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Os selos

1990

Herberto Helder

Herberto Helder

Herberto Helder de Oliveira foi um poeta português, considerado por alguns o 'maior poeta português da segunda metade do século XX' e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.

1930-11-23 Funchal
2015-03-23 Cascais
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1

Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos
Nem música nem cantaria.
Foi-se ver no livro: de um certo ponto de vista de:
terror sentido beleza
acontecera sempre o mesmo — quebram-se os selos aparecem
os prodígios
a puta escarlate ao meio dos cornos da besta
máquinas fatais, abismos, multiplicação de luas
— o inferno! alguém disse: afastem de mim a inocência
eu falo o idioma demoníaco.
Há imagens que se percebem: a do leão às escuras bebendo água
gelada, a imagem de uma pessoa com a mão gloriosa nas chamas
não pára de gritar mas não tira a mão do fogo
compreende-se? como se compreende!
é uma espécie de força absoluta. Há quem pinte cavaleiros luminosos
montados em cavalos azuis. Vão para a guerra, vão matar,
roubar, violar, Deus olha.
Sangue. Quais os problemas? Vermelho e azul, distribuição de formas, a beleza
e os seus segredos — o número, a razão do número
que tudo seja perfeito em coral e cobalto.
O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante.
O homem não é uma criatura entre mal e bem: falava-se com Deus
porque Deus era potência, Deus era unidade rítmica.
A mão sobre as coisas com vida sua, com essa mão reunir as coisas,
refazer as coisas — cada coisa tem a sua aura, cada animal tem
a sua aura, como se pastoreiam as auras!
em transe: eu sou a coisa. Acabou.
Sento-me a conversar com Deus: palavra, música, martelo
uma equação: conversa de ida e volta.
Depois há gente que fala entre si, depois é o medo, depois é o delírio.
Escuta a breve canção dentro de ti. Que diz ela?
Não move as coisas com as suas auras, nem tu nem a tua canção
pertencem ao mundo cheio, alma que sopra.
Nada se liga entre si, Deus não se debruça na canção; destroça
a cadência
— o demoníaco. Já se não vê um degrau
arrancar de outro degrau pelas lentas escadarias de mármore ao fundo.
A canção abandonou o seu espaço contínuo.
Que se pode fazer? — Apenas um encontro de objectos; um degrau, outro
e outro degraus onde ninguém assenta o pé
e depois o outro pé — por onde se não sobe para assistir ao braço que
torcendo
laçasse o corpo todo num umbigo incandescente, por onde ninguém
sobe para sentar-se ao órgão
e discutir em música as proporções? Aquele que disse:
eu tenho a temperatura de Deus — era um louco meteorológico.
Mas se afinal se entende que numa resposta
se oculta uma pergunta do mundo, mas
se afinal a substância
de alguém que pôs a mão no fogo é igual à substância do fogo
enquanto grita. A substância de um homem e de uma estrela; a mesma.
O poder de criar a canção, isso.
Bato na rosácea com o martelo
o rosto onde bate a rosácea roda voltado para cima —
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3

Ela disse: porque os vestidos transbordam de vento.
A pintura nos vestidos dá a volta anatómica das cores,
respiram. Que a estrela corra cheia de espuma com toda a força
para trás demorando o movimento da graça,
omoplatas,
e depois desarruma-se tudo para dentro dos olhos.
Então a gente sopra, ela disse que a exultação mantém em suspenso
o poder das lágrimas
que tudo aquilo, panos e clima floral em escarpados verdes e rosas.
Elas não lutam contra o perigo não lutam
contra o medo, parecem avançar para nós com os vestidos plenos.
Cheio verde, alma, ebriedade, uma braçada, aqui, oh
primaveras ampliadas: os elementos puros trabalham na fábula do
mundo.
Rosa bate sombrio no vento, as pás do vento batem
de olho a olho, as cabeleiras depressa.
Ela disse: a vista fica rodeada pelo ar, aproximam-se tanto
com o ar amontoado entre os cometas; e os vestidos
lufada hemisférica entre uma linha azul e uma linha luminosa.
Amor, se a porta se abrisse no bosque e entrasse o leopardo
entoando o poema da criação, se a cantaria de ouro se fendesse
no escuro. Os dedos mexem na aura em cada sítio de cada laranja
— fica inteiro de amarelo súbito
o manto. Chamem-me como se chama a floresta para junto do fogo.
Vê-los entre mim e ela, esses vestidos pulmonares
vê-los
de alento em alento, vê-la prodigiosamente
deslocar-se
tocada pelo bafo dos vestidos. E o rosa grande, abruptos verde e pó
fundidos quando roda na estação bravia — depois ela anoitece.
Uma corola ofegante sobe-lhe à boca porque em breve há-de ser
o tremor e a treva,
por exemplo se essa corola amadurece da sua mão para a minha.
Morre-se de ver a pintura, respira-se
cara a cara, à porta o leopardo entoa o poema da criação.
Um anel, floras e pessoas, somos nós, um anel, uma obra.
Mão na mão por aí começamos a fundir-nos
bloco vagaroso desde a raiz
bloco de ouro.
Amor, se a porta na muralha de esmeralda —
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4

