EMILY CAMARGO DO NASCIMENTO

EMILY CAMARGO DO NASCIMENTO

Fã de Edgar Allan Poe, escrevo contos de amor e suspense.

1998-05-19
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Alguns Poemas

Obscurus

Balde de água Fria

Cheguei adiantado, Trabalho como colunista geral do Jornal New Age, de Calgary. E como Colunista geral eles querem dizer que sou piadista geral. Escrevo as mais diversas matérias relacionadas com qualquer coisa que seja no mínimo desinteressante. Sonho em um dia ser um grande jornalista atrás de matérias extraordinárias, mas isso, é só um sonho.

Como dizia, entrei adiantado e fui direto para a cozinha buscar meu Elixir negro da Produtividade, que os leigos costumam chamar de café. A primeira pessoa que eu converso no dia é a Dorothy, minha colega de Trabalho. Sempre chamei ela de Dory, como o peixe de Procurando Nemo, porque ela vive esquecendo as coisas. Ela é quem ilustra minhas matérias sensacionais. A Dorothy não é do tipo garota modelo, mas é naturalmente bonita, tem a pele cor de canela e longos cabelos claros ondulados, seus olhos parecem duas grandes amêndoas.

Como de costume entrei na cozinha e procurei pela minha caneca da sorte, na verdade era só uma caneca que meu pai me deu de natal, mas era especial para mim. Lavei a caneca com cuidado enquanto reparava na imensa carranca que a Dory estava fazendo. Ela estava encostada na bancada e batia o dedo indicador na superfície como quem está se segurando por alguma coisa.

Curioso e pronto para provoca-la eu sorrateiramente me esgueirei para perto dela e como quem não se importava fui em direção a cafeteira e retirei o jarro do suporte. Ela soltou o ar com força para chamar a atenção. Escorei na bancada contraria a que ela estava e fingi estar apenas relaxando e olhando para o nada. Dory cruzou os braços e ficou me encarando.

-Vai ficar aí só olhando? Não vai perguntar nada?

Eu ri por dentro. Sempre funcionava.

-Oi Dory, Tudo bem?

-Não! Nada está bem! Você por um acaso sabe o que o Austin pediu para a gente escrever sobre?

-Basicamente, sou eu quem escrevo. Mas não, não sei nada ainda. O que vem agora?

Ela serrou os olhos por conta do meu comentário.

-Me poupe. -Houve uma breve pausa- Ele quer que NÓS escrevamos uma Matéria sobre o John Louco da rua 15!

Ela disse a palavra "nós" gritando por provocação.

Fiquei alguns segundos tentando processar o que Dory estava me falando. John Louco Na verdade Era John Smith, um homem de cerca de 40 anos que há algum tempo havia perdido a sanidade por conta de um acidente de carro. Hoje em dia só fala palavras soltas e sem sentido de um mundo que só ele vê. Coisas como: sem corpo. Fundo escuro. Essas coisas bizarras que faz todo mundo se afastar.

-Não. -foi a única palavra que consegui dizer. -

-Sim! É o que ele me disse agora a pouco. - Retrucou Dory parecendo extremamente irritada.-

Eles acham que somos o que? Piadistas? Coluna de humor? Eu não aceito isso, não aceito!

- Eu acho que... - engoli em seco. - Talvez precisemos só de tempo para se acostumar com a ideia.

Dorothy fez uma careta incrédula e de supetão batendo a porta, saiu da cozinha. Sem dizer mais nada.

Respirei fundo tentando processar a patética ideia de entrevistar um senhor psicologicamente doente e fazer disso uma matéria de jornal. Quase que missão impossível eu pensei. Tomei goladas apertadas de café enquanto olhava para a pequena janela da cozinha. O vento estava soprando forte de novo e mesmo estando aquecido eu podia sentir o frio cortante chegar. Imaginei quem seria eu, se as coisas me fossem diferentes, Se meu coração e meus músculos funcionassem da forma correta. Decidi não pensar.

Abri a porta e caminhei sonolento em direção a minha mesa. A minha e a da Dory ficavam lado a lado e ela já estava lá digitando o que quer que seja sem nem olhar para o lado. Eu estava quase sentando, colocando a caneca sobre a mesa quando ouvi o Grito do Austin. Austin era o nosso superior imediato que vivia nos enlouquecendo com suas besteiras. Ele era muito alto para um homem normal, cabelo grisalho e um tremendo barrigão redondo que lembrava uma melancia.

- Nolan! Já soube das Novidades? Quero a descrição da entrevista com o Senhor Smith na minha mesa amanhã de manhã para revisão. Me traga um bom conteúdo garoto, se esforce.

-Senhor Smith? ah sim senhor. - Quando você coloca apelido nas pessoas o nome delas nunca mais soa familiar, para mim o senhor Smith era John Louco da rua 15. Demorei assimilar.

-Sim, John Smith garoto, vamos! Está dormindo ainda?!

Mentalmente sim. Pensei.

-Não senhor, estará pronto amanhã de manhã.

- Certo.

Enquanto voltava a me acomodar na cadeira ainda meio tremulo e nervoso pela conversa gritante com Austin, Dory já não digitava mais e me olhava fixamente com um ar de deboche no rosto.

- Acostume-se com essa ideia. - Disse ela, e depois voltou a digitar -.

Eu levei minhas mãos até a cabeça, estava preocupado. Que tipo de conteúdo eu traria? Eu precisava muito daquele emprego e como é que eu iria proceder tirando conteúdo interessante da mente de um homem louco. Era frustrante pensar que estava estudando tanto para ser alguém tão (...)

-Nolan!

Dory me retirou de meus pensamentos.

Balancei a cabeça em sinal de resposta.

-Vamos, temos que chegar cedo se quisermos tentar tirar algo dele.

Ela colocou a mão sobre o meu ombro em sinal de consolo, já não estava mais zangada.

- Vai dar certo Ok?

Dei um sorriso forçado.

- OK.


John Smith

Apanhamos tudo que acreditamos que iriamos precisar e colocamos dentro da van da empresa. Era uma van velha, mas bem conservada. Eu estava caindo de tanto sono, entrei no carro sentei e joguei as chaves para Dory.

-Hoje é com você.

Ela me fez uma cara de malicia digna de Velozes e Furiosos, e eu cheguei a pensar de verdade que ela ia arrancar em alta velocidade. Mas não o fez, ela caiu na gargalhada e saiu a trinta km/h uma vez que a van não era nada rápida. Me senti um imbecil completo e me deixei rir com ela.

Ficamos na estrada por cerca de uma hora até finalmente chegarmos a rua onde morava nosso ilustre entrevistado. Eu estava cansado e com muita fome, mas devíamos começar a buscar algum conteúdo o quanto antes.

Atravessamos a rua 15 atentos à procura do número 956 que era o endereço que constava nos registros da prefeitura. Chegamos a uma imensa casa de madeira antiga. Deus do céu aquilo causava arrepios na espinha. Era como entrar em outro universo, a rua era linda, casas coloridas e jardins joviais. E como em um clichê de filmes de horror, lá estava a amedrontadora casa velha de madeira.

Aquilo em si já era conteúdo. Decidimos então perguntar aos vizinhos mais próximos o porquê daquela casa ser tão desproporcional ao lugar, e saber mais sobre o nosso amigo John Louco.

Batemos na porta ao lado e uma simpática senhora já por volta dos seus 70 anos nos atendeu com um sorriso caloroso. Ela vestia roupas simples e muito coloridas, o seu semblante me trazia aconchego, por um momento me lembrei da minha avozinha e senti saudades. Dory a cumprimentou estendendo a mão.

- Bom dia Senhora ...

- Meredith. -Ela disse sorridente-

- Bom dia Senhora Meredith, Eu sou a Dorothy e esse é o Nolan, nós somos do jornal New Age e gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas se nos permitir.

