EMILY CAMARGO DO NASCIMENTO

EMILY CAMARGO DO NASCIMENTO

Fã de Edgar Allan Poe, escrevo contos de amor e suspense.

1998-05-19
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Obscurus

Balde de água Fria

Cheguei adiantado, Trabalho como colunista geral do Jornal New Age, de Calgary. E como Colunista geral eles querem dizer que sou piadista geral. Escrevo as mais diversas matérias relacionadas com qualquer coisa que seja no mínimo desinteressante. Sonho em um dia ser um grande jornalista atrás de matérias extraordinárias, mas isso, é só um sonho.

Como dizia, entrei adiantado e fui direto para a cozinha buscar meu Elixir negro da Produtividade, que os leigos costumam chamar de café. A primeira pessoa que eu converso no dia é a Dorothy, minha colega de Trabalho. Sempre chamei ela de Dory, como o peixe de Procurando Nemo, porque ela vive esquecendo as coisas. Ela é quem ilustra minhas matérias sensacionais. A Dorothy não é do tipo garota modelo, mas é naturalmente bonita, tem a pele cor de canela e longos cabelos claros ondulados, seus olhos parecem duas grandes amêndoas.

Como de costume entrei na cozinha e procurei pela minha caneca da sorte, na verdade era só uma caneca que meu pai me deu de natal, mas era especial para mim. Lavei a caneca com cuidado enquanto reparava na imensa carranca que a Dory estava fazendo. Ela estava encostada na bancada e batia o dedo indicador na superfície como quem está se segurando por alguma coisa.

Curioso e pronto para provoca-la eu sorrateiramente me esgueirei para perto dela e como quem não se importava fui em direção a cafeteira e retirei o jarro do suporte. Ela soltou o ar com força para chamar a atenção. Escorei na bancada contraria a que ela estava e fingi estar apenas relaxando e olhando para o nada. Dory cruzou os braços e ficou me encarando.

-Vai ficar aí só olhando? Não vai perguntar nada?

Eu ri por dentro. Sempre funcionava.

-Oi Dory, Tudo bem?

-Não! Nada está bem! Você por um acaso sabe o que o Austin pediu para a gente escrever sobre?

-Basicamente, sou eu quem escrevo. Mas não, não sei nada ainda. O que vem agora?

Ela serrou os olhos por conta do meu comentário.

-Me poupe. -Houve uma breve pausa- Ele quer que NÓS escrevamos uma Matéria sobre o John Louco da rua 15!

Ela disse a palavra "nós" gritando por provocação.

Fiquei alguns segundos tentando processar o que Dory estava me falando. John Louco Na verdade Era John Smith, um homem de cerca de 40 anos que há algum tempo havia perdido a sanidade por conta de um acidente de carro. Hoje em dia só fala palavras soltas e sem sentido de um mundo que só ele vê. Coisas como: sem corpo. Fundo escuro. Essas coisas bizarras que faz todo mundo se afastar.

-Não. -foi a única palavra que consegui dizer. -

-Sim! É o que ele me disse agora a pouco. - Retrucou Dory parecendo extremamente irritada.-

Eles acham que somos o que? Piadistas? Coluna de humor? Eu não aceito isso, não aceito!

- Eu acho que... - engoli em seco. - Talvez precisemos só de tempo para se acostumar com a ideia.

Dorothy fez uma careta incrédula e de supetão batendo a porta, saiu da cozinha. Sem dizer mais nada.

Respirei fundo tentando processar a patética ideia de entrevistar um senhor psicologicamente doente e fazer disso uma matéria de jornal. Quase que missão impossível eu pensei. Tomei goladas apertadas de café enquanto olhava para a pequena janela da cozinha. O vento estava soprando forte de novo e mesmo estando aquecido eu podia sentir o frio cortante chegar. Imaginei quem seria eu, se as coisas me fossem diferentes, Se meu coração e meus músculos funcionassem da forma correta. Decidi não pensar.

Abri a porta e caminhei sonolento em direção a minha mesa. A minha e a da Dory ficavam lado a lado e ela já estava lá digitando o que quer que seja sem nem olhar para o lado. Eu estava quase sentando, colocando a caneca sobre a mesa quando ouvi o Grito do Austin. Austin era o nosso superior imediato que vivia nos enlouquecendo com suas besteiras. Ele era muito alto para um homem normal, cabelo grisalho e um tremendo barrigão redondo que lembrava uma melancia.

