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Poesias de Álvaro de Campos

1944

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa, mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português.

1888-06-13 Lisboa, Portugal
1935-11-30 Lisboa
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POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
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ODE MARÍTIMA

ODE MARÍTIMA


Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É – sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado,
Insensivelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas.
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.

Ah, o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E por que penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs.
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.

Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados
Em divino êxtase revelador
Às horas cor de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e o Cais!

Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos devagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, vistas de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
– O medo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo –
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa.
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo...

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca,
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.

Na minha imaginação ele está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.

Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) –
Todos estes navios abstractos quase na sua ida,
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo.

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,
Visto de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo –
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.

Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre<
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Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rossio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom.
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste.
Seja.

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me às mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,

Excepto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...
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PASSAGEM DAS HORAS [b]

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me.
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh, mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim – ai de mim! –, só assim se pode viver.
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco – não sei qual – e eu sofri.
Vivi todos as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.
Mão suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma coisa vinda directamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...

Tu, cuja vinda é tão suave que me parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquele com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor, abstracta,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei
Como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Chorei, não procurei esconder
Todos viram, fingiram
Pena de mim, não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Um homem de moral não fica no chão
Nem quer que mulher
Venha lhe dar a mão
Reconhece a queda e não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima
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OPIÁRIO

OPIÁRIO

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mata,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah, uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as porta! E isto afina! é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Pra sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah, quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que cos cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah, que bom era ir daqui de caída
Prá cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -
E basta de comédias na minh'alma!


1914, Março.
No Canal de Suez, a bordo.


(publicado no Orpheu, nº 1, 1915)
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Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes –
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em véspera de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e é tudo deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar a mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, o destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;
Hei-de vê-la levar de aqui,
Hei-de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto.
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.


04/10/1930
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Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

DOIS EXCERTOS DE ODES
(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)

I
....................................................................

Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.


II

Ah, o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do «Sentimento de um Ocidental»!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,
Que nem são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por este hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunto a ti própria
– Tu que me conheces – quem eu sou...


30/06/1914 (publicado na Revista de Portugal, nº 4, Julho de 1938)
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Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, nem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou no estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelo vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrado de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...


11/05/1928
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Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem os estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quando mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos nocturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis

Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
À tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones.
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.

Ocupa de todo a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre.

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todos as direcções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem em baixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores.
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosa em torno de si,
Cruzando-se em todas as direcções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam.

A chuva como pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!
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ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada: hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...


14/04/1928 (publicado na Solução Editora, nº 1)
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APOSTILA

APOSTILA


Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos – nem mais nem menos –
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos –
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido nem fictício...

Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...

Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.


11/04/1928 (publicado na Presença, nº 1, 2ª série, Novembro de 1939)
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VILEGIATURA

O sossego da noite, na vilegiatura no alto;
O sossego, que mais aprofunda
O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;
O silêncio, que mais se acentua,
Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...
Ah, a opressão de tudo isto!
Oprime como ser feliz!
Que vida idílica, se fosse outra pessoa que o tivesse
Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada
Sob o céu sardento de estrelas,
Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!

Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa.
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.
Sempre esta inquietação mordida aos bocados
Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.
Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos
Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.
Sempre, sempre, sempre
Este defeito da circulação na própria alma,
Esta lipotimia das sensações,
Isto...

Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra.
Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter em que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo.
Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
«Tenho pena que todos os dias não sejam assim» –
Assim, como aquele dia que não fora nada...

Ah, não sabias,
Felizmente não sabias,
Que a pena é todos os dias serem assim, assim;
Que o mal é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar –
Que a pena é essa...

Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas,
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que, no formidável algures da vida,
Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.
Porque o não haverias de ser?

Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo).
(...)
A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.
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ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


15/10/1929 (publicado na Presença, nº 27, Junho-Julho de 1930)
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Clarim claro da manhã ao fundo

Clarim claro da manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Ténue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis.

Clarim trémulo, poeira parada, onde a noite cessa
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
Tosse seca, nova do que sai de casa,
Leve arrepio matutino na alegria de viver,
Gargalhada subida velada pela bruma exterior não sei como,
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
Inevitavelmente vital,
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
Abrem, aqui e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma cortina que oscila,
E refresca ilusões e recordações na minha alma de transeunte,
No meu coração banido de epidérmico espírito,
No meu cansado e velado (...)
(...)
(...) e caminha tudo
Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
E rumor tráfego carroça comboio eu-sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
Sol nos vértices e nos (...) da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva seca,
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu-sinto sol rua,
Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas «perdão» rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá

A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camião rua não me recordo rua
Eu de cabeça p’ra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua p’ra trás e p’ra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em 7 por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.

Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá,
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REALIDADE

REALIDADE


Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou por isso –
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia que subi esta rua pensando alegremente no futuro,
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isto realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