- Do jornal!? -ela disse empolgada passando as mãos nos curtos cabelos grisalhos- É claro minha filha, finalmente vou ficar famosa.

Ela deu risada e fez sinal para que entrássemos. Sua casa era igualmente acolhedora, com aroma de lavanda e moveis rústicos, eu me sentia em paz ali, era um ambiente extremamente aconchegante. Nos sentamos no sofá da sala que ficava apenas a alguns passos da porta, era um sofá marrom aveludado muito bem limpo, enfeitado com almofadas coloridas com imagens de filhotes. Comecei perguntando de sua vida, para não assusta-la logo de cara.

- Então Senhora Meredith ...

- Oh não meu caro. Pode me chamar só de Meredith, mesmo.

- Tudo bem. Então Senh ... Meredith, Você nasceu aqui mesmo em Calgary?

-Não, não. Eu vim de Vancouver, meus pais não acreditavam eu um futuro lá, então decidiram se mudar, cheguei aqui quando eu era muito pequenina. Diziam que queriam tentar algo diferente.

- Com o que eles trabalhavam?

- Meu pai era Barbeiro, Minha mãe costureira. Não vivíamos no luxo, mas dava pra sobreviver sabe? Ganhavam pouco e eu tinha mais quatro irmãos menores, muitas bocas para alimentar.

- O importante é a união, certo? A senhora não estaria aqui se não fosse por todo esse sacrifício não é mesmo?

-É verdade filho, essa é uma verdade muito grande da vida.

- Então, faz muito tempo que a senhora está aqui? Digo, nesta casa?

Ela me olhou profundamente por alguns segundos, como se vasculhasse cada intenção minha, minha garganta ficou seca, os velhos olhos azuis apagados me lembravam o mar em dia de tempestade, e eu estava me afogando.

Ela então desviou o olhar, olhou para baixo, como se calculasse o que iria dizer.

- Apenas há quarenta e cinco anos, filho. -Ela deu um sorriso curto de canto de boca, como quem força uma piada.-

-Uau! Isso é bastante tempo. Os vizinhos aqui se mudam muito?

Estava começando a suar, isso é incomum, eu já fiz isso milhões de vezes, não conseguia compreender porque me senti tão nervoso.

- Na verdade não, creio que a maioria deles, assim como eu está aqui há muito tempo.

Ela falava sobre o tempo com tanta tristeza, quase não parecia a senhora sorridente de minutos atrás.

-E o seu vizinho ao lado, o Senhor Smith. A senhora o conhece bem?

-Perdão querido, quem?

-O Senhor John Smith, que mora ao lado, casa de madeira.

-Desculpe, eu acho que não conheço esse homem, filho.

Olhei rapidamente para Dory e ela estava bufando um pouco, havia se frustrado com a nossa falha na comunicação, e decidiu ajudar. Ela parou de desenhar, o que quer que ela estava desenhando e dirigiu-se a senhora:

-Ele ta falando do John Louco, Dona Meredith!

Eu fiquei estupefato, a boca entre aberta em indignação. Não podemos falar de entrevistados dessa forma!! Droga Dory eu vou te esganar. Pensei.

-Aaaaah sim. -Meredith respondeu, dando uma gargalhada-. Conheço ele, Mudou-se a uns anos, a casa já era assim mesmo. Mas eu não gosto de falar dele.

O humor dela mudou da agua pro vinho, de uma gargalhada para um semblante preocupado, quase aterrorizado.

- Receio que tenham que ir, crianças.

- Na verdade a senhora poderia dizer se ele faz algo incomum, ou talv....

Ela cortou minha fala com a mão em sinal de pare. Pigarreou e disse de forma lenta, controlando-se.

-Eu Receio. Que tenham. Mesmo. Que ir.

Ela nos acompanhou até a porta Apressadamente e a única coisa que disse antes de bate-la na nossa cara foi: Até breve.

Eu olhei para Dory com meu olhar mais mortal.

-O que foi? -Ela disse em tom adolescente-.

- E você ainda pergunta? Droga Dory, não podemos chamar as pessoas desse jeito, temos de ser educados. No mínimo Profissionais.

Ela fez cara de deboche e ficou alguns segundos gaguejando até finalmente falar.

-Não senhor, ela até riu, foi você que forçou a barra cedo demais. Poderíamos ter conseguido muito mais informações importantes.

Soltei o ar violentamente e chacoalhei os braços.

-Não importa muito agora. Vamos ter que enfrentar a Fera com o que temos.

Atravessamos de um quintal pro outro, era como trocar de universo, da alegria, para a tristeza. Minhas mãos suavam, eu senti que não estava passando muito bem, o frio era cortante e minha testa começava a encharcar. Caminhamos a passos cautelosos até a porta principal da casa do "Senhor Smith", a porta era grande, de madeira antiga, um pouco apodrecida por conta da exposição ao tempo. Tocamos a campainha.

O Som ecoou longe como se lá dentro houvesse apenas um imenso salão vazio, como se não existissem moveis ou barreiras para conter o som. Passos pesados e apressados começaram a ecoar dentro da casa, e em poucos segundos a porta estava se abrindo.

O rosto de um homem negro empalidecido surgiu no vão da porta entreaberta, seus olhos eram brancos, sem vida e suas roupas estavam muito sujas. Ele nos olhou de cima a baixo e então vociferou como um animal raivoso.

-Eu não vou comprar nada! Não! Nada!

Eu já não estava me sentindo bem e aqueles berros insanos me deixaram além de tudo arrepiado. Dory que estava mais confortável tentou argumentar com o senhor, que mal parecia saber se estávamos realmente ali. De vez em quando ele olhava realmente pra gente, mas na maioria das vezes ele parecia não estar dentro do próprio corpo.

-(...)Como eu disse, somos do jornal. O senhor poderia por favor nos conceder uma entrevista? -Argumentou Dory-.

-Posso.

Ele havia voltado a si. Graças a Deus. Minha pele estava salva, eu teria algo para mostrar ao Austin e manteria meu emprego maravilhoso.

Entramos receosos, a casa era uma bagunça total, mal iluminada e pilhas e mais pilhas de roupas e sujeira esparramadas para todo lado. Eu juro que vi um rato correr do meu lado logo que a porta abriu completamente.

-Podem sentar naquele negócio ali. - Ele disse apontando o dedo para um velho sofá rasgado no canto do cômodo-.

-O sofá? -Perguntou Dory para se certificar-.

-Isso, Sofá. Sofá. SOFÁÁÁÁ! -Disse ele surpreso-

As coisas já não estavam começando muito bem. Eu e a Dory nos entreolhamos e parecia que nos lamentávamos juntos por termos escolhido esse emprego.

Estávamos arrumando as coisas para entrevista e eu resolvi começar a quebrar o gelo com o nosso doido amigo nos apresentando primeiramente.

-Olá senhor Smith. Meu nome é Nolan Lackolzzi vou escrever tudo o que falar, e essa é minha parceira Dorothy Montgomery ela vai ilustrar e fotografar a nossa entrevista, ok?

Ele me olhou estranho, a princípio acreditei que ele estava apenas agindo em seu estranho habitual. Mas aquilo estava diferente, ele não parecia realmente estar bem, parecia estar lutando com algo na própria cabeça, apertava-a tão forte que eu achei que ele mesmo iria esmaga-la. Os olhos apagados começaram a revirar e ele chacoalhava o corpo constantemente. Eu fiquei assustado. Queria correr dali. Me levantei depressa. Precisava de ar. Aquilo não parava. Ele chacoalhava a cabeça e gritava o próprio nome.

Quando estava próximo a porta, olhei novamente para traz e então ouvi a voz dele mudar, quer dizer. A voz que vinha dele. Era grave e duplicada e me chamou pelo nome.