- Nolan! Já soube das Novidades? Quero a descrição da entrevista com o Senhor Smith na minha mesa amanhã de manhã para revisão. Me traga um bom conteúdo garoto, se esforce.

-Senhor Smith? ah sim senhor. - Quando você coloca apelido nas pessoas o nome delas nunca mais soa familiar, para mim o senhor Smith era John Louco da rua 15. Demorei assimilar.

-Sim, John Smith garoto, vamos! Está dormindo ainda?!

Mentalmente sim. Pensei.

-Não senhor, estará pronto amanhã de manhã.

- Certo.

Enquanto voltava a me acomodar na cadeira ainda meio tremulo e nervoso pela conversa gritante com Austin, Dory já não digitava mais e me olhava fixamente com um ar de deboche no rosto.

- Acostume-se com essa ideia. - Disse ela, e depois voltou a digitar -.

Eu levei minhas mãos até a cabeça, estava preocupado. Que tipo de conteúdo eu traria? Eu precisava muito daquele emprego e como é que eu iria proceder tirando conteúdo interessante da mente de um homem louco. Era frustrante pensar que estava estudando tanto para ser alguém tão (...)

-Nolan!

Dory me retirou de meus pensamentos.

Balancei a cabeça em sinal de resposta.

-Vamos, temos que chegar cedo se quisermos tentar tirar algo dele.

Ela colocou a mão sobre o meu ombro em sinal de consolo, já não estava mais zangada.

- Vai dar certo Ok?

Dei um sorriso forçado.

- OK.


John Smith

Apanhamos tudo que acreditamos que iriamos precisar e colocamos dentro da van da empresa. Era uma van velha, mas bem conservada. Eu estava caindo de tanto sono, entrei no carro sentei e joguei as chaves para Dory.

-Hoje é com você.

Ela me fez uma cara de malicia digna de Velozes e Furiosos, e eu cheguei a pensar de verdade que ela ia arrancar em alta velocidade. Mas não o fez, ela caiu na gargalhada e saiu a trinta km/h uma vez que a van não era nada rápida. Me senti um imbecil completo e me deixei rir com ela.

Ficamos na estrada por cerca de uma hora até finalmente chegarmos a rua onde morava nosso ilustre entrevistado. Eu estava cansado e com muita fome, mas devíamos começar a buscar algum conteúdo o quanto antes.

Atravessamos a rua 15 atentos à procura do número 956 que era o endereço que constava nos registros da prefeitura. Chegamos a uma imensa casa de madeira antiga. Deus do céu aquilo causava arrepios na espinha. Era como entrar em outro universo, a rua era linda, casas coloridas e jardins joviais. E como em um clichê de filmes de horror, lá estava a amedrontadora casa velha de madeira.

Aquilo em si já era conteúdo. Decidimos então perguntar aos vizinhos mais próximos o porquê daquela casa ser tão desproporcional ao lugar, e saber mais sobre o nosso amigo John Louco.

Batemos na porta ao lado e uma simpática senhora já por volta dos seus 70 anos nos atendeu com um sorriso caloroso. Ela vestia roupas simples e muito coloridas, o seu semblante me trazia aconchego, por um momento me lembrei da minha avozinha e senti saudades. Dory a cumprimentou estendendo a mão.

- Bom dia Senhora ...

- Meredith. -Ela disse sorridente-

- Bom dia Senhora Meredith, Eu sou a Dorothy e esse é o Nolan, nós somos do jornal New Age e gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas se nos permitir.

- Do jornal!? -ela disse empolgada passando as mãos nos curtos cabelos grisalhos- É claro minha filha, finalmente vou ficar famosa.

Ela deu risada e fez sinal para que entrássemos. Sua casa era igualmente acolhedora, com aroma de lavanda e moveis rústicos, eu me sentia em paz ali, era um ambiente extremamente aconchegante. Nos sentamos no sofá da sala que ficava apenas a alguns passos da porta, era um sofá marrom aveludado muito bem limpo, enfeitado com almofadas coloridas com imagens de filhotes. Comecei perguntando de sua vida, para não assusta-la logo de cara.

- Então Senhora Meredith ...

- Oh não meu caro. Pode me chamar só de Meredith, mesmo.

- Tudo bem. Então Senh ... Meredith, Você nasceu aqui mesmo em Calgary?

