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Trocando Olhares

1985

Florbela Espanca

Florbela Espanca

Florbela Espanca, batizada como Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, foi uma poetisa portuguesa.

1894-12-08 Vila Viçosa
1930-12-08 Matosinhos
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As Quadras D’Ele Iii

[1]
Há em tudo quanto fitas
Pureza igual à dos céus,
Até são belos meus olhos
Quando lá poisam os teus!

[2]
Que filtro embriagante
Me deste tu a beber?
Até me esqueço de mim
E não te posso esquecer!...

[3]
Está tudo quanto olho
Na ’scuridão mais intensa,
Faltou de teus olhos lindos
A luz profunda e imensa...

[4]
Viver sozinha no mundo
É a minha triste sorte.
Ai quem me dera trocá-la
Embora fosse p’la morte!

[5]
Teus lábios cor das papoilas,
Vermelhos como o carmim,
Não são lábios nem papoilas
São pedaços de cetim.

[6]
Quando um peito amargurado
Adora seja quem for,
Por muito infame que seja
Bendito seja esse amor!

[7]
Tenho por ti uma paixão
Tão forte e acrisolada,
Que até adoro a saudade
Quando por ti é causada.

[8]
Às vezes quando anoitece
Cai em meu peito tal mágoa!...
Quero cantar. E num instante
Sinto os olhos rasos d’água!

[9]
Quando me não quiseres mais
Mata-me por piedade!
Deixares-me a vida, sem ti
É bem maior crueldade!

[10]
Queria ser a erva humilde
Que pisasses algum dia,
Pra debaixo de teus pés
Morrer em doce agonia.

[11]
Há beijos na tua boca
Pode colhê-los quem quer.
Só eu não posso. Vê tu
Que desgraçada mulher!

[12]
Quem me dera um coração
Que por mim bata somente.
Dai-me essa esmola, Senhor,
Para que eu morra contente.

[13]
Há no fado das vielas
Notas tão sentimentais,
Tão delicadas, tão belas,
Que não s’esquecem jamais!

[14]
Andam teus olhos de luto;
Sempre eles de negro andaram,
Pelas feridas que fizeram
Pelas mortes que causaram.

[15]
Olhos negros, noite infinda
Sede meu norte, meu guia,
Ó noite escura e bendita
Sê o meu sol, o meu dia!

[16]
Gosto imenso dumas flores
Muito escuras, quase pretas,
Modestas, lindas graciosas
Que se chamam violetas.

Por isso quando eu morrer,
Em prova do teu amor
Inunda de violetas
O caixão aonde eu for.

[17]
Não sei que têm meus versos;
Alegres quero fazê-los
Mas ficam-me sempre tristes
Como a cor dos teus cabelos.
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Cemitérios

Cemitério da minha terra,
Paredes a branquejar;
Que bom será lá dormir
Um bom sonho sem sonhar!...

De manhã, muito cedinho
Dormir de leve, embalada
P’las canções das raparigas
Que gentis passam na ’strada.

Cantem mais devagarinho,
Mais baixinho, camponesas,
Que os vossos cantos pareçam
Tristes preces, doces rezas...

À noitinha, ao sol posto
Ouvindo as Ave-Marias!
Meu Deus, que suavidade!
Que paz de todos os dias!

Os murmúrios dos ciprestes
São doces canções aladas
Serenatas de paixão
Às almas enamoradas!

O luar imaculado
Em noites puras, serenas,
É um rio, que vai fazendo
Florir as açucenas...

Canta triste o rouxinol
Beijam-se lindos uns goivos,
E no fundo duma campa
Dormem felizes uns noivos...

Dum túmulo a outro se fala:
“Por que morreste tão nova?
Por que tão cedo vieste
Dormir numa fria cova?”

“Eu era infeliz na terra,
Ninguém me compreendia,
Quando a minh’alma chorava
Todos pensavam que eu ria...”

“E tu tão triste e tão linda,
Com olhos de quem chorou?”
“Eu tive um amor na vida
Que por outra me deixou!”

“E tu?” “Sozinha no mundo
Nunca tive o que outros têm:
Pai, mãe ou um namorado...
Morri por não ter ninguém!...”

Uma diz: “Chorava um filho
Que é uma dor sem piedade”,
Outra diz num vago enleio:
“Eu cá, morri de saudade!”

De todas as campas sai
Um choro que é um mistério
É então que os vivos sentem
As vozes do cemitério...

...Vão-se calando os soluços...
E as pobres mortas de dor
Vão dormindo, acalentando
Uns sonhos brancos d’amor...

Invejo estes doces sonhos
Neste terreno funéreo.
Ai quem me dera dormir
No meu lindo cemitério!
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Dantes...

Quando ia passear contigo ao campo,
Tu ias sempre a rir e a cantar;
E lembra-me até uma cotovia
Que um dia se calou pra te escutar,

Enquanto eu apanhava os malmequeres
Que nos cumprimentavam da estrada,
Que, depois esfolhavas, impiedoso,
Na eterna pergunta: muito ou nada?

Tu beijavas as f’ridas carminadas
Que, em meus dedos, faziam os espinhos
Das rosas que coravam, vergonhosas,
Zangadas, de nos ver assim sozinhos.

Fitávamos as nuvens do espaço.
Que imensas! Que bonitas e que estranhas!
E ficávamos horas a pensar
Se seriam castelos ou montanhas...

Que adoráveis canções de mimo e graça
Os teus lábios proferiam a cantar!
Tão mimosas, que as relvas da campina
Ficavam pensativas a sonhar...
As fontes murmuravam docemente,

Os teus beijos cantavam namorados,
Cintilavam as pedras do caminho,
Sorriam as flores pelos valados...

À hora sonhadora do poente
Tinham maiores palpitações os ninhos.
Lembras-te? Íamos lavar as mãos,
Vermelhas das amoras dos caminhos.

Eu brincava a correr atrás de ti;
Uma sombra perseguindo um clarão...
E no seio da noite, os nossos passos
Pareciam encher de sol a ’scuridão!

Olhando tanta estrela, tu dizias:
Olha a chuva de prata que nos cobre!
Depois, numa expressão amarga e branda
Recitavas, chorando, António Nobre!...

Eu tinha medo, um medo atroz infindo
De passear pelos campos a tal hora,
Mas, olhando os teus olhos cintilantes,
A noite semelhava uma aurora!

E já passaram esses áureos tempos,
E já fugiu a nossa mocidade!...
Mas quando penso nesses dias lindos,
Que tortura, minh’alma e que saudade!
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As Quadras D’Ele Ii

[1]
Digo para mim quando oiço
O teu lindo riso franco,
“São seus lábios espalhando,
As folhas dum lírio branco”.

[2]
Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, por que escondidas
Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?

[3]
Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.

[4]
Quando o olvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.

[5]
Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos,
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.

[6]
Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Benditos sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.

[7]
O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.

[8]
Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto.
Só falando, faz perder
Todo o juízo a um santo.

[9]
Enquanto eu longe de ti
Ando perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.

[10]
Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!

[11]
Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho;
Mas o ódio inda é maior
Que o doido amor que te tenho.

Odeio teu doce sorriso,
Odeio o teu lindo olhar,
E ainda mais a minh’alma
Por tanto e tanto te amar!

[12]
Quando o teu olhar infindo
Poisa no meu, quase a medo,
Temo que alguém adivinhe
O nosso casto segredo.

Logo minh’alma descansa;
Por saber que nunca alguém
Pode imaginar o fogo
Que o teu frio olhar contém.

[13]
Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.

[14]
Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o Outono,
Nos lábios a Primavera...

Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágoa
O teu misterioso olhar...

Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente...

Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!

[15]
Os teus dentes pequeninos
Na tua boca mimosa,
São pedacitos de neve
Dentro dum cálix de rosa.

[16]
O lindo azul do céu
E a amargura infinita
Casaram. Deles nasceu
A tua boca bendita!
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As Quadras D’Ele I

[1]
Andam sonhos cor do mar
Nas minhas quadras, imersos,
Se queres comigo sonhar,
Canta baixinho os meus versos.

[2]
Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos, alegrias.

Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras.

[3]
Se é um pecado sonhar
Tenho um pecado na vida,
Peço a Deus por tal pecado
A penitência merecida.

Quando o meu sonho morrer
(Que penitência tão dura!)
Vá encontrar em teu peito
Carinhosa sepultura.

[4]
Onde estás ó meu amor,
Que te não vejo apar’cer?
Para que quero eu os olhos
Se não servem pra te ver?

Que m’importa a luz suave
Dos olhos que o mundo tem?
Não posso ver os teus olhos
Não quero ver os de ninguém.

[5]
Tens um coração de pedra
Dentro dum peito de lama
Pois nem sabes distinguir
Quem te odeia ou quem te ama.

Por uma que te despreza,
Teu coração endoidece,
E a pobre que te quer bem
Só teus desprezos merece!

[6]
Desde que o meu bem partiu
Parecem outras as cousas;
Até as pedras da rua
Têm aspectos de lousas!

Quando por acaso as piso,
Perturba-me um tal mistério!...
Como se pisasse à noite
As pedras dum cemitério...

[7]
Teus olhos têm uma cor
Duma expressão tão divina,
Tão misteriosa, tão triste,
Como foi a minha sina.

É uma expressão de saudade
Vogando num mar incerto.
Parecem negros de longe,
Parecem azuis de perto.

Mas nem negros nem azuis
São teus olhos, meu amor,
Seriam da cor da mágoa
Se a mágoa tivesse cor!

[8]
Nem o perfume dos cravos,
Nem a cor das violetas,
Nem o brilho das estrelas,
Nem o sonhar dos poetas,

Pode igualar a beleza
Da primorosa flor,
Que abre na tua boca
O teu riso encantador.

[9]
Levanta os olhos do chão,
Olha de frente pra mim
Fingindo tanto desprezo,
Que podes ganhar assim?

Não andes tão distraído,
Contando as pedras da rua,
Não sei pra que finges tanto...
Tu és meu e eu sou tua...

Levanta os olhos do chão.
Que podes ganhar assim?
Se Deus nos fez um pro outro,
Para que foges de mim?!

[10]
Coveiros, sombrios, desgrenhados,
Fazei-me depressa a cova,
Quero enterrar minha dor
Quero enterrar-me assim nova.

Coveiros, só o corpo é novo,
Que há poucos anos nasceu;
Fazei-me depressa a cova
Que a minha alma morreu.

[11]
Amar a quem nos despreza
É sina que a gente tem;
Eu desprezo quem m’odeia
E adoro quem me quer bem.

[12]
Ai, tirem-me o coração
Que o tenho todo desfeito!
Cada pedaço um punhal
Que trago dentro do peito.

[13]
Eu quero viver contigo
Muito juntinhos os dois
O tempo que dura um beijo,
Embora eu morra depois.

[14]
Meu coração é ruína
Caindo todo a pedaços,
Oh, dai-lhe a hera piedosa
Bendita desses teus braços!

[15]
Quando fito o teu olhar
Tão frio e tão indiferente,
Fico a chorar um amor
Que o teu coração não sente.

[16]
O fado não é da terra,
O fado criou-o Deus,
O fado é andar doidinha
Perdida p’los olhos teus.

[17]
Esmaguei meu coração
Para o triste te esquecer,
Mas ao sentir os teus passos,
Põe-se a bater... a bater...

[18]
Andam pombas assustadas
No teu olhar, adejando,
Mal sentem os meus olhos,
Batem as asas, voando.

[19]
Há sonhos que ao enterrar-se,
Levam dentro do caixão,
Bocados da nossa alma,
Pedaços de coração!
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