-NOLAN.

Eu tremi, os olhos moribundos daquele homem se tornaram negros, orbitas de escuridão. Eu senti meu corpo amolecer. Ouvi um sussurro: Nigro amictu Dicere salve adventum clementer resalutatis eis, qui corde non videat creatura invisibilis in conspectu eius.

Apaguei.



Acordei confuso, tudo ao meu redor girava. A luz estava forte demais e eu não podia enxergar com clareza. Esfreguei os olhos e tentei foca-los, ouvi barulho de maquinas e vi algumas agulhas, inclusive uma delas estava cravada no meu braço. Eu estou no hospital? Senti alguém tocar minha mão, olhei para o lado e lá estava a Dory, olhando pra mim com seus olhos de avelã cheios de água:

- Oi Dory! Lindo dia, não?

Ela deu risada secando as lagrimas e me deu um tapinha no braço.

- Seu idiota, nunca mais me faça uma coisa dessas entendeu, nunca!

Me esforcei pra levantar um pouco, minha cabeça estava girando ainda e meu corpo pareceu pesado. Com algum custo consegui me colocar sentado na cama, enquanto tentava ajustar as ideias.

- O que aconteceu?

Dory me olhou com olhar de choro novamente, parecia assustada.

- Nós estávamos arrumando as coisas aí você começou falar e aquele homem começou berrar coisas estranhas eu não sabia o que fazer e, aí cadê o número da ambulância? Eu devia arrumar a bolsa, a van não andava rápido, o que eu podia fazer? ...

Ela estava falando muito rápido e chorando, eu não estava entendendo bulhufas.

-Dory, espera. Calma, respira.

Ela respirou profundamente, fechou os olhos e começou de novo.

Chamas do sonho

Prólogo:

O ar era pesado, me sentia cansada e ofegante. A paisagem era cruelmente cinza e amarela, completamente sem vida, apocalíptica. Atrás de mim dez pequeninos tão perdidos quanto eu, lutavam bravamente a batalha da vida, ansiavam por mais um dia, mais uma refeição. O sol era escaldante por isso tínhamos que nos enrolar em trapos para não queimar a pele. A maioria dos pequenos não se lembrava de como era a vida antes daquilo. Antes do sol começar a explodir.

Sete anos atrás uma explosão solar havia lançado uma quantidade extrema de radiação UV nos planetas mais próximos de sua órbita. Mercúrio fora engolido pelas chamas. Vênus agora ardia com uma grande massa quente, e a terra, nossa querida e viva terra, assava lentamente. A maioria dos seres morreu, principalmente os senhores do planeta, os seres humanos. Restavam poucos guerreiros como eu e minhas crianças que ainda pelejavam no ambiente mais hostil.

Os grandes senhores, ricos e poderosos do mundo, migraram em naves particulares rumo ao satélite Europa de Júpiter, seu objetivo era reiniciar a vida colonizando a distante lua. Eu tinha pena dos futuros Europeios que seriam gerados em ventres corruptos e gananciosos. Fomos deixados para morrer.

Há dias não tínhamos comida, e a pouca agua era racionada para que todos bebessem igualmente, estávamos cansados, procurávamos por um abrigo vazio dentro de grutas e cavernas. Apesar de parecer simples encontrar cavernas vazias, naquele momento era a tarefa mais complicada, uma vez que elas, principalmente as profundas e subterrâneas serviam como fortes bloqueadores de radiação e poderiam ser capazes de conter água em abundância.

Semanas atrás nossa caverna havia sido tomada por uma tribo de homens robustos, não pudemos lutar e fomos despejados à nossa própria sorte. Pode parecer brutal expulsar mulheres e crianças de seu abrigo, mas não em dias como este, nestas situações, a única coisa que importa é a própria sobrevivência.

Ouvi um barulho seco. Olhei para trás e vi o garotinho Enzo esparramado no chão de areia a alguns metros de distância de onde eu estava, ao lado dele estava Manuel, um dos meus garotos mais velhos gritando e fazendo sinal para que eu fosse até ele.

-Rose! Rose! Ajuda aqui, por favor! Ajuda!

Eu corri em direção à ele, meus pés espalhando areia para todo lado, meu coração acelerado, minhas mãos estavam tremulas. Cheguei bem pertinho dele e vi o quanto ele estava magro, seu corpo continha algumas feridas de excesso de exposição ao sol, não muito diferente do resto de nós. Meus olhos lacrimejavam, Manuel gritava. Ele não parecia respirar, comecei a tremer ainda mais. Resolvi checar o pulso.
Logo atras dos meninos vi quando Fernando veio correndo em nossa direção.
Fernando é formado em medicina e lecionava na universidade de Crane no passado. Hoje ele é um protetor para todos nós, e nos acompanha desde quando isso tudo começou.



O Escolhido.

Caminhando a passos lentos, voltando do trabalho muito mais tarde do que eu queria, senti a garganta arranhar, estava muito frio e eu parecia que adoeceria muito em breve. "Mais essa agora!" Pensei. Como se já não bastasse as pilhas de relatorios para revisar inadiavelmente, eu ficaria doente e dolorido. Meus resfriados sempre eram fortes e me deixam muito mal.

As ruas da minha cidade são muito escuras e eu ando sempre a pé. Meu dinheiro é curto e eu tenho que sustentar a mim e ao meu filho, o Felipe. Felipe tem só cinco anos e sente muito a falta da mãe. Minha querida e amada Julia, que Deus a tenha.

Chegando perto de casa eu sempre vejo a luzinha da Tv ligada da janela, já passam das nove e meia da noite e Felipe sabe que já devia estar dormindo. A babá só fica até as oito então ele aproveita pra fazer suas travessuras quando ela sai. Sempre que ele ouve o barulho do velho portão de metal rangir eu vejo a luzinha da TV apagar, e como num passe de magica, quando eu entro em casa ele deita na cama e finge estar dormindo.

Menino travesso,o meu, mas eu prefiro que seja assim, pelo menos não é uma criança triste.

Esta noite em especial eu cheguei e o Felipe não fingiu dormir, ao invez disso ele desligou a TV e me esperou na porta. Parecia chateado.

- Papai! Eu fiquei com medo.

Ele abraçou minhas pernas com força e pareceu choramingar.

Meu coração estava partido, o que tinha feito meu garotinho levado chorar?

Eu acariciei seus cabelos escuros e me pareceram suados e oleosos. Afastei-o devagar e com delicadeza e me agachei para nivelar a altura.

-Do que você teve medo filho? Aconteceu alguma coisa?

Ele esfregou os olhinhos molhados e avermelhados de sono. Seus olhos eram verdes, iguais os da Julia, lembrava muito a mãe.

-A Bárbara, foi embora muito cedo, eu não gosto de ficar sozinho aqui.

Eu fiquei confuso, Bárbara era a babá, sempre foi muito confiável, e ela sempre me avisava quando tinha de sair antes do horário, não me lembrava dela ter dito nada a mim hoje.

-Como assim filho? A Bárbara sempre sai ás oito, quando a lua começa a aparecer lembra? E minutinhos depois o papai chega, só hoje que eu me atrasei um pouquinho.

-Sim Papai! Mas hoje ela saiu quando ainda tinha sol, fiquei muito tempo sozinho, você não chegava nunca mais, achei que você tivesse ido embora.

Felipinho desabou a chorar, e aquilo deixou meu coração em frangalhos, ao mesmo tempo que me deixou enfurecido. Como a Bárbara pode fazer isso sem avisar, deixar meu pequeno sozinho sem mais nem menos.A que horas ela saiu?

-Filho, calma, você já tomou banho?

-Não. Ela saiu sem me dar banho.