-Não, não. Eu vim de Vancouver, meus pais não acreditavam eu um futuro lá, então decidiram se mudar, cheguei aqui quando eu era muito pequenina. Diziam que queriam tentar algo diferente.

- Com o que eles trabalhavam?

- Meu pai era Barbeiro, Minha mãe costureira. Não vivíamos no luxo, mas dava pra sobreviver sabe? Ganhavam pouco e eu tinha mais quatro irmãos menores, muitas bocas para alimentar.

- O importante é a união, certo? A senhora não estaria aqui se não fosse por todo esse sacrifício não é mesmo?

-É verdade filho, essa é uma verdade muito grande da vida.

- Então, faz muito tempo que a senhora está aqui? Digo, nesta casa?

Ela me olhou profundamente por alguns segundos, como se vasculhasse cada intenção minha, minha garganta ficou seca, os velhos olhos azuis apagados me lembravam o mar em dia de tempestade, e eu estava me afogando.

Ela então desviou o olhar, olhou para baixo, como se calculasse o que iria dizer.

- Apenas há quarenta e cinco anos, filho. -Ela deu um sorriso curto de canto de boca, como quem força uma piada.-

-Uau! Isso é bastante tempo. Os vizinhos aqui se mudam muito?

Estava começando a suar, isso é incomum, eu já fiz isso milhões de vezes, não conseguia compreender porque me senti tão nervoso.

- Na verdade não, creio que a maioria deles, assim como eu está aqui há muito tempo.

Ela falava sobre o tempo com tanta tristeza, quase não parecia a senhora sorridente de minutos atrás.

-E o seu vizinho ao lado, o Senhor Smith. A senhora o conhece bem?

-Perdão querido, quem?

-O Senhor John Smith, que mora ao lado, casa de madeira.

-Desculpe, eu acho que não conheço esse homem, filho.

Olhei rapidamente para Dory e ela estava bufando um pouco, havia se frustrado com a nossa falha na comunicação, e decidiu ajudar. Ela parou de desenhar, o que quer que ela estava desenhando e dirigiu-se a senhora:

-Ele ta falando do John Louco, Dona Meredith!

Eu fiquei estupefato, a boca entre aberta em indignação. Não podemos falar de entrevistados dessa forma!! Droga Dory eu vou te esganar. Pensei.

-Aaaaah sim. -Meredith respondeu, dando uma gargalhada-. Conheço ele, Mudou-se a uns anos, a casa já era assim mesmo. Mas eu não gosto de falar dele.

O humor dela mudou da agua pro vinho, de uma gargalhada para um semblante preocupado, quase aterrorizado.

- Receio que tenham que ir, crianças.

- Na verdade a senhora poderia dizer se ele faz algo incomum, ou talv....

Ela cortou minha fala com a mão em sinal de pare. Pigarreou e disse de forma lenta, controlando-se.

-Eu Receio. Que tenham. Mesmo. Que ir.

Ela nos acompanhou até a porta Apressadamente e a única coisa que disse antes de bate-la na nossa cara foi: Até breve.

Eu olhei para Dory com meu olhar mais mortal.

-O que foi? -Ela disse em tom adolescente-.

- E você ainda pergunta? Droga Dory, não podemos chamar as pessoas desse jeito, temos de ser educados. No mínimo Profissionais.

Ela fez cara de deboche e ficou alguns segundos gaguejando até finalmente falar.

-Não senhor, ela até riu, foi você que forçou a barra cedo demais. Poderíamos ter conseguido muito mais informações importantes.

Soltei o ar violentamente e chacoalhei os braços.

-Não importa muito agora. Vamos ter que enfrentar a Fera com o que temos.

Atravessamos de um quintal pro outro, era como trocar de universo, da alegria, para a tristeza. Minhas mãos suavam, eu senti que não estava passando muito bem, o frio era cortante e minha testa começava a encharcar. Caminhamos a passos cautelosos até a porta principal da casa do "Senhor Smith", a porta era grande, de madeira antiga, um pouco apodrecida por conta da exposição ao tempo. Tocamos a campainha.

O Som ecoou longe como se lá dentro houvesse apenas um imenso salão vazio, como se não existissem moveis ou barreiras para conter o som. Passos pesados e apressados começaram a ecoar dentro da casa, e em poucos segundos a porta estava se abrindo.

