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Farewell

1996

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.

1902-10-31 Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil
1987-08-17 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Imagem, Terra, Memória

Sobre uma coleção de velhas fotografias de Brás Martins da Costa

I

Vejo sete cavaleiros
em suas selas e silhões.
As diferentes idades não
distinguem uns dos outros.
Os varões, as amazonas,
os meninos, seus corcéis
e suas mulas serenas
estacaram. Dentro em pouco
vai começar a viagem
no país do mato-fundo.
Eles sete nos convidam
a percorrer este mundo
miudinho dentro do mundo
e grande maior que o mundo
em cada lasca de ferro
cada barba
cada reza
cada enterro
mato-dentro.


II

Aqui chegamos pois à velhice do Guarda-Mor
com seus quarenta e seis descendentes em volta,
sua mocidade revolucionária ao lado de Teófilo Ottoni,
marcando o fim da era do Oitocentos
e um silêncio de igreja que a procissão
vai incensando, vai gregoriando pelas ruas principais.
Súbito, a menina crucificada
na postura de Cristo repete o holocausto
que os pecadores insistem em não compreender.
É indispensável, é urgente levantar o cruzeiro,
sinal de culpa e resgate
sobre interesses e podres de família,
sobre fazendolas hipotecadas
de gado, milho, café, carrapato redoleiro,
erguê-lo à altura majestática do Pico do Cauê,
se não mais alto, muito mais ainda.
Braços robustos tiram-no do chão
e o vão alçando com fervor e suor
até que ele paire sobre as consciências arrependidas.
Os padres, o Senhor Bispo, o Santo Padre invisível-presente
velam o sono, vigiam o acordar e o labutar do povo,
entre velocípedes, ornatos florais,
cães fiéis aos pés de seus donos de botas
e uma honrada banda de música, Euterpe morena,
a encher de arte e vibração o território parado.


III

Olha
a ambiguidade melancólica do rosto dessa mulher à janela
que abre para mares impossíveis de liberdade,
enquanto passa em cortejo o alvo corpo do anjinho
no rumo direto do céu,
onde com minha Mãe estarei, estaremos todos
na santa glória um dia.

Moças, ó moças
que emergis da piscina do tempo sem uma ruga
a marcar vossos rostos:
no pesado gorgorão dos vestidos de missa,
ressuscitais a moda abolida, a sempre moda.
Na chapa de vidro descoberta no arcaz
gravada ficou a beleza que a opressão familiar
não empalidece, não destrói.
Belas não obstante as proibições seculares
que vos condenavam ao casamento sem amor, ao sexo abafado,
ao tio-com-sobrinha, ao primo rico ou de futuro,
moças do Rio Doce de perfume silvestre,
hoje pousais no solo abstrato,
esse amplo solo que a memória estende
sobre o vazio de extintas gerações.


IV

Fecho este álbum? Ou nele me fecho
em urna luminosa onde converso e valso,
discuto compra e venda, barganha, distrato,
promessa de santo, construção de cerca,
briga de galo, universais assuntos?
Os sete cavaleiros se despedem.
Só agora reparo:
vai-me guiando Brás Martins da Costa,
sutil latinista, fotógrafo amador,
repórter certeiro,
preservador da vida em movimento.
Vai-me levando ao patamar das casas,
ao varandão das fazendas,
ao ínvio das ladeiras, à presença
patriarcal de Seu Antônio Camilo,
à ronha política de Seu Zé Batista,
ao semblante nobre do Dr. Ciriry,
às invenções de Chico Zuzuna,
aos garotos descalços de chapéu,
a todo o aéreo panorama
de serra e vale e passado e sigilo
que pousa, intato, no retrato.

A fotoviagem continua
ontem-sempre, mato adentro,
imagem, vida última dos seres.
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Os 27 Filmes de Greta Garbo

27, tem certeza? Não importa.
Para mim são 24. Lembra-me bem.
Conto um por um, de 1926
a 1941, de vida contínua.
De minha vida. De The Torrent a Two-faced woman.
Entre os dois, um abismo
onde aprisionei, para meu gozo, Greta Garbo.
Ou ela me aprisionou?
Será que não houve nada disso?
Alucinação, apenas?
O tempo é imperscrutável. São tudo visões.
Greta Garbo, somente uma visão, e eu sou outra.
Neste sentido nos confundimos,
realizamos a unidade da miragem.
É assim que ela perdura
no passado irretratável e continua no presente,
esfinge andrógina que ri
e não se deixa decifrar.
Contei-os todos: 24 filmes americanos. Meus.
Não me interessam diretores.
Monta Bell, Fred Niblo, Clarence Brown,
nem penso em Edmund Goulding, para mim não existem
Victor Seastrom, Sidney Franklin, John S. Robertson.
Esqueço Jacques Feyder, esqueço Robert Z. Leonard,
de que me serve George Fitzmaurice, não careço
de Rouben Mamoulian e Richard Boleslawski,
para o inferno com George Cukor,
e com ele Lubitsch!
Dela quiseram fazer uma ninfa obediente,
autômato de impulsos programados.
Foram vencidos.
E que farei de seus galãs? Tenho pena
de meros circunstantes entulhando
a rota de alva solidão.
Não vou sequer nomeá-los. Sombras-sombras
que um dia tremularam... se apagando.

Todo o espaço é ocupado por Greta Garbo.
Na mínima tela dos olhos, na imensa
perspectiva do jovem de 24 anos, e de 24 filmes
a desfilarem até o espectador beirando 40 anos,
que já tem suas razões de descrer e deslembrar
e não deslembra. Sempre a seu lado Greta Garbo.
Caminhamos juntos. Não nos falamos. Não é importante.
Súdito da Rainha Cristina, atento à voz de contralto
de Ana Christie, espião da espiã Mata Hari,
disfarço-me de groom no Grande Hotel
para conferi-la na intimidade sem véus de bailarina.

Não julgo seus adultérios burgueses
nem me revolta sua morte espatifada contra a árvore
ou sob as rodas da locomotiva.
Sou seu espelho, seu destino.
Faço-me o que ela deseja. As you desire me.
E aprofundo a lição de Pirandello
na ambiguidade do cinema. Que é um filme?

Que é a realidade do real
ou da ficção?
Que é personagem de uma história
mostrada no escuro, sempre variável,
sempre hipótese,
na caleidoscópica identidade da intérprete?

Como posso acreditar em Greta Garbo,
nas peles que elegeu
sem nunca se oferecer de todo para mim,
para ninguém?
Enganou-me todo o tempo. Não era mito
como eu pedia. Escorregando entre os dedos
que tentavam fixá-la,
Marguerite Gauthier, Lillie Sterling,
Susan Lenox, Rita Cavallini,
Arden Stuart,
Marie Walewska, água, água, múrmura água
deslizante,
máscaras tapando a grande máscara
para sempre invisível.
A vera Greta Garbo não fez os filmes
que lhe atribui minha saudade.
Tudo se passou em pensamento.
Mentem os livros, mentem os arquivos
da ex-poderosa Metro Goldwin Mayer.

Agora estou sozinho com a memória
de que um dia, não importa em sonho,
imaginei, maquinei, vesti, amei Greta Garbo.
E esse dia durou 15 anos.
E nada se passou além do sonho
diante do qual, em torno ao qual, silencioso,
fatalizado,
fui apenas voyeur.
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A Loja Feminina

Cinco estátuas recamadas de verde
na loja, pela manhã, aguardam o acontecimento.
É próprio de estátuas aguardar sem prazo e cansaço
que os fados se cumpram ou deixem de cumprir-se.
Nenhuma ruga no imobilismo
de figurinos talhados para o eterno,
que é, afinal, novelo de circunstâncias.

Iguais as cinco, em postura vertical,
um pé à frente do outro quase suspenso
na hipótese de voo, que não se consumará,
em direção da porta sonora
a ser aberta para alguém desconhecido
— Vênus certamente, face múltipla —
assomar em tom de pesquisa,
apontando o estofo, o brinco, o imponderável
que as estátuas ocultam em sigilo de espelhos.

Passaram a noite em vigília,
nasceram ali, habitantes de aquário,
programadas em uniformes verde-musgo
para o serviço de bagatelas imprescindíveis.

Sabem que Vênus, cedo ou tarde,
provavelmente tarde e sem pintura,
chegará.
Chega, e o simples vulto
aciona as esculturas.

Ao cintilar de vitrinas e escaninhos,
objetos deixam de ser inanimados.
Antes de chegar à pele rósea,
a pulseira cinge no ar o braço imaginário.
O enfeite ocioso ganha majestade
própria de divinos atributos.
Tudo que a nudez torna mais bela
acende faíscas no desejo.
As estátuas sabem disto e propiciam
a cada centímetro de carne
uma satisfação de luxo erótico.

O ritmo dos passos e das curvas
das cinco estátuas vendedoras
gera no salão aveludado
a sensação de arte natural
que o corpo sabe impor à contingência.
Já não se tem certeza se é comércio
ou desfile de ninfas na campina
que o spot vai matizando em signos verdes
como tapeçaria desdobrante
do verde coletivo das estátuas.

Hora de almoço.
Dissolve-se o balé sem música no recinto.
Não há mais compradoras. Hora de sol
batendo nos desenhos caprichosos
de manso aquário já marmorizado.
As estátuas regressam à postura
imóvel de cegonhas ou de guardas.
São talvez manequins, de moças que eram.
O viço humano perde-se no artifício
de coisas integrantes de uma loja.
Se estão vivas, não sei. Se acaso dormem
o dormir egípcio de séculos,
se morreram (quem sabe), se jamais
existiram, pulsaram, se moveram,
não consigo saber, pois também eu
invisível na loja me dissolvo
nesse enigma de formas permutantes.
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Arte Em Exposição

CASAMENTO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS COM A POBREZA (Sasseta)
O amor te escolheu
por seres a mais casta
entre virgens ideais.
A união é do ar
e da água e do pão
em migalhas.

AUTORRETRATO (Soutine)
Sou eu ou não sou eu?
Sou eu ou sou você?
Sou eu ou sou ninguém,
e ninguém me retrata?

MÚSICOS CEGOS (Velázquez)
Violino e guitarra são videntes,
olham pelos olhos dos cantantes.

RETRATO DE MADAME HÉBUTERNE (Modigliani)
Plantada na torre do pescoço,
a cabeça, na altura,
mal percebe nossas inquietações de planície.

O GRITO (Munch)
A natureza grita, apavorante.
Doem os ouvidos, dói o quadro.

LEDA (Da Vinci)
Já gozaste demais, diz Leda ao cisne.
Que venha logo Jove cataclismo.

GENTIL HOMEM BÊBADO (Carrà)
De Baudelaire o conselho:
É preciso estar sempre bêbado.
Além do imaginário e do real
é preciso estar sempre sóbrio
para pintar a bebedeira.

ODALISCA VERMELHA (Matisse)
A indolência da odalisca em rosa rubra
respira paz de lânguido fervor.
A sensualidade se dilui:
pura cor.

A CADEIRA (Van Gogh)
Ninguém está sentado,
mas adivinha-se o homem angustiado.

A CIGANA ADORMECIDA (Henri Rousseau)
Para te acordar
do sono profundo
disfarço-me: leão
que ao te roçar
esquece a missão.

A PONTE DE MANTES (Corot)
Assim quisera eu ser:
ponte árvore canoa água serena
ignorante de tudo mais bem longe.

A ANUNCIAÇÃO (Fra Angelico)
O anjo desprende-se da arquitetura
para dar a notícia
precisamente conforme a traça
de sublime arquiteto.

ALMOÇO SOBRE A RELVA (Manet)
Conversamos placidamente
junto da nudez
que pela primeira vez
não nos alucina.

VÊNUS E O ORGANISTA (Ticiano)
O som envolve a nudez
e chega ao cachorrinho.
O músico esquece a partitura.
As pulseiras de Vênus não escutam.

TIRADENTES (Portinari)
Fez-se a burocrática justiça.
O trono dorme invencível vingado.
Postas de carne do sonhador
referem o caminho das minas.

CAFÉ NOTURNO (Van Gogh)
Alucinação de mesas
que se comportam como fantasmas
reunidos
solitários
glaciais.

TRANSVERBERAÇÃO DE SANTA TERESA (Bernini)
Visão celestial, doce delírio.
Da cabeça aos pés nus
êxtase (orgasmo?) relampeia.

RETRATO DO CASAL ARNOLFINI (Jan van Eyck)
A imagem reproduz-se até o sem-fim.
O casal sem filhos
gera continuamente nos espelhos
a imagem de perpétuo casamento.

SALOMÉ (Giorgione)
Que instinto maternal, que suavidade
embala esta cabeça decepada?

VÊNUS ADORMECIDA (Giorgione)
Acalenta no sono
o púbis acordado.

JARDIM DO MANICÔMIO (Van Gogh)
O jardim onde passeia a ausência de razão
é todo ele ordem natural.
A terra acolhe o desvario
que assimila a verdura e a leveza do ar.

VOLTAIRE (Houdon)
O mundo não merece gargalhada. Basta-lhe
sorriso de descrença e zombaria.

SAPATOS (Van Gogh)
Cansaram-se de caminhar
ou o caminho se cansou?

AUTORRETRATO COM COPO DE VINHO (Chagall)
Seja celebrada a alegria nas alturas
por cima dócil das mulheres.
A cavalo melhor se chega ao céu.

QUADRO I (Mondrian)
Universo passado a limpo.
Linhas tortas ou sensuais desaparecem.
A cor, fruto de álgebra, perdura.

CARNAVAL DE ARLEQUIM (Miró)
Descobri que a vida é bailarina
e que nenhum ponto inerte
anula o viravoltear das coisas.

FUZILAMENTO NA MONCLOA (Goya)
Balé de tiros gritos corpos derrubados.
A lanterna tranquila
acena para a esperança da Ressurreição.

AS TRÊS GRAÇAS (Rubens)
Curvilíneos volumes se consultam
e concluem:
Beleza é redundância.

PIETÀ (Miguel Ângelo)
Dor é incomunicável.
O mármore comunica-se,
acusa-nos a todos.

A DUQUESA DE ALBA (Goya)
Ser o cachorrinho da Duquesa
é de certo modo
ser uma partícula da Duquesa.

GIOCONDA (Da Vinci)
O ardiloso sorriso
alonga-se em silêncio
para contemporâneos e pósteros,
ansiosos, em vão, por decifrá-lo.
Não há decifração. Há o sorriso.

RETRATO DE ERASMO DE ROTTERDAM
(Quentin Metsys)
Santidade de escrever,
insanidade de escrever
equivalem-se. O sábio
equilibra-se no caos.
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Cabaré Palácio

A história de Minas passa um momento na Rua Guaicurus
— é noite, a luz espanta lobisomens —
sobre a escada sonora, e no salão repleto,
entre ruivas, louras, morenas, índias e mulatas
vindas de Montevidéu, Buenos Aires, Madri e Tremedal,
saúda respeitosamente
Madame Olímpia Vazquez Garcia,
senhora da Galiza e do puteiro belo-horizontino.

Cessam
tricas e futricas do jogo político das Alterosas,
lamentos de esmagados, filáucias de proponentes,
rumor de escravos escavando ouro e morte nas galerias de Morro Velho,
procissões de formigas cuiabanas tosando meticulosamente talos verdes,
fantasmas de mulas de latim debruçados sobre ex-alunos do Caraça,
tiros à sorrelfa (letais) nas emboscadas de Manhuaçu.
Cessa tudo que a vida morna ostenta,
que outro valor, de Vigo, se alevanta
e acolhe a prosternada
turibulação mineira de pau duro
ou já deficitária, não importa,
mas sempre a Eros erguendo novas aras.

Conspícuos pais da pátria,
flamívomos tribunos,
banqueiros, coronéis, beneméritos da Santa Casa de Misericórdia,
algum Secretário da Fazenda encapuzado
em hidrófilo sigilo,
respeitáveis chefes de família respeitabilíssima
ofertam a Madame Olímpia a catleia de louvor
que ela recebe altiva e sagrada qual Minerva.

Sua ampla testa lisa
encarna o poder
sobre rebanhos, apólices e complexos de Minas Gerais
e a procissão noturna espoca em febre
de bolhas beijos bolinações babas de batom.

Salve,
Imperatriz da farra honesta dos montanheses
que de dia cultivam Platão, o Dever, a Democracia,
tropeçando nos quartos sanguinolentos de Tiradentes,
e à noite estendem a vossos pés galegos
sua vocação de orgia e aniquilamento no esperma.
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