Ela sempre da banho no Felipe por volta das seis, antes de ele fazer a lição, jantar e ir pra cama, se ela saiu sem dar banho nele, significava que ela havia saído no meio da tarde. Eu fiquei extremamente zangado. Respirei fundo, não podia transparecer minha fúria a uma criança.

-Vamos para o banheiro, papai vai te dar banho e aí a gente vai dormir, ta bom?

- Ta bom, mas eu posso dormir com você hoje pai? Só hoje!

Tinha um nó na minha garganta. Engoli meu choro.

-Pode sim meu anjo.

Dei um banho no Felipe, ele estava bem sujinho, talvez de tanto brincar, ele pareceu mais alegre naquela hora, fazia muito tempo que eu não dava banho nele e ele gargalhava fazendo espuma pra todo lado. Coloquei ele na cama e acho que não demorou nem cinco minutos para que ele pegasse no sono, o pobrezinho parecia exausto.

Deitei na cama ao lado dele, mas não podia dormir, não sem uma explicação, Levantei e sai do quarto silenciosamente, encostei a porta.

Fui até a cozinha e peguei meu celular. Liguei pra Bárbara. Ela atendeu ao terceiro toque.

-Alô.

-Alô, Bárbara, aqui é o Gregório.

-Ah, seu Gregório, oi.

-Bárbara, o Felipe me disse que você saiu mais cedo hoje, o que foi isso? Aconteceu alguma coisa? Não me lembro de você ter dito nada.

-Não. É que na verdade eu não vou mais.

-Como assim não vem mais? E o nosso contrato? O que aconteceu?

-Eu não posso é que .... Não consigo, não da.

- Como assim? Por que não?

-Essas pessoas estranhas paradas aí na frente da casa o dia todo, é perturbador, eu não posso com isso, to muito apavorada e .... Não vou, não mesmo.

Eu não conseguia processar o que ela estava falando, não estava entendendo bulhufas.

- Que pessoas, menina? Não tem ninguem aqui, do que você ta falando?

- Desculpa, seu Gregório, me desculpa mesmo, manda o Beijo pro Felipinho, fala que eu adoro ele tá?

- O que? Não, espera, como assim?

Ela desligou.

Que porra Bárbara!

Joguei o celular no chão. Estava desamparado. E agora o que eu iria fazer? Ela esteve cuidando do Felipinho por dois anos, como eu iria achar uma substituta tão em cima da hora?

Sentei na cadeira e dei uma respirada. Pequei meu notebook e mandei um e-mail pro meu chefe, não poderia ir trabalhar no dia seguinte, ficaria cuidando do meu filho.

As palavras dela não me saiam da cabeça. De que pessoas ela estava falando?

Levantei e fui até a janela da cozinha, abri só uma pequena fenda da cortina, do outro lado da rua quatro figuras encapuzadas estavam paradas olhando pra casa, quando me perceberam espiar, acenaram pra mim.


Acordei meio suado, parecia já ser tarde, só me lembrava de ter ido me deitar ao lado do meu filho, eu estava apavorado e me perguntando quem seriam aquelas pessoas estranhas em frente à minha casa. Esfreguei os olhos tentando despertar, rolei para o lado e a cama meio bagunçada estava vazia. O Felipe não estava ali.

Levantei de supetão, estava tremendo, não sei se de frio ou de nervoso. Talvez fosse os dois. Procurei no banheiro, nada. Chamei meu filho e não houve resposta.

Estava atordoado, meu deus, meu filho. Fui correndo até a varanda dos fundos e vi o Bolinha, nosso cachorro comendo um pedaço enorme de carne. Estranhei aquilo, eu não havia dado nada a ele, tinha acabado de acordar. Não dei muita importância, precisava achar meu filho.

Corri para a sala, estava vazia, da forma que estava na noite anterior. Estava ofegante, parecia que eu ia desmaiar quando ouvi um barulho de talher na cozinha.

Corri até lá desesperado, entrei pela porta escorregando no piso por causa das meias, e vi meu filho, sentado à mesa, que estava farta, cheia de frutas e doces caseiros. Foi um alivio enorme, tão grande que minhas pernas amoleceram, soltei todo o ar dos pulmões.

-Filho! Não ouviu o papai te chamar?

Ele com toda a sua tranquilidade de criança, balançando as perninhas na cadeira terminou de mastigar uma colherada de cereal com fruta.

-Não ouvi papai, desculpe.

Eu não sabia o que dizer, estava ficando paranoico, dei um beijo na testa dele e fui pegar uma xícara de café, estava aliviado. Enchi uma xícara bem cheia de café e me escorei no balcão, fui dar um gole e me virei para mesa e só então me dei conta. Quem havia preparado aquilo tudo?

Meus olhos arregalaram, meu coração palpitou, me senti tremer novamente, coloquei de vagar a xícara em cima do bancão e vagarosamente me aproximei do Felipe, meu corpo em choque tentando entender, olhei para ele e perguntei pausadamente, engolindo em seco.

-Felipe.

-hum?

-Quem preparou isso tudo pra você?

Ele me olhou confuso.

-Você?

Eu esfreguei a mão na testa, não estava conseguindo conter meu nervosismo.

-Não filho, o pai tava dormindo.

Ele fez uma expressão pensativa, entendo que pra ele deveria estar ainda mais difícil de compreender.

-humm, a Bárbara?

Ele estava tentando adivinhar.

-Não querido, a Bárbara não veio hoje. Você viu alguém aqui hoje cedo? Quero dizer, fazendo alguma coisa?

-Não. Já tava aqui. Ah! Você deixou a porta aberta ontem pai. tava tudo frio aqui.

Eu senti tontura, parecia que eu ia enfartar. "não eu não deixei". Pensei. Me apoiei na mesa para me manter de pé.

-Sim, claro, me esqueci, Obrigado.

Fui até a porta da frente, andando meio duro, parecia um robô inexpressivo, em choque. Olhei para fora com medo do que eu veria, mas para minha surpresa não havia nada estranho, aquelas pessoas da noite passada não estavam mais lá, olhei para a rua cima a baixo, procurando nem eu sei o que, e não vi absolutamente nada fora do normal. Quando já estava quase fechando a porta vi no chão um papel meio amassado, resolvi desamassar para ver o que tinha ali, e para meu espanto, desenhado à lápis havia um símbolo estranho, um pentágono com uma estrela de seis pontas no meio, e quatro assustadores olhos desenhados no centro da estrela, havia também outro pedaço de papel colado no canto da folha com o carimbo de um ponto de interrogação.

O que essas aberrações estavam querendo me dizer? Eu estava surtando, guardei o papel no bolso do pijama, dei mais uma olhada para fora e fechei a porta. Tranquei.


Coloquei um agasalho no Felipe e me aprontei para pegar o ônibus rumo a biblioteca municipal, eu vou scannear essa porcaria e fazer uma busca na internet para ver se eu acho alguma coisa que faça sentido, se eu tiver sorte pode ser que seja alguma piada de mal gosto que se tornou viral.

Estávamos aguardando no ponto quando eu vejo de longe um golzinho velho vermelho se aproximando e parando bem perto de nós, a janela do carro se abriu devagar e fazendo um rangido estranho.

-Falaa Greg!

Era o Barba, meu amigo do trabalho, o apelido dele é esse por causa da barba comprida que ele mantem e cuida igual cabelo de mulher. A maioria do pessoal até já esqueceu o nome dele de verdade, eu mesmo que o conheço desde que entramos juntos na empresa me esqueço as vezes, O nome dele é Jurandir, então Barba, pega mais fácil.

-Eae Barba!-Respondi.

Ele olhou para o Felipe, que estava distraído.

-Oi Felipinho, como você ta campeão?

O Felipe adora o Barba, ao perceber que era ele ficou todo agitado.