A oferenda pode ser um chifre ou um crânio claro ou
uma pele de onça
deixem-me com as minhas armas
deixem-me entoar as onomatopéias, a minha canção de glória.
A noite o cabelo frio
de dia caminho por entre a fábula das corolas
sim, eu sei, queimam-se de olho a olho selvagem mas não se movem
mais altas que eu, mais soberanas, amarelas.
Escuto a travessia cantora dos rios no mundo
depois aparece a longa frase cheia de água.
Guio-me pelas luas no ar desfraldado e
grito de água para água levanto as armas
gritando
enquanto danço o algodão cresce fica maduro o tabaco.
Ninguém fez uma guerra maior. Corno chumbado em sangue e osso,
crânio com luz própria pousando na sua luz,
na pele
as pálpebras abrindo e fechando ^quem se exaltava
vestido com elas?
Meti na boca um punhado de diamantes — e
respirei com toda a força. E tremi ao ver como eu era inocente, assim
com dedos e língua calcinados; e
levando a mão à boca entoei a canção inteira das onomatopéias;
era a guerra. Como se caça uma fêmea com tanto sangue entre as ancas?
A ouro rude. Boca na boca
enchê-la de diamantes. Que fique a brilhar nos sítios
violentos. Doce, que seja doce, acre
mexida na sua curva de argila sombria andando coberta de olhos,
onça pintada no meio de flores que expiram.
Quem ergue o hemisfério a mãos ambas acima da testa?
quem morre porque a testa é negra?
quem entra pela porta com a testa saindo da fornalha?
O animal cerrado que se toca a medo:
o braço estremece, o coração estremece até à raiz do braço
entre carmesim e carmesim
bárbaro, estremecem
a memória e a sua palavra. Tocar na coluna
vertebral o continente todo
toda a pessoa — transformam-se numa imagem trabalhada a poder
de estrela. Quando se agarra numa ponta e a imagem
devora quem a agarra.
No chão o buraco da estrela —
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Entre temperatura e visão a frase africana com as colunas de ar
sorvedouros pedaços magnéticos de um lado para outro
e alguém que dança quase apenas um rosto martelado,
mãos negras. Eu disse: levo a máscara,
levo-a deste mundo.
Quem sabe se o mundo estremece pela força da máscara pequena.
Começa na ponta dos dedos com muito jeito assim
para estudar: será que tem fulcros insuportáveis
de potência
algo que de repente carbonize os dedos?
Se eu pegasse na cabeça, se eu
me encostasse à sombra dos galhos de marfim enquanto grito.
^Ouviria os leões a abrir as portas, sentiria o bafo
leonino,
a misteriosa vida leonina, de frente, batendo, leonina contra mim?
E o chifre pelo coração dentro.
Através desse marfim rasgando ficar maciço e maduro
do marfim fieira a fieira pelo coração e depois o grito.
Mãos arrumadas sustendo nos buracos a ferver
na volta dos braços a ferver:
o sangue
e então: como se transborda na frase! Rodam as atmosferas,
caem sobre o cabelo coruscante. Como se transborda
de coisa a coisa escrita africanamente!
paus negros enflorados a rosa, leões pelos corredores, vê-se a juba
ao dobrar a esquina do espelho,
a rapariga dança, potes monstruosos de barro ocre.
E então a luz revoluteada se alguém arranca uma banana do peso
cor do ouro; súbito: a ruptura da frase, membros
por toda a parte. Esta é a carne despedaçada, aqui.
Isto são as colunas de ar.
Levo a máscara, disse eu. Quando pus os dedos
na frase, a frase
sangrava. Tinha aquele lanho, alguém cosera tudo com agrafes de marfim
— palavras a marfim e sangue. Disse: levo-a comigo.
O continente arqueja pela espinha de ouro.
Talvez eu volte, quem sabe? talvez
eu ressuscite a frase ocre africana, quem sabe quantos nomes
faltam, volte
coroado, mãos negras com as iluminações girando, eu:
devagar a debruçar-me sobre a furiosa rede dos diamantes —
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5