O rosto de um homem negro empalidecido surgiu no vão da porta entreaberta, seus olhos eram brancos, sem vida e suas roupas estavam muito sujas. Ele nos olhou de cima a baixo e então vociferou como um animal raivoso.

-Eu não vou comprar nada! Não! Nada!

Eu já não estava me sentindo bem e aqueles berros insanos me deixaram além de tudo arrepiado. Dory que estava mais confortável tentou argumentar com o senhor, que mal parecia saber se estávamos realmente ali. De vez em quando ele olhava realmente pra gente, mas na maioria das vezes ele parecia não estar dentro do próprio corpo.

-(...)Como eu disse, somos do jornal. O senhor poderia por favor nos conceder uma entrevista? -Argumentou Dory-.

-Posso.

Ele havia voltado a si. Graças a Deus. Minha pele estava salva, eu teria algo para mostrar ao Austin e manteria meu emprego maravilhoso.

Entramos receosos, a casa era uma bagunça total, mal iluminada e pilhas e mais pilhas de roupas e sujeira esparramadas para todo lado. Eu juro que vi um rato correr do meu lado logo que a porta abriu completamente.

-Podem sentar naquele negócio ali. - Ele disse apontando o dedo para um velho sofá rasgado no canto do cômodo-.

-O sofá? -Perguntou Dory para se certificar-.

-Isso, Sofá. Sofá. SOFÁÁÁÁ! -Disse ele surpreso-

As coisas já não estavam começando muito bem. Eu e a Dory nos entreolhamos e parecia que nos lamentávamos juntos por termos escolhido esse emprego.

Estávamos arrumando as coisas para entrevista e eu resolvi começar a quebrar o gelo com o nosso doido amigo nos apresentando primeiramente.

-Olá senhor Smith. Meu nome é Nolan Lackolzzi vou escrever tudo o que falar, e essa é minha parceira Dorothy Montgomery ela vai ilustrar e fotografar a nossa entrevista, ok?

Ele me olhou estranho, a princípio acreditei que ele estava apenas agindo em seu estranho habitual. Mas aquilo estava diferente, ele não parecia realmente estar bem, parecia estar lutando com algo na própria cabeça, apertava-a tão forte que eu achei que ele mesmo iria esmaga-la. Os olhos apagados começaram a revirar e ele chacoalhava o corpo constantemente. Eu fiquei assustado. Queria correr dali. Me levantei depressa. Precisava de ar. Aquilo não parava. Ele chacoalhava a cabeça e gritava o próprio nome.

Quando estava próximo a porta, olhei novamente para traz e então ouvi a voz dele mudar, quer dizer. A voz que vinha dele. Era grave e duplicada e me chamou pelo nome.

-NOLAN.

Eu tremi, os olhos moribundos daquele homem se tornaram negros, orbitas de escuridão. Eu senti meu corpo amolecer. Ouvi um sussurro: Nigro amictu Dicere salve adventum clementer resalutatis eis, qui corde non videat creatura invisibilis in conspectu eius.

Apaguei.



Acordei confuso, tudo ao meu redor girava. A luz estava forte demais e eu não podia enxergar com clareza. Esfreguei os olhos e tentei foca-los, ouvi barulho de maquinas e vi algumas agulhas, inclusive uma delas estava cravada no meu braço. Eu estou no hospital? Senti alguém tocar minha mão, olhei para o lado e lá estava a Dory, olhando pra mim com seus olhos de avelã cheios de água:

- Oi Dory! Lindo dia, não?

Ela deu risada secando as lagrimas e me deu um tapinha no braço.

- Seu idiota, nunca mais me faça uma coisa dessas entendeu, nunca!

Me esforcei pra levantar um pouco, minha cabeça estava girando ainda e meu corpo pareceu pesado. Com algum custo consegui me colocar sentado na cama, enquanto tentava ajustar as ideias.

- O que aconteceu?

Dory me olhou com olhar de choro novamente, parecia assustada.

- Nós estávamos arrumando as coisas aí você começou falar e aquele homem começou berrar coisas estranhas eu não sabia o que fazer e, aí cadê o número da ambulância? Eu devia arrumar a bolsa, a van não andava rápido, o que eu podia fazer? ...

Ela estava falando muito rápido e chorando, eu não estava entendendo bulhufas.

-Dory, espera. Calma, respira.

Ela respirou profundamente, fechou os olhos e começou de novo.

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