-Oi Tio Barba! Eu cresci um tanto assim - Ele fez um sinal exagerado de tamanho com os braços.-

-Tudo isso rapaz? desse jeito vai bater a cabeça nas nuvens eim.

-Uau! Eu acho que eu vou sim, dai eu vou comer um pedaço delas, porque elas são de algodão doce, só que branco.

Levei a mão na testa, que imaginação era aquela, rimos muito.

-Mas eai Senhor Gregório, pra onde você ta indo? Fiquei sabendo do que a Barbara fez, ela não é disso cara, que foda.

-Eu to indo na biblioteca agora. Pois é cara, sacanagem, acontece que ...

-Não, não, me conta no caminho, vou dar uma carona pra vocês entra aí.

Ele jogou umas tralhas pro canto do banco de trás e eu acomodei o Felipe no assento. No caminho até a biblioteca contei tudo o que tinha acontecido pro Barba, ele não falou nada até eu terminar, só balançava a cabeça.

-Uff. - ele soltou o ar como se fosse algo pesado.- Mano, que porra de história bizarra que tu acabou de me contar. Verídico mesmo?

-É claro que é caramba! Da onde que eu ia inventar um troço desse? Você me conhece, sou quadradão demais pra isso de inventar coisa.

-Mas assim, os caras, deixaram o desenho e PUFF desapareceram no ar?

-O que? Não! -Eu estava frustrado, ela não estava me levando a sério-. Eles só deixaram lá e foram embora, seja lá pra onde gente estranha mora.

-Eu vou te ajudar a resolver essa fita aí.

-Não precisa, deve ser bobeira.

-E daí se for bobeira? Agora eu quero saber, sou doido nesse negócio de teoria da conspiração, meu sonho investigar essas paradas.

-Cara, não é teoria da conspiração.

-Não corta o meu barato, falou? Pra mim é sim, esses negócios existem em toda parte irmão, ou você acha que o homem foi mesmo pra lua? Não se iluda!

-Ta bom. -Ri-. Mas eai, porque você não foi trabalhar hoje?

-Peguei atestado, doido.

-Você ta doente?

-To, doente daquele monte de relatório, deus me livre.

-Não acredito, O Marcelo vai ter que fazer tudo sozinho?

-Vai. - Ele me deu um olhar maléfico e demos uma gargalhada juntos.- Aquele mala vive puxando o saco do Afonso, ele que se vire, não é o senhor prestativo, senso de dono da empresa? Se vi-re.

-Bem feito.

Chegamos em nosso destino, eu já mais descontraído por causa da conversa com o Barba. A biblioteca municipal é um lugar enorme, deve ter sido construído lá por mil oitocentos e pouco, porque tem um aspecto bem antigo. Estacionamos o carro e subimos a longa escadaria até a porta. Chegando lá me virei pro meu filho.

-Filho, o papai vi ter que procurar umas coisas e pode ser que demore um pouquinho, lá dentro tem uma sala de joguinhos e uma tia bem simpática que vai cuidar de você, você promete que vai se comportar?

Ele balançou a cabeça em sinal de sim e saiu correndo para a entrada da sala de jogos.

Me aproximei da moça da recepção. Era uma mulher bonita, cerca de 30 anos, morena.

-Quanto tá a hora da salinha? - Perguntei pra ela-.

-São 20 reais, senhor.

Meu bolso doeu, aqueles homens misteriosos estavam me custando os olhos da cara.

-Me ve 1 hora então, por favor.

-Nome?

-Gregório Aparecido Boulevard.

-Nome da criança?

-Felipe de Alcântara Boulevard.

-Vamos anotar o telefone do senhor para contato.

Ela retirou uma fitinha com o nome do meu filho, amarrou no pulso dele e girou a catraca, Felipe saiu correndo feito um doido e sumiu no meio das crianças e dos brinquedos.

Não pude conter minha preocupação, não gostava de deixa-lo sozinho assim, mas desta vez foi preciso. Parece que transpareci demais, o Barba percebeu.

-Relaxa, a recepcionista bonitona vai cuidar dele.

Eu ri.

-Deixa só a Cristina ouvir isso.

-Deus o livre, ela arranca meu couro.

Adentramos a imensa biblioteca e fomos confiantes rumo a nossa caçada ao desconhecido.

Digitalizei o pedaço de papel e fiz uma busca rápida na internet. Nada.

Olhei para o Barba que assim como eu se sentiu frustrado. Resolvi fazer uma busca em livros de papel. Imprimi uma cópia do símbolo para o barba e pedi para ele seguir pelo lado esquerdo da biblioteca e procurar por livros de simbologia ou qualquer coisa que remetesse ainda que vagamente aquilo. Eu segui pelo lado direito.

Voltamos minutos depois, ambos com os braços cheios de livros pesados, colocamos sobre a bancada.

Depois de quase uma hora folheando páginas e mais páginas e sem sucesso algum, me senti exausto, estava quase na hora do Felipe sair da salinha de jogos e eu decidi fazer uma última busca desesperada. Sai entremeio as imensas prateleiras lendo os títulos nas bordas dos livros o mais rápido quanto podia, quando um deles em especial chamou minha atenção, era um livro velho de capa de couro cujo título era "Os lugares mais misteriosos do Brasil e suas histórias".

Me aproximei dele, e retirei da prateleira pela borda, analisei a capa em busca de algo que indicasse se aquilo tinha alguma relação ainda que mínima com meu símbolo misterioso, como não encontrei nada concreto olhei novamente para prateleira na intenção de colocá-lo no lugar, mas o que vi, me fez tremer os ossos. Do outro lado, no espaço vazio que o livro deixara havia um homem parado, cujo o olho estava posicionado perfeitamente na brecha, um homem de pele escura e olhos verdes como folha.

Eu travei, não sabia mais falar, gritar nem me mover, com muito custo consegui chamar o Barba que estava apenas a alguns passos de mim.

Ele parou ao meu lado confuso e olhou para prateleira, ao perceber aquele homem ali, ele entendeu o motivo do meu pavor. Barba sempre foi mais destemido que eu, e resolveu enfrentar a figura que viamos.

-Ei! Ei cara, o que você ta querendo, meu irmão?

O homem moveu-se saiu do nosso campo de visão, mas ouvimos sua voz grave e calma quando ele disse do outro lado:

-Aquele que com aplicação procura, sempre acha.

Barba puxou meu braço, me tirando do meu estado de choque.

-Vamos Greg! Vamos caramba. Vamos pegar esse cara.

Caminhamos a passos rápidos até o fim do corredor para dar a volta e nos encontrarmos com nosso colega misterioso, mas quando dobramos a esquina não encontramos nada incomum. Do outro lado só havia um grupo de estudantes de cerca de vinte anos sentados em volta de uma grande mesa.

Barba se aproximou de um deles e questionou:

-Desculpa interromper, pessoal, mas vocês viram um cara grandão, pele escura, olhos verdes por aqui?

O garoto olhou para os colegas como quem refazia a pergunta a todos e como ninguém se manifestou, respondeu:

-Foi mal, não prestamos atenção não.

Barba deu dois tapinhas no ombro do rapaz como quem diz um obrigado silencioso.

Nos afastamos andando lentamente, confusos e decepcionados. Peguei o Felipe na saída da salinha e só então me dei conta que ainda estava com o livro na mão. Dei meia volta, na intenção de retornar à prateleira para devolve-lo quando ouvi um grito e um alarme soou. No alto falante um rapaz repetia freneticamente. "incêndio na sessão 7, incêndio na sessão 7. Repito. Isso não é um teste, incêndio na sessão 7. Todos os leitores e funcionários favor dirijam-se para a saída mais próxima. Repito(...)"

