AurelioAquino

AurelioAquino

Deixo-me estar nos verbos que consinto, os que me inventam, os que sempre sinto.

1952-01-29 Parahyba
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Dissertação adjetiva do Sanhauá

nem por essa lassidão

que lhe devora o jeito e a forma

possa o Sanhauá desmerecer-se

de eventuais revoltas

que por ser assim pacato

enlaçando em vão a Felipéia

penda do seu ombro o gosto exato

das maravilhas de que pode a terra 
nem por essa lama avara

que lhe rega o dorso impunemente 
percam seus habitantes mais chegados 
a condição informe de presentes

que por ser assim anônimo

na revolução de suas águas

seja um sintoma tão premente

de mascarar de paz a mágoa

nem por ser regaço de Felipéia

no gesto inato de serpente 
encontre-se o mais rápido relance

de figura incompetente

que por ser assim tão plácido

no seu ofício dormente

não saiba dizer em suas águas

o gosto de sangue tão latente

nem por ter da terra a intimidade

e a consistência incauta de um grito 
saiba engolir as contradições

sem a justeza efêmera dos dissídios 
nem por ser tal condutor

de homens quase líquidos

deixe de reconhecer a lágrima

que escorre do vão do seu umbigo
 
que sabendo-se estrada 
de tanger a solidão 
invente pela memória 
um punhado de razão
 
porque rio, saiba constante 
que o baldio homem que leva

é muito mais uma distância 
que trafegar ninguém se atreve
 
nem por estar pejado 
do mais fundo sacrifício
possa não cogitar da fartura 
em que às vezes se acredita 
 
nem por ser das estrelas 
um espelho avariado

não saiba trazer nas rugas 
toda sua intimidade 
pois de tão material

lhe venha a ser conteúdo 
a estrela mais fugaz

que desabita seu futuro 
 
nem por ser do universo

uma corrente sem volta

não saiba descabelar-se a tempo 
nas lembranças que lhe tocam
 
correndo de si próprio

em maratona tão já gasta

o Sanhauá bebe a miséria

dos homens que lhe acatam 
desce no frêmito mais lânguido 
ordenhado em mãos tão avaras 
que esquece que às vezes é rio 
onde deságuam várias almas

e se nunca rompe o equilíbrio 
entre a geografia e a sua calma 
quem lhe cavalgará o dorso 
com a presteza de astronauta? 
nem por escorrer freqüente 
não tenha lapsos de memória 
quem distribuiu Felipéia

no peso de suas costas? 
 
da maciez da lama

se tire a paciência

nos caranguejos enrolados

nos cachos da consciência

e da assembléia das águas

que filtram toda manhã

o sol nunca desconfie

de que trava uma luta vã

pois por mais vapor que construa 
nas suas lanhadas costas

ele sempre volta rio

em águas que ninguém nota

e quando se alça bruto

no estômago das nuvens

ele leva além de vapor

os sonhos de quem se urge 
 
da condição humana

o Sanhauá não cogita

por que levar tanto sangue 
num feixe magro de tripas? 
antes rio gordo dessa lama 
queira-se mais comedido

pois por ser rio não lhe cobram 
sonhar mais do que é preciso. 
 
ao beber o Sanhauá

em geral não se pressente 
o gosto rico dos homens

e a dúvida de seus viventes
 
no suicídio reconhece 
uma lúdica insistência

de deixar de ser homem 
de matéria incompetente 
pra travestir-se de rio

nos sonhos-lama da gente 
não tem a filosofia 
dos suicídios mais compostos 
pois a pose é sempre a lama 
e como rio não lhe importa

a pouquidão dessas vidas 
e a certidão de qualquer norma
 
de ser cúmplice da fome

o Sanhauá se redime

nos quilos magros de peixe 
que os homens lhe retirem

e não tem a desfaçatez

das promessas mais nervosas 
pois tem de si a compreensão 
de um rio sem tantas forças
 
nem por ser interlocutor 
das fomes mais atrevidas 
deixe de engordurar-se

dos caranguejos da vida 
que em sendo forasteiros 
das águas que lhe socorrem 
possam ditar o exercício 
da crueza da revolta.