São estes — leopardo e leão: carne turva e
atravessadamente
rítmica a sonhar nas noites de água aos buracos.
Montanhas das áfricas,
montanhas das árvores que sangram.
Há tanto ar rodeando as árvores nas montanhas: na sua
animalidade
dourada, leões e leopardos compactos aligeiram-se
com o ar onde crescem as montanhas. Carne
violenta, e amargo o sangue que lhes alimenta a elegância
— e então eles
aproximam-se, leves em seus arcos eléctricos,
ao canto e ao movimento dos dedos no giro de uma rosa.
Leopardos vivos debaixo das coroas, e os leões que alguém
soprou na boca. Como descem o ar
e a água das montanhas, como
se embrenham pelas árvores sangrando no escuro — e saem
ao reluzir dos dedos e aos cantos
roucos, nas áfricas. Penso
que os não posso aflorar — a descarga queimaria tudo:
mão, e aveia até à garganta e à mágica
das palavras unidas. Mas se viessem decifrar as chagas
das palmas viradas para a lua. E as coisas
mentais
da sua loucura negra se abalassem à corola doada nos dedos.
Se na volta das cabeças abertas entre os nervos de um brilhante
distinguissem a largura da minha noite,
e me enchessem do seu bafo,
e dançassem. O caos encontrava o equilíbrio
dos algarismos. Talvez cantassem, leão e leopardo
comigo: garras e unhas lunadas,
gargantas, as mesmas
pupilas bruscas, a mesma seiva, o mesmo furor
dourado na escuridão. Que sono é esse de onde saio quando os faço
morosamente sair
do sono? Fluxo que descerra o fluxo, rosto
que embranquece contra outros rostos lado a lado, com força, com
segredo. Como se a meia voz
se enaltecesse a floresta. As temperaturas difundem-se pelos feixes
das pedrarias secretas.
Porque é o mundo: vibra tendão a tendão na pedra
que se apanha, acordada na sua
seiva, pedra
de toque ao toque zoológico em tudo: ouro e mármore, o peso
da água sobre
a música. Que voz me dão as vozes? Que doçura ou inocência
ou arte
oculta manobra a minha vida por entre aquilo
que se transforma? E a traqueia, quem
a modula? A noite estremece nos centros de água. E o cristal das cabei
talhado a fio límpido
rasga a membrana: começa a ferver a luz como uma
coroação, a realeza
do poema animal —leopardo e leão. Oh,
cantam em música humana, eles, no trono
das montanhas das áfricas
redivivas —
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6