Coloquei o livro dentro do meu casaco, pequei meu filho no colo e fomos até a saída principal. Atrás de nós um caos de pessoas saindo apressadas e desnorteadas.

Em silencio andamos até o estacionamento e entramos no carro.

Barba suspirou forte, e soltou um palavrão em tom animado e incrédulo.

-Que merda foi essa meu amigo? Caraaaaalho, que isso? Mano, sessão sete não era a que a gente estava? Caraaaalho, isso foi insano.

Eu estava com o olhar fixo a minha frente, era muito para processar, estava nervoso.

-Barba, e-eu roubei um livro da biblioteca municipal!

-O que

-E-eu nunca roubei nada na vida, nem bala, uma vez a moça me deu um real a mais no supermercado e eu devolvi. Eu roubei um livro da caralha da biblioteca municipal!

-Você ta fumado Gregório? Me atualiza aí que eu não to entendendo porcaria nenhuma do que você ta falando.

Abri o casaco, retirei o livro de dentro dele e apontei para o Barba. Estava eufórico.

O Barba olhou pra ele, processou por alguns segundos. Soltou uma gargalhada e ligou o carro.

-Ora, ora, parece que temos um grande ladrão entre nós. Próxima parada, Banco Central.

-Cala sua boca!- Ri.

O transito naquela área estava péssimo por conta do fuzuê do incêndio. Caminhões de bombeiro pra todo lado, curiosos dirigindo devagar e policiais isolando a área. Pedi pro barba ligar o rádio do carro pra gente saber o que os repórteres estavam falando sobre o acontecido.

Em várias estações de rádio, ouvimos notícias de que o incêndio fora criminoso, estavam analisando as câmeras de segurança para identificar o culpado. Chamaram o ato de terrorismo.

Naquele momento estávamos tensos. Aquilo tinha tomado proporções muito maiores do que jamais pudemos imaginar. Não eram apenas caras estranhos querendo fazer uma pegadinha de mal gosto, era algo muito sério, e o pior de tudo é que eu estava envolvido.

-Mano. -Eu disse tentando não parecer nervoso-. O que eu vou fazer agora?

Barba me olhou por uns instantes.

-Você? Você nada. NÓS vamos dar um jeito nesses caras. Vamos na polícia, talvez eles nos ajudem em algo.

Me exaltei.

-Policia? Você ta locão? Eu não posso ir na polícia! E-eu, eu roubei a merda de um livro!

-Ta bom, ta bom! Calma! Vamos resolver nós dois então. Eu e você. Sem polícia.

-Melhor assim.- Esfreguei as mãos no rosto tentando aliviar a tensão e pensar lucidamente-. Mas o que nós dois contadores de uma empresa furreca podemos fazer? Estamos fu...- Lembrei que meu filho de 5 anos de idade estava no banco de trás ouvindo todos aqueles palavrões. Me senti um péssimo pai.- Estamos lascados!


Barba me deixou na porta de casa, tudo parecia estranho ali, segurando a mãozinha gelada do meu filho tudo que eu conseguia sentir era medo. Eu havia passado o dia todo correndo atrás de mistérios e me esqueci completamente que, apesar das minhas horríveis aventuras eu ainda era um pobretão que por acaso trabalharia na manhã seguinte e não tinha nenhuma babá.

Barba já estava saindo quando pedi para que esperasse um pouco e abaixasse os vidros. Precisava fazer um pedido a ele:

-Mano, tem como você me arrumar um desses seus atestados aí? Ainda to sem babá cara.

Barba fez uma expressão malandra.

-É claro que eu consigo, Brother! Peguei um de 7 dias pra mim. Te arranjo um igual, até você acertar essas paradas suas aí com os iluminatti.

Não acreditava que tinha escutado aquilo. Barba era mesmo muito doidão. Ri muito.

-Sim claro! E com os Maçons também.

Barba riu, mas depois fez uma expressão pensativa.

-Mano! Será que eles são Maçons?!

Não podia acreditar naquilo. Bati a mão na testa.

-Vai pra casa, Barba.

Ele arrancou com o carro em alta velocidade e saiu fazendo uma barulheira pelo bairro todo.

Aquele velho golzinho deve estar todo ferrado com as loucuras que o Barba apronta com ele. O que se pode fazer? O cara vive intensamente. Eu, por outro lado, não passo de um pamonha.

Destranquei a porta e logo que ela abril Felipe saiu correndo pra dentro, imaginei o quão cansado das aventuras de hoje ele deveria estar, correu pra geladeira e pegou um pedaço enorme de chocolate que estava lá esquecido. Pensei em repreende-lo por comer doces àquela hora, mas não o fiz, só desta fez não faria mal algum.

Comecei a dar uma organizada na casa, quando fui procurar o Felipe para organizar os brinquedos da sala o encontrei jogado na minha cama dormindo ainda com o chocolate lhe lambuzando as mãozinhas. O cobri e voltei aos meus afazeres domésticos.

Pensei em abandonar toda aquela loucura, aqueles homens de capuz e o episódio todo da biblioteca, não era nenhum agente secreto para ficar resolvendo mistérios, mas era um pai que precisava tomar conta de seu filho pequeno. Decidi que no dia seguinte devolveria o livro à biblioteca e diria que na correria o levei por engano e se acaso aqueles homens aparecessem novamente eu chamaria a polícia. Era o mais sensato a se fazer.

Estava perdido em meus pensamentos quando ouvi uma batida na porta, dei um pulo do susto que levei, não estava esperando ninguém, provavelmente o Barba havia esquecido algo e voltou para dizer.

Abri a porta calmamente, mas não foi o Barba que vi, na verdade era uma figura completamente diferente, uma moça loira, não mais que quarenta anos, trajando um vestido fino vermelho, parecia uma celebridade. O único pensamento que me passava pela cabeça era o que um ser tão deslumbrante fazia à minha porta no subúrbio do mundo. Quase não consegui dizer nada.

-Senhor Boulevard? -Ela perguntou com um sotaque russo-.

Balancei a cabeça como que para desfazer minha cara de bocó.

-Eu mesmo, pois não?

Ela me entregou um envelope igualmente vermelho com meu nome escrito em letra cursiva.

-Compareça neste endereço hoje ás 20:00 horas.

Não entendi porcaria nenhuma, percebi naquele momento que de uns dias para ali eu não entendia nada de porcaria nenhuma. Tentei parecer educado.

-Perdão Senhorita, do que se trata?

Ela não tinha expressão alguma.

-Posso lhe dizer que não se trata de um convite.

Fiquei atônito e com um pouco de raiva também, eu agora seria forçado a ir a lugares.

Abri a boca para protestar, mas ela não permaneceu para me escutar, virou as costas e andou até um enorme carro preto que estava parado em meu portão, sentou no banco de trás e saiu sem nem se quer olhar novamente para mim.

Pronto! Pensei. Mais essa agora! Eu já tinha decido não entrar nessa loucura.

Passei a tarde tentando ignorar aquele envelope maldito, mas eu sofria de um mal incurável, a curiosidade.

Abri o envelope e dentro dele só havia um bilhete simples escrito à mão com um endereço. Naquele momento eu entendi o que me forçaria a ir até lá. Eu mesmo.

Liguei pro Barba e pedi pra ele cuidar do Felipe naquela noite. fucei o guarda roupas em busca do meu terno de casamento, me pareceu pela aparência da moça que eram pessoas poderosas com a qual iria lidar, então precisava me misturar. Ao retirar meu velho paletó empoeirado no cabide, meu coração apertou. "Que saudades Julia, meu amor. Se ao menos você estivesse aqui".

Afastei meus pensamentos tristonhos e me trajei a rigor.Escutei alguém bater à porta, era o Barba, finalmente.

Estava com um cigarro de seda na boca.

-Que porra é essa aí,Barba?