 
o Sanhauá e a inquirição da vida 
 
que tal Martim Leitão 
senhor assim da matéria 
ousou limitar o rio

na corda de muitas regras?
 quem supôs o artifício 
de decretar Felipéia

e trazer pras suas costas
o peso de muitas guerras? 
quem compôs tal partitura 
que na cabeça do futuro 
faria o Sanhauá ter homens 
pendidos de tantos muros? 
que tão Martim Leitão
forasteiro da competência 
ousou distribuir nestas terras 
os palmos de sua crença? 
quem forjou a brutalidade

de romper teu equilíbrio

e navegar tuas águas 
com a intimidade do cio?

quem ausentou do teu corpo

a carne de Piragibe

e que nunca mais a carne

no teu ofício reteve?

quem lançou sobre ti

essa algema virtual

como se não tivesses da ponte

a desnecessidade de tal?

quem comprimiu o leito

de propriedade indisfarçável

e quis esmagar teu peito

com a selvageria das traves?

quem duvidou da conseqüência

do teu ofício informe

de levar a água pro mar

misturada aos sonhos de quem não pode? 
 
que tal Martim Leitão
 amigo já de Piragibe 
matriculou Felipéia

no dorso de tua crise? 
quem te pôs acorrentado 
entre cimento e miséria 
pra iludir tuas águas 
na mágoa intensa da guerra? 
quem te forjou novo ofício 
de amarga competência

de engolir tantos homens 
esquecidos da consciência? 
quem te pôs assim restrito 
numa forma tão imensa 
e atravessou o infinito

nos palmos de tua ausência? 
quem te fez tão urbano

num foro tão agrário

quem nem soletras nas águas

a parcimônia do cansaço?

quem te fez transeunte

de uma vida regulada

em que poucos tem muito

e quase todos quase nem alma? 
quem te fez tão concreto

nessa pátria movediça

e te engravidou dessa lama
de eficácia tão triste?

quem te usou como rio 
explorando teus viventes

pra navegar no teu lombo

um magote de presenças? 
quem te pôs sem vela

num mar tão incontido

e acorrentou tuas águas

aos pés desses edifícios?

quem te ousou sadio

nessa sala tão doente

que não perceba que o sonho

é quase sempre da gente? 
quem te armou as costelas

de pedras e penas e gritos
e construiu na tua boca
palavras sem sentifo?
 
 
De Piragibe tirante a mágoa
 
corre o ano 85

de 1500 - vasta espera 
escondendo agosto na barriga 
cinco dias e outras léguas
 
quem é esse ouvidor

que Martim Leitão se engalana

como se o nome fosse patente

que pusesse medo em quem chama?
 
quem é esse ouvidor

que assim fustiga a consciência 
e que se crê marido da terra

e quer lhe por em moenda?
 
quem é esse ouvidor

que de Olinda assim desfeito 
trunca uma vontade inteira 
na franja inata do peito?
 
quem é esse ouvidor

que dos passos não se afasta 
e que palmilha sua distância 
numa parca matemática? 
 
corre o ano 85

de 1500 - quanta guerra 
cinco dias de um tão agosto 
muito chão e et ceteras 
 
quem são esses indivíduos 
parentes em vão da terra 
que espelham suas rugas 
nas rugas que já não levam? 
 
quem são esses forasteiros
que revéis da cidadania
cosem a vida com o barro 
sem lhe cobrar serventia?
 
quem são esses tabajaras
que nus da própria existência 
teimam em deitar com a vida 
nos cabides da paciência?
 
quem são esses tabajaras 
que tecem com todo alinho 
uma vida que mais medra 
com a insistência do espinho?
 
quem são esses tabajaras 
que mercê do seu aprumo 
deitam com a liberdade
na cama quase sem rumo?
 
 corre o ano 85

de 1500 - magra era 
engolido agosto já tanto 
cinco dias, muitas trevas
 
quem é esse Piragibe

que sentado no seu sorriso 
inventa a simplicidade

com a mesma força do rio?
 
quem é esse Piragibe 
que presidente das horas 
decreta o fim do dia

pela espinha da história?
 