Os lugares uns nos outros — e se alguém está lá dentro com grandes
nós de carne:
por cima a cara. Ele disse: esperava que ficasse iluminada.
Queria pintar os anjos.
Levara algumas palavras altas, música.
Ninguém pinta os anjos mas uma força, as formas dessa força
por exemplo: sopram os átomos,
acende-se o cabelo, mãos faiscam: cada
coisa que tocam essa
coisa faísca. Eu precisava de silêncio, disse ele.
A maneira visitada de assim dormir com a noite,
territórios fechados da cabeça, os braços.
Escuta a música: riqueza, dor da memória, jubilação.
As palavras verde na sombra, entusiasmo do branco, ouro
dimanado — música música.
Pinta-se às vezes, sim, às vezes levita-se, outras alguém sussurra ao
ouvido.
De repente fica-se ofuscante.
Por mais janelas que se ponham nesses lugares opacos que nos deram
ninguém sabe.
Basta um nome aprendido a dormir, o movimento dos dedos
em redor do copo. Enche-se por si mesmo,
um copo: visão e mistério e idioma
imaculado. Foi para desentranhar da coisa mental que é a pintura:
os anjos. Que anjos?
Colinas chegam junto à cabeça, a cabeça fica, isto é:
girando do ombro esquerdo para o ombro direito,
a lua silvestre. Um anjo?
A morte tem uma doce habilidade doméstica:
abre e fecha as torneiras prepara a roupa limpa os espelhos.
Anjo.
Há dias tão difíceis que preciso do arco-íris, diz ele,
trato dos cortiços, as abelhas bruxuleiam no sono, fazem mel, o mel
alucina-me,
escurece-me.
À noite enche-me um gás rutilante, vou para os espelhos astrais,
os espelhos atravessam as minhas câmaras, ardo nas câmaras.
Brilhando, morro.
Poderia pintar os anjos brilhando.
Se ao dedo tirasse o anel, se ao cabelo cortasse a madeixa viva,
se vertesse no papel uma gota do meu sangue.
Trabalho no forno até ficar calcinado
louco
soberano como um negro com boca de ouro,
rodeado por uma tribo de anjos com boca de ouro.
Às vezes basta uma palavra: Deus.
E ouço a música, pinto o inferno.
E uma espécie de inocência ardente, um modo de ir para longe.
Sou elementar, anjos são os primeiros nomes.
Vim para debaixo dos holofotes, queria fulgurar da cabeça aos pés.
Que as abelhas amadurecessem nas campânulas.
Queria um espelho de um tamanho selvagem,
(jue o espelho se vergasse quando eu me abaixava para arrancar
linhas de diaman
era o fulcro, abraso
onde começo.
E então pintava o mundo com as linhas ferozes, paralelos, meridianos
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Entre porta e porta — a porta que abre à água e a porta aberta
aos roseirais coruscantes
que o ar sustenta: eu vejo
leões. Não são gárgulas: das bocas não jorra a claridade
lavrada. Divididos ao meio pelo
coração. Uns olham por uma porta, outros
olham o mundo por outra porta.
São como pais ou mães, ou são os filhos — crianças nuas: ou dormem
alto, bebem leite, comem carne, ou saem sob as luzes, ou
escutam as canções dificeis. Enquanto no bronze se quebra a linfa
macia. E então atravessam o mundo
entre porta e porta abrasada em arco vertiginoso.
E vêem tudo, e trazem a imagem
universal — e enquanto dormem aos meus pés, estremecem
de medo pelo excesso
da imagem. Um dia serão de pedra. Planto onde é manhã ainda a vara
violenta pela carne dentro
da terra. Essa matéria forte
que palpita com a corrente da seiva através
dos botões. Ardente das mãos
ao cerne, uma
criatura em sangue
e respiração planta-se punho e ponta vibrando. Alimenta-a
quem dorme cheio de imagens
vagarosas. Dança a toda a luz pela noite das ofertas, transforma-se:
leão, estrela, criança louca
à música. Roda em torno da estaca
nas casas de pedra,
estua na sua dança.
A água alaga o trabalho dos membros: como o ouro
espigando, como as agulhas de ouro que tilintam
na canção. O que faço com os dedos: um som
por cima do escuro — e faísca tudo:
zonas crispadas ligando-se uma a uma pelos ecos. E fora,
o sítio de coisas aos cometas, e os mortos
que estão coroados sempre. E o sítio dentro
vivo por si mesmo. Como
de repente em mim sazonam as rosas, como se muda
tudo em tudo: e
vida ou morte; o mundo ou a casa dos leões que rugem
quando vêem diamantes, ou dormem
com tanto peso.
Porque se há uma selva para bichos e paus encarnados de corolas,
se é fora ou dentro que se inunda o bronze, ou se
criança e vara se fundem fincadas até ao centro. Vozes
metem-se pelos tubos. E a pedra plantada crescendo a todo o mundo