Ele soltou a fumaça e me respondeu com a voz rouca:

-Maconha.

-Eu sei que é maconha seu animal. Eu quero dizer.. cara tem uma criança aqui, você sabe né.

- Ou, eu sei ta. -Jogou o cigarro no chão e pisou em cima-. aí, pronto já joguei fora.

-ah, sim agora ta melhor mesmo. - Estava nervoso, passei a mão pela cabeça-. Deus, eu vou deixar o meu filho com um drogado!

- Cara não surta, relaxa, vai lá encontrar a loira gostosona.

-Eu não ... olha, só não deixa ele sair de casa ta? Ele se vira.

-Ta bom.

Eu não sabia que rumo aquilo estava tomando, peguei as chaves do carro do Barba emprestado e saí sem ter a mínima ideia do que me aguardava.


Dirigi uns vinte minutos pela rodovia, o endereço que a moça me deu era de uma zona rural, não sabia ao certo qual entrada lateral tomar, então parei no acostamento e peguei o bilhete novamente. No final da descrição do endereço estava descrito "Fazenda Escorpião". Dirigi mais uns quinhentos metros e encontrei a entrada com esse nome.

Parado ali na entrada de uma longa estrada de terra eu refleti se eu realmente estava fazendo uma boa escolha, e se me fizessem algum mal, como ficaria meu filho? Ele já não tinha mais a mãe e por conta de uma besteira perderia o pai também?

Pensei em dar meia volta e acabar com aquilo, mas antes que eu pudesse tomar qualquer atitude alguém bateu no vidro da janela. Quase morri de susto, do lado de fora um homem alto, trajado de segurança, usando terno e aqueles comunicadores de ouvido, pedia para que abrisse a janela:

-Boa Noite senhor. Preciso dos seus documentos de identidade e bilhete de convocação.

Eu ainda estava me recuperando do susto, não sabia como lidar com aquilo, com as mãos tremulas e ansioso abri o porta-luvas e entreguei o que ele me pediu. Minha testa suava, eu estava realmente nervoso.

Ele deu uma olhada, falou alguma coisa no comunicador em uma língua que eu não consegui compreender e me devolveu a documentação.

-Siga em frente por mais cem metros, há uma vaga no estacionamento reservada para o senhor após o portão principal. Tenha uma boa noite.

Acenei com a cabeça para identificar que tinha entendido.

-Obrigado.

Era isso, a partir dali não tinha mais volta, se alguma coisa parecesse fugir do controle eu planejava sair de lá o mais rápido possível, dirigi mais um pouco a frente quando avistei um enorme portão branco perolado, era magnifico, digno da realeza.

Ao ultrapassar o portão havia uma vaga logo a frente, no meio de vários carrões de luxo com o meu sobrenome escrito em uma placa. Estacionei o golzinho, que parecia tímido e ofuscado em meio a tantas maquinas milionárias.

Subi uma pequena escadaria de mármore e parei frente a uma enorme porta branca. Toquei a campainha.

Segundo depois a porta se abriu, e lá estava novamente a minha frente aquela mulher deslumbrante, trajando um vestido de veludo preto, igualmente charmosa e fina.

-Por favor entre, estávamos te aguardando. Madame Nikole Ivanov, ao seu dispor.

Entrei meio desconfiado a casa mais parecia um palácio, escadarias enormes de mármore se elevavam em espiral até um segundo piso com pequenas salinhas como em um teatro.

Entramos em uma enorme sala redonda com várias cadeiras organizadas em um semicírculo, contei pelo menos umas vinte, mas sei que haviam mais. Sentados uma em cada cadeira estavam pessoas poderosas, vi alguns vereadores a até mesmo o prefeito em uma delas, o restante deveria ser empresários ou celebridades, não sabia dizer, só conseguia ver a riqueza e o poder em suas faces pomposas.

No meio deles havia apenas uma cadeira vazia, imaginei que seria a minha então tomei-a e me sentei. Ainda estava nervoso com aquela situação, minhas mãos me entregavam e eu batia os dedos no apoio ansiosamente.

Minutos após a minha chegada, Madame Ivanov, que havia se retirado, voltou a sala empurrando uma cadeira de rodas com um senhor muito idoso sentado nela. Colocou a cadeira o centro da sala, para que todos nós o víssemos. Apesar da idade avançada o senhor estava finamente trajado, e tossia em intervalos muito pequenos.

Ivanov parou ao seu lado e começou a discursar:

-Sejam bem-vindos a nossa trigésima sessão de sucessão. Como muitos de vocês já sabem, meu pai, Dom Dimitri Ivanov, está muito doente. Após a sua partida, eu, tomarei o seu lugar como suprema mestre da fraternidade brasileira.

Fiquei confuso e agitado, aquilo era o que? Algum tipo de seita? Estava perdido, mal sabia como me comportar. Ela continuou:

-No entanto, para tomar o meu lugar como governador geral da fraternidade, meu pai escolherá um de seus herdeiros. Eu já tenho o nome de cada um de seus filhos, e ele, junto aos supremos mestres de cada país fará a melhor escolha.

Minha cabeça rodava, governador geral? Nossos filhos? Eu não envolveria o Felipe nessa loucura, eu nem mesmo fazia parte daquilo tudo, não tinha a mínima ideia do porque havia sido levado até aquilo. Protestei.

-Perdão, Madame Ivanov, mas receio que meu filho não fará parte desta votação, eu nem mesmo faço parte disso.

Todos na sala voltaram suas atenções para mim. Me senti suar. A face da mulher era inexpressiva, não poderia dizer de forma alguma como ela sentiu diante da minha objeção. Só depois de alguns segundos me analisando ela exclamou:

-Não. O senhor certamente não, Senhor Boulevard. No entanto a Senhora Julia, era uma de nossas mestras. Você é o representante dela como esposo, devido a infortuna circunstância de sua ausência, nada mais.

Me senti amolecer, tontear, tamanho o meu choque. Julia? Não, não poderia ser. Como? A Julia fazia parte dessa bizarrice. Como eu nunca soube de nada? Porque ele envolveu nosso filho nisso? Eu estava com raiva, como a mulher que eu amava era membro de uma fraternidade louca e eu não sabia? Ivanov continuava a falar.

-Nesse momento faremos uma pausa de quinze minutos para a tomada de decisão dos supremos mestres. Aguardem, por favor.

Ivanov saiu da sala empurrando a cadeira de seu pai. Eu ainda sentado na cadeira, suava frio. Não conseguia processar aquilo, minhas mãos tremiam e ninguém ao meu redor parecia estar preocupado. Quinze minutos pareceram ser horas até que Nikole e o velho senhor retornaram:

-A decisão foi tomada.

Ela tinha um envelope vermelho em mãos. Eu só conseguia pensar. "Que não seja o meu filho, por favor, que não seja o meu filho".

Ela abriu o envelope e leu o cartão que estava dentro dele. Ela soltou um risinho irônico, pareceu sair involuntariamente, só então exclamou:

-Felipe de Alcântara Boulevard.

Meu mundo caiu, naquele momento, eu senti vontade de vomitar, mas não pude, estava paralisado. As pessoas ao redor sussurravam umas com as outras, incrédulas. Meu coração acelerava cada vez mais. Parecia que eu iria explodir. Escutei uma voz masculina vindo do outro lado da sala em tom alto. Era o prefeito.

-Governadora, isso é inconcebível! O garoto é uma criança!

Nikole deu com os ombros como quem diz que não há o que fazer. Pediu silencio a todos.

-Devido a esse atípico fato, declaro que o senhor Gregório será o Mentor de Felipe até que ele alcance a maior idade. Isso não indica a detenção do poder a ele, O cargo é de Felipe por direito, ele só responderá por ele até que o menino alcance a maior idade.

