.
Se escoa todo.

Em quartos abalados trabalho na massa tremenda
dos poemas.
Que me olham de tão perto que eu ardo.
Um dia hei-de ficar todo límpido,
ou calcinado nervo a nervo. Ou por me ver
Deus
de um canto das palavras, com sistinos
dedos pintados em torno à voragem
diuturna, tocando na matéria.
Ininterrupto, eléctrico.
Alguém poderia dar um grito.
Quase morro de medo ao sentir o meu nome.
Penso que apenas numa hora o sangue encharcaria
a roupa de alto a baixo, enquanto
brilha o rosto.

Às vezes Deus torna-me rápido.
Às vezes há um candelabro.
Às vezes há os mortos de que se extrai o mármore.
Pelo poder do nome, traz-se a casa,
quarto a quarto,
até ao centro. Fazem-se profundas
casas de mármore. Mas nunca
serei branco nestas câmaras com um candelabro no meio.
Separam-nas membranas,
espelhos vivos, teias
de espelho. E de braços abertos, entre as suas imagens,
dormem as pessoas. Cerradas
com um galho de centelhas. E Deus não me perdoa a carnagem
sonora. Há um candelabro, uma cratera na sala,
ou é como se houvesse.

Nunca durmo.

Só tenho as mãos à frente, entre o rosto
e a fogueira.

Máxima visão, no abismo, de um planeta de quartzo.
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Astro Assoprado

Astro assoprado, sombria ligeireza, dom: eu sei.
Nada me toca.
Apenas um dedo de mármore na cabeça.
Trespassa-a, têmpora a têmpora, coroa de uma agonia
na escuridão das camas. Para dançar.
A roupa treme ao choque do sangue,
magnetizada,
viva repentinamente. Ninguém me diz como
se tece o casulo, e a seda
transpira de si mesma. O arpão de mármore traz,
directa do coração,
a ferida. Depois danço, e carne e roupa
são a mesma coisa, a coisa que dança, a chaga
dessa leveza. Prodígio
do talento pontuado à força de branca pedra
demoníaca.

Que me dê essa coroa, que me levante
da sonolência, da obscura inocência
que em mim corre também, entre os lençóis e o tremendo
esplendor das vísceras. Das partes negras,
da queimadura
na boca, os intestinos onde brilha o alimento,
o ânus que me fundamenta
nas trevas, e
dentre a raiz dos membros — arranca
um planeta que dance, limpo, apenas com um anel
saturnino à volta. E o eixo
de mármore implacável.

Que tenha Deus um sonho em carne viva.
Uma noite que trema pelo poder astronómico.
Mas que me poupe assim concêntrico
ao campo, e divagante, a curva
tensa:
o arco, o braço.
E as chispas súbitas, frechas
tão ferozmente pela carne dentro até ao escuro
do próprio astro, deixando um orifício
fulgurante:
um tubo de som,
sopro de ponta a ponta
— aquela baixa música mortal.
Vêm os animais, alvorecendo, os cornos a rasgarem a cabeça
outra espécie de luxo,
de melancolia.
E o corpo é uma harpa de repente.

Animal de Deus, eu.

Uma ferida.
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