ressoa — máquina
da música. Criança ou leão dançando de porta a porta. Unindo,
pelo nervo de imagem em imagem
em chaga, o ouro que espiga
nos mortos e o ouro
que espiga entre as garras. Quando alguém planta a pedra
é para que a pedra cresça. Que na traça das artérias a boca jorre,
desde o coração no meio,
a púrpura agreste. Palavra que empurra a cara
secreta para diante da palavra
como uma cara madura —
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A poesia também pode ser isso:
a dor com que não durmo lavrado completamente
íngremes laborações dos aerólitos — e então um pingo de ouro nos
recessos
do cérebro. Que fosse a aparição contínua. Pode ser o inventário do
sono pode
no casulo desdobrado quando a seda.
E a faixa ao pescoço a boca negra por cima: o canto
estrangula-me, canto jubilante, a noite
transforma-se. Estou às vezes nos quartos contíguos pelos canos:
gás, água
violenta. E os objectos ligados pelo coração à corrente eléctrica,
em cada um seu halo
prato garfo copo. Depois a corrente aumenta depois o coração aumenta
depois cada objecto aumenta abrasado: é um coração
apenas que
quando se tocam os perigos de morte. Garfo selvagem copo todo
iluminado.
Que se coma o idioma bárbaro, palpitação da lêveda
substância dos vocábulos:
no prato. Eu devoro. Às vezes electrocutado, uma ígnea linha escrita
para dizer o abastecimento de estrelas
em cal escaldando, da poesia.
Alguém sai para jardins miraculosos com o espelho
arqueado onde se apoiam as luzes magnificando
através. Aos pedaços faiscantes do ar chamam:
as imagens; ardem nos paus
de flora; visitam-nas besouros no meio de alimento
e morte. Oh, a poesia
brilhante se alguém acorda com a sua nuvem entre os braços com
os seus raios o soberano,
mas nenhum é mestre nenhum dos que têm o dom das madres
é mestre dos elementos — estivesse ele ainda em laço amargo,
quente laço, em umbigo ou placenta
ou sal, estivesse
filho intratável: nunca seria mestre. Ninguém sabe:
sono e vigília e dentro e fora e alto e baixo; magia é um arrepio
canibal, um canto. E o canto doma os animais, acorda
Eurídice pelo coração. Amor, abre-me os feixes na testa com as unhas rútilas, esse
equipamento feroz; munificia-me: eu sei eu
perdi-me entre a realeza dos mortos eu sei que levaram o, diz-se:
quotidiano
até ao
extraordinário: madres e os cordões irrigando os sacos.
Porque tudo é canto de louvor na vida
inspirada, tudo porque acaba na mesa: garfo e faca às faíscas
e a carne no prato. Devoro a minha língua; cintila ainda.
Lirismo antropofágico, visão, oh sucessivo.
A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavra
surpreendida para cada coisa: nobreza, um supremo
etc.
das vozes —
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Uma razão e as suas palavras, não sou leve não tenho
o dom de um paraíso de avenças rutilando
ao frio. Estou defronte na malha arterial da minha roupa rosto
dedada a dedada.
E o sangue nos alvéolos, unhas sexo pêlo.
Tenho dentes de mármore que crescem se falo ou cômo tenho os
dentes
arrefecidos à comemoração da água.
Tu és a mulher profundamente visitada. Dedo
contra dedo. Para que passe
o pneuma:
poder, inocência, morte.
Os sítios nunca param: fileiras de objectos astrais
uns acima dos outros.
Queria chamar a água intensa para cercar-te com uma faixa,
que te fizesses a ti mesma por essa intensidade da água.
Que Deus é súbito diante
quando é mamífera a criatura incandescente, quando é
sangrenta. Exemplo do mundo:
flauta tocada por quem sabe que génio de música.
Porque a razão é ter um galho nos dedos e que,
pelo calor dos dedos, o galho
floresça. Bater com ele no cabelo até ficar iluminado bater
na blusa para a brancura subir no torso:
desentranhar-te as reservas de aura.
E se o galho te roça pela cara, ver como se faz tão cara acima.
E que o espaço se torne visível à volta de galho e mão e cara
sobressaltada. Queria abrir-te a cabeça pela estria dulcíssima do sono
arrancar a estrela hídrica. Em carne
pensadora começar por garganta e língua a razão e as suas
palavras com os raios
em torno. Para que fiquem abertas as entradas: um
ao outro nos levávamos. Nadando nos espelhos sustendo
o fôlego unindo
pelas ramagens as cicatrizes do tórax.
E avançar fundidos num só corpo de canto.
Porque do ouro extraído às cavernas apuro um fio
fecho-te o rosto no fio puro.
Com uma trama pode urdir-se a máscara
moldar o tronco de duas pessoas numa estrela única
podem-se fazer com ouro do abismo
os membros que tem uma estrela para andar até à porta. Um nó de dois
laçado à mão, abrasadora.
Toda a enxameação de nadadores profundos
meu amor do reino animal amor
o inferno —
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Podem mexer dentro da cabeça com a música porque um acerbo
clamor porque
dão a volta ao lençol em sangue:
torcem-me. Mas
eu digo — amo-te para erguer de ti a tua música para
entoar-te. Beleza, a força, oh
a enflorada, a primitiva, chaga entre, risca
dolorosa, o cabelo.
E se passam pelos lados duas, arvoradas: uma
lua maior que o teu espelho outra
— clarão em que te queimavas selada viva, ó
pedraria.
De repente o superlativo, o visível pelas faúlhas porque:
eras a convidada do espaço, eras uma árvore
de pérolas se dormias. E eu vergastava-te:
branqueava o chão com tuas frutas pequenas, branqueava as mãos,
branqueava-me das mãos à voz para acordar de mim
a ti com torso
fundido. Torso e canto
armado. A oblíqua visita das coisas, aquela
murmuração de mundo quando se toca
com um braço a parte dos fogos, com o outro braço a parte
dos sopros que desarrumam a frase das coisas
e arrumam
coisa a coisa o estilo onde estás escrita.
Ouvir no escuro a entoação, ficar rodeada
por sangue e nome, pelo abalo
da pessoa que outra teia de sangue tece com seu fervor cantando.
O seu furor. O medo de que os dedos se não afinem na ferida do sono
mas se afundem pelas unhas
até à leveza. E a descerrem. E a desentranhem nas suas florações
vermelhas, nos orifícios de cal
que fervem. Onde há um empréstimo de luzes movo pelas redes
sombrias as respirações de um canto aluado a duas
vozes convulsas —
uma arrebatada aos precipícios e outra
nos quartos bruxuleando entre cadeira e mesa com a mão de ouro
calcinado em cima.
Lençol de sangue, diz. Diz: torcem-me. E eu aumento na operação
de sono e som em que ela
me transtorna. Pulmões aos nós, gangrenado na boca,
a têmpera do canto
macio. Tão caldeado o canto que nos transmuda em mundo
áureo —
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Doces criaturas de mãos levantadas, ferozes cabeleiras, centrifugas
pelos olhos para
se deslumbrarem com
a iluminação, entretecidas, membros
com membros, nos confins. Se lhes dão voz, se uma
fala nos círculos. “Mestres,”. Mas pode alguém ser mestre
aqui, de onde
se ofuscam, cândidos animais transmudando-se?
“Eu sou o manancial nos hortos inocentes.”
Nenhum mestre, porque se eles
se tocam
— um ao outro desabrocham: a pancada no amarelo
ou no branco enflora o mundo. “Mas eu não me conheço
sem a força que me passa, toda
em imagem
destravada ao jubileu das memórias; batem-lhe no rosto
os galhos de sal, e ele toca-me — e
abre — e
tranca. Tranca-me numa pedraria
vibrante. Para que eu me revele em mim. E me sele nas palavras com
veias.
Alvoroço a madeira sonora com a fria loucura da música.
As dedadas amasso o bloco a dois reluzindo pela cicatriz que o cose
do cóccix ao occípite. Chamo
até aos extremos do nome, ele é o nome nas respirações
cantadas. Mestres,”.
Os mestres viram como estremecera ao afundar-se na água
negra, quando ela
era água metida pela noite dentro. E viram-nos
depois sob as varas
salgadas: lavradas
armas que se encostam ao mundo,
altas armas abrasadas contra o mundo nocturno.
“Tornei mortal o cantor na sua cana cantora.
Deus olha-o na cara, e ele sonha-me; Deus enlaça-o, rutila; Deus
e os seus mamíferos, em mim, canto,
biografia rítmica. Mestres,”.
Que não há mestres, esses eram donos dos latifúndios bravios onde
se planta
o sal. Mas estes, no seu canto pequeno,
crispavam-se
entre braços e umbigos, entre sexos
e bocas. Tinham a sua coroa talhada na polpa
de um diamante. Uma coroa
cravada na carne da cabeça. Quem é o arco ou a flecha,
quem se retesa, quem
mata? Porque tanto a flauta como a sua melodia. Tanto
a mão como a sua escrita. Tanto uma
onda de escarlate
cruel
no espelho devassado para baixo e para cima. Arrebata-os
o demoníaco. São os indígenas do ouro.
Um é a cana, outro é o som.
O som destroça a cana.
“Mestres,”.
Cada um é a sua arma, cada um é o lanho da sua arma à altura
da garganta cortada. A voz
de um no outro, a entoação amarga —


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