Os cochichos retornaram, os participantes pareciam não aceitar a decisão. Ouvi alguém gritar no meio deles.

-Isso é um absurdo!

Madame Ivanov levantou a voz.

-Absurdo ou não, é a decisão dos supremos. Esta sessão está encerrada! Há um coquetel na sala ao lado, aproveitem.

Ela saiu, soltando o ar de stress. Todos levantaram e se dirigiram para a sala indicada ainda cochichando indignados. Fui atrás de Ivanov.

-Madame Ivanov por favor espere! Nikole!

Ela se virou para mim, também não parecia muito satisfeita.

-Precisa de alguma coisa Senhor Boulevard?

Eu ainda estava muito nervoso, não sabia como começar.

-Olha, eu sei que eu não faço parte disso, a Julia nunca me disse nada sobre vocês, eu realmente não sei o que fazer.

Eu estava desesperado. Ela cerrou os olhos, parecia surpresa.

-Não? Interessante.

-Não, não, não, nada de interessante, olha você não entende, aqueles caras de capuz assustaram minha babá, eu não tenho ninguém, não sou esses ricaços aí, preciso trabalhar, não da.

Ela arregalou os olhos, pareceu assustada.

-O que você disse?

Fiquei confuso, o que eu disse que a assustou?

-Eu não sou rico?

-Não isso, idiota, os caras de capuz, o que você disse sobre os caras de capuz?

-Bom, eles ficam me observando em frente à minha casa, deixam bilhetes.

Ela pareceu ficar nervosa, passou a mão na testa tentando se recompor.

-Quatro caras de capuz, é isso?

Eu não estava entendendo, o que havia de errado.

-Sim, quatro deles, eles não são dos seus?

Ela se apoiou na parede, parecia apavorada, e eu me apavorava mais ainda vendo aquilo.

-Não, não são dos nossos. Isso é ruim, muito ruim. Já estão aqui.

Madame Ivanov me deixou sozinho na sala, saiu rápidamente batendo o salto alto no piso de mármore fazendo ecoar um som seco de trote pelo grande salão. Eu fiquei ali parado, confuso, nervoso e ávido por respostas. Levei as mãos à cabeça e dei aguns passos desnorteados pelo salão até decidir sair dali e ir para casa.

Cruzei o salão até a porta principal andando tão rápido que se alguém me observasse de longe poderia até mesmo dizer que eu estava correndo, entrei no carro e me sentei no banco do motorista sem saber ao certo ainda o que fazer, e foi ali, no silêncio e na solidão que tudo finalmente pesou.
Pensei naquelas pessoas, na votação, na minha esposa. Desferi socos desesperados contra o volante e me peguei chorando. Lembrei do meu filho, me recompus, limpei o rosto na manga do terno e girei a chave.

Não me lembro muito bem de como cheguei em casa, mas cheguei inteiro, estacionei o carro e olhei para a casa. Dela podia se ver apenas uma janela iluminada, era a luz da sala de estar. Entrei ainda amargurado, deixei as chaves na mesa da cozinha e fui até a sala. A cena que encontrei me fez dar o primeiro sorriso do dia, Barba e Felipinho estavam apagados, babando no sofá abraçados, ambos fantasiados de pirata com objetos improvisados. Aquilo aqueceu meu coração. Apesar de toda a loucura eu ainda tinha pessoas que me amavam acima de tudo.

Apaguei a luz da sala e deixei os dois dormindo lá, do jeitinho que estavam, não me atreveria a acorda-los. Entrei no quarto e me despi do meu traje de gala. Estava quase me deitando quando observei o livro que roubei da biblioteca, abandonado no criado mudo. Me peguei pensando no porquê diabos eu tinha me interessado por aquele livro tão aleatório e sem sentido.

Fui até ele e o encarei por um tempo, enquanto minha mente vagava buscando uma explicação, me lembrei da Julia, viva e linda. Amava ver a maneira como ele erguia seus cachos escuros em um coque para ler livros malucos para o nosso pequeno bebê.

Enquanto me deliciava em minhas memórias, por um instante pareci me recordar da minha esposa carregando um livro muito parecido com aquele que eu agora estava segurando, forcei a memória por alguns instantes até me dar conta de que com toda a certeza era o mesmo livro.

Folheei o livro desesperadamente tentando encontrar qualquer coisa fora do comum. depois de muito tempo e sem sucesso, esbravegei e soquei-o contra a madeira do criado mudo. O barulho que aquilo fez fi estranho, oco. Peguei a rapidamente o exemplar de volta e analisei com todo o cuidado a capa grossa que o revestia, até que percebi um relevo quase imperceptível que surgia na contra capa. Com um pedaço de clip de papel consegui desgrudar a parte em relevo da capa. Dentro do buraco, havia um fino medalhão prateado com um entalhe muito peculiar. Um circulo, uma estrela e quatro olhos sinistros. As palavras pularam da minha boca:
- Mas que merda, Julia!

Acordei energizado, tomei um banho rápido, peguei o celular e liguei para o Barba.

-Barba?

- Oi? Greg? Ta tão cedo cara, aconteceu alguma coisa?

- Eu tenho uma ideia, preciso da sua ajuda.

- Chego aí em dez minutos.



Deixei o Felipe com a Cristina, esposa do Barba, expliquei sobre o medalhão para ele. Tirei uma foto do objeto e imprimi o maior que pude. Colei na minha porta da frente, abri duas cervejas e sentamo-nos no sofá.

Barba me olhou com expectativa, algo em seus olhos indicava animação e adrenalina, características as quais eu invejava imensamente. Cansado do meu silencio ele questionou.

-E agora?

-Agora esperamos.

Dei uma golada na minha bebida e permaneci frígido. Estava decidido a obter todas as respostas ali.

O dia se desenrolou sem grandes emoções e a noite já quase caía enquanto eu e Barba permanecíamos jogados no sofá da sala, sem esperança alguma e assistindo um programa de culinária da tevê local.

Barba me dirigiu um olhar cansado e levantou para despedir-se, nesse exato momento ouvimos alguém bater à porta. Levantei de supetão e parei por um momento hesitante frente ao trinco, respirei fundo e abri.

Parado de frente para mim com uma postura invejável, completamente ereta e trajando uma farda muito bem alinhada, estava um homem de meia idade muito provavelmente militar. Sua expressão estava séria e seus duros olhos me encaravam com repreensão.

-Boa noite, Boulevard. O senhor tem a mais vaga noção da origem completamente sigilosa do símbolo que ostenta de forma tão vulgar em sua porta da frente?

O sangue me inundou os olhos, a petulância que me saltava à boca ignorava completamente a figura intimidadora daquele oficial.

-Na verdade, não tenho mesmo. Sou completamente leigo a respeito dessa coisa que vocês chamam de sigilosa e que por motivos que eu nem mesmo sei dizer acabou em minhas mãos civis. A imagem continuará aí até que essa merda toda me seja esclarecida.

Me arrependi de ter aberto a boca no pontual momento em que a fechei, mas já era tarde, tudo já havia sido dito e eu esperava qualquer que fosse a consequência agressiva que provavelmente sofreria.

Contradizendo todos os meus temores e instintos, o homem virou as costas e saiu, dirigiu-se à um carro preto e antigo que estava estacionado próximo ao meu portão. Quando pensei que havia sido deixado falando sozinho, a porta traseira do veículo se abriu, e de dentro dele surgiu o que julguei ser um homem muito robusto trajando uma roupa completamente preta e com o rosto coberto por um capuz.

Meu coração palpitou forte e a minha mente já estava a planejar um plano de fuga, eu queria correr, me esconder. A única frase que eu pude formar naquele momento e que saltaram dos meus lábios mais rápidos do que poderia pensar foi: "Fodeu! ".

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miguel_damas
POE wow
27/março/2018

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