Vim porque me pagavam

2011

Golgona Anghel

Golgona Anghel

Roménia
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Porque falta meia hora

Porque falta meia hora antes de 
tomar o comprimido para dormir,
porque mesmo depois de tanto tempo
fazes de mim o filho com síndroma de Down
de Arthur Miller,
porque escrever não é só abrir cabeças
com o bisturi de Lacan,
e porque um poema não é a Isabella Rossellini
a chorar todos os sábados à noite,
nem o casal encontrado abraçado
na paralisia bucal do Vesúvio.
Porque a poesia não é a ponte Mirabeau
num cartaz de néon de adolescência,
porque hoje, quando ligaste,
era apenas porque te tinhas enganado no número,
porque estou cansado, voilá,
e não consigo evitar a noite,
penso agora em ti, Juliana,
heroína no sentido naturalista do termo,
penso sobretudo no teu arzinho
de provocação e de ataque.

Podias ter sido a Maria Eduarda
do cinema norte-americano,
a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra no Vietname,
a Frida Kahlo e o Kofi Annan,
a estátua de Notre Dame.

O teu sentido reformista,
o teu olhar de Eça socialista,
cá está,
tinhas cabeça para embaixadora da boa vontade,
pés para andar nos corredores da ONU,
o feitio da botina, a mania, a despesa.

Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido,
de cara para a parede
enquanto 20 repúblicas foram perpetuando
campanhas eleitorais e golpes de estado
nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha.

Coitada, coitadinha, coitadíssima,
permaneces na sala, um pouco pálida e fraca,
mas restituída aos deveres domésticos
e aos prazeres da sociedade!

O feitio da botina, a mania, a despesa,
o cheiro a terebintina.
Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula,
chega para cá a garrafa e o cinzeiro;
temos assuntos por tratar e meia hora de critérios.
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O seu andar às voltas

O seu andar às voltas,
hesitante como qualquer principiante,
o epicentro das suas mentiras,
o campo magnético do seu prazer,
o pólo norte do seu sexo,
essa sua melancolia de magnólia
gravada no horizonte de tantas Hiroshimas
seriam um desastre em Mishima.

Mas esse dente à morcego
a provar a couraça da minha paciência, essa
mania de acordarmos todos os dias,
de não termos nada e possuir tudo,
eis o que nos une para a eternidade.
Para além dos complexos freudianos,
fora das restrições genéticas,
debaixo de qualquer suspeita
arrumada à pressa nos livros de cabeceira.

Quando me perguntam por nós
não hesito em fundamentar a minha resposta
invocando as musas gregas e os seus curadores,
dando exemplos pertinentes
como este:
ibamus obscuri sola sub nocte.

As milhares de mónadas da minha história psíquica
giram ciclicamente em torno da sua franja,
passam horas
contemplando a sua saia solar
no ondear ligeiro das searas.
Quando não há searas,
ligo a ventoinha e a saia flutua na mesma.
Haverá certamente uma altura em que
os anais do google irão disponibilizar on-line
os ficheiros secretos do nosso destino.
Alguém contará, então,
com a voz distorcida pela censura,
que me abandonava vezes sem conta
com o exagero das hipérboles,
que voltava depois
com o remorso tácito dos pontos suspensivos,
até quando?
que noite após noite me abastecia de requintados
pesadelos, flores de plástico e pastilhas Trident,
até que um dia,
pegou no tempo que nos restava juntos
e foi dar um passeio à parte mais negra da floresta.
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