Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
1902-10-31 Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil
1987-08-17 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Companheiro
No 80o aniversário de Pedro Nava
Esse mocinho Nava, tão levado,
que nos cafés-sentados deixa a marca
de desenhista baudelairiano
entre cruel e místico, requinte
à Whistler, à Beardsley, a ele mesmo,
em apagadiço mármore de instante,
e na minha aloucada companhia
noturna, entre magnólias de silêncio,
emudece douradas campainhas
de casas transplantadas de Ouro Preto,
onde castos jardins cercam as virgens
de religiosas essências nupciais,
ou vai trocando as coisas de lugar,
a placa do causídico eminente
levando para a porta do dentista,
e a do médico ilustre despejando
no barrento fluir do ribeirão
Arrudas! e mais feitos, não me lembra
(mentira: oh se me lembro e quanto
ao tilintar avaro de memórias
como se moedas fossem, por que não?);
esse Pedro abancado à triste banca
de emprego burocrático vigiado
por severo doutor nada poético:
fugindo à mornidão do expediente
para a aula de anatomia — grande aluno —
ou para o Rio de Janeiro a ver — rever —
imagens que ninguém como ele viu
de velhas ruas, morros e pessoas,
descobrindo, em estético relance,
o nariz grego, a máscara romana,
os retratos de Proust ou Van Leyden
implantados em medíocres semblantes;
esse Pedro que é dois, que é três, é cinco,
aplicado estudante, insano jovem,
esse Pedro quem é? Quem o descobre
completo
lúdico
sério
imprevisível?
senão ele mesmo um dia vai mostrar-se
no desdobrado amor da medicina,
Pedro enrustido no primeiro Pedro
que belo-horizontinamente se aprestava
para o serviço do sofrimento humano
pela manhã — e à noite se entregava
aos anárquicos, doidos exercícios
de nossa boemia antimineira
e tão mineira, sim! em seu desgarre
de sufocadas, montanhosas forças
em luta desigual com o inamovível
senso grave dos queijos e da ordem?
Esse Pedro,
penso às vezes que fui seu lado esquerdo
em tão saudosos, hoje, magros tempos
de busca, de revolta, de amarugem,
de desvairado humor sem rumo certo,
a desviá-lo do seu bom caminho…
Alguns meses mais velho, e má presença
de subversivo incompetente e aéreo,
sem rabo de diabo mas diabólico,
era eu, talvez, seu anjo de desguarda?
Ele se ri de minha culpa, assume-a,
e seguimos os dois, jogando pedras
(oitent’anos vividos, revividos,
transvividos no açúcar da saudade),
e seguimos e estacamos e fugimos
incendiando (ou quase) residências,
no estrelado silêncio de magnólias
ou de damas-da-noite (tanto faz),
pavor de velhos, beijo de meninas,
assunto de censória indignação,
arremetendo
contra o inimigo burguês que nos despreza…
Esse Nava, querido companheiro.
Esse mocinho Nava, tão levado,
que nos cafés-sentados deixa a marca
de desenhista baudelairiano
entre cruel e místico, requinte
à Whistler, à Beardsley, a ele mesmo,
em apagadiço mármore de instante,
e na minha aloucada companhia
noturna, entre magnólias de silêncio,
emudece douradas campainhas
de casas transplantadas de Ouro Preto,
onde castos jardins cercam as virgens
de religiosas essências nupciais,
ou vai trocando as coisas de lugar,
a placa do causídico eminente
levando para a porta do dentista,
e a do médico ilustre despejando
no barrento fluir do ribeirão
Arrudas! e mais feitos, não me lembra
(mentira: oh se me lembro e quanto
ao tilintar avaro de memórias
como se moedas fossem, por que não?);
esse Pedro abancado à triste banca
de emprego burocrático vigiado
por severo doutor nada poético:
fugindo à mornidão do expediente
para a aula de anatomia — grande aluno —
ou para o Rio de Janeiro a ver — rever —
imagens que ninguém como ele viu
de velhas ruas, morros e pessoas,
descobrindo, em estético relance,
o nariz grego, a máscara romana,
os retratos de Proust ou Van Leyden
implantados em medíocres semblantes;
esse Pedro que é dois, que é três, é cinco,
aplicado estudante, insano jovem,
esse Pedro quem é? Quem o descobre
completo
lúdico
sério
imprevisível?
senão ele mesmo um dia vai mostrar-se
no desdobrado amor da medicina,
Pedro enrustido no primeiro Pedro
que belo-horizontinamente se aprestava
para o serviço do sofrimento humano
pela manhã — e à noite se entregava
aos anárquicos, doidos exercícios
de nossa boemia antimineira
e tão mineira, sim! em seu desgarre
de sufocadas, montanhosas forças
em luta desigual com o inamovível
senso grave dos queijos e da ordem?
Esse Pedro,
penso às vezes que fui seu lado esquerdo
em tão saudosos, hoje, magros tempos
de busca, de revolta, de amarugem,
de desvairado humor sem rumo certo,
a desviá-lo do seu bom caminho…
Alguns meses mais velho, e má presença
de subversivo incompetente e aéreo,
sem rabo de diabo mas diabólico,
era eu, talvez, seu anjo de desguarda?
Ele se ri de minha culpa, assume-a,
e seguimos os dois, jogando pedras
(oitent’anos vividos, revividos,
transvividos no açúcar da saudade),
e seguimos e estacamos e fugimos
incendiando (ou quase) residências,
no estrelado silêncio de magnólias
ou de damas-da-noite (tanto faz),
pavor de velhos, beijo de meninas,
assunto de censória indignação,
arremetendo
contra o inimigo burguês que nos despreza…
Esse Nava, querido companheiro.
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