quem é esse Piragibe

que à paz se tem afeito

e que arquiva guerras no tempo 
como as tristezas no peito?
corre o ano 85

de 1500 - nave exausta 
construído assim agosto 
em 5 dias de pauta
 
quem é essa Felipéia

das neves de tal senhora 
que cresta ao sol desse rio 
como um infante tão breve?
 
quem é essa Felipéia 
tão íntima da natureza

e que se forja com barro 
de tão estranha certeza?
 
quem é essa Felipéia

que tão dolente nem nota 
que já pertence a senhorio 
de quem nunca foi devota?
 
quem é essa Felipéia

que rebento assim de repente 
como aceiro de si mesma

se quer coisa de gente?
 
quem é essa Felipéia

que do futuro nem sabe 
dos quilos de tanta fome 
que vão encher sua face?
 
quem é essa Felipéia

que alheia a seu batismo 
perdeu-se de boca em boca 
e nas voltas do seu umbigo?
 
quem é essa Felipéia 
que da postura se cante
como uma rede ancorada 
nas paredes do horizonte? 
há de essa criança

de gente e barro urdida 
abraçar-se com o presente 
com o futuro na barriga
 
há de essa demarche

ser mais longa e prometida

que os anéis que pendem do dedo 
do ouvidor de Olinda

há de essa cidade

que agora se amamenta

criar com leite das pedras

as maltrapilhas presenças
 
há de essa estrada

ser feita em grave ofício

e que o destino lhe cubra os anos 
com a displicência de um íntimo 
 
há de essa morada 
trazer para o leito do rio

a tez macia do açúcar

e um gosto de pau-brasil 
 
 corre o ano 85

de 1500 restrito

agosto amanhã sem jeito 
5 dias comprimidos
 
em que cartório e recinto

sua posse foi lavrada

pra que dispusessem de si 
como as carnes de uma vaca?
 
quem foi tal tabelião

que em exercício truncado 
registrou que sua pele 
podia fazer-se mercado?
 
quem foi que dilacerou

a sua estada de virgem

e que a querem tão mundana 
nas carnes que ainda exibe?
 
quem foi que desabrochou 
numa tarefa fugaz

seu ventre de muitas coisas 
pra coisas que vendem mais? 
 
diz que em 85

de 1500 o tempo

agosto quis por inteiro

há cinco dias no ventre 
desfazer-se de um terreiro 
que lhe jazia urgente

e inventou Felipéia

na vida desses viventes
e assentaram como assim 
no cartório dessa gente 
que a cinco de agosto 
Felipéia era presente
 
do braço do Sanhauá

como um músculo saltimbanco 
Felipéia saltou na vida

com a presteza de um pranto
 
e desse abraço infinito 
que o rio sempre lhe dá 
molhou-se seu lábio verde 
da incoerência do mar
 
que por ser só atlântico 
não se acha tão disposto 
a abraçar Felipéia

na proporção do seu gosto
 
antes se quisesse mais rio
 de compleição menos lata
 pra abraçar Felipéia

com a prontidão de um gato
 
mas mesmo com parcimônia 
nesse exercício de andante 
esquece um gosto de África 
no ombro grave do mangue
 
e o Sanhauá com ciúmes

no leme já de si mesmo 
ostenta um ranço da história 
pelo desvão de seus dedos
 
quem foi esse ouvidor

que não previu tal desatino 
romper o verdor da terra 
com o equilíbrio do rio?
 
quem foi esse tal Martim 
que se inventou do nada 
e fez xixi nessa praça

no meio dos tabajaras?
 
esse xixi de ouvidor

tem utilidade bastante

pra te construir novo corte 
te dar um novo horizonte
 
e Felipéia alastrou
-se 
como canavial conseqüente

que mastigasse a moenda

na verdura de seus dentes

e pronto veio o costume

de ter retrato mais conforme

aos tijolos mais impingidos

que a mão do homem lhe adorna
 
e de ser mais urbana
lhe veio a vã teimosia

de lutar contra os viventes 
que no seu peito se aninham
 
veio-lhe a solicitude

da concreta solidão

de tijolos alinhados

à custa de exploração

assim cresceu a ganância 
de ser tão decomposta 
lavrada num suor mais forte 
que o rio que lhe comporta
 
e aprendeu nessa lida

que na vida a que se apresta 
é preciso ser menos um

e ser muitos et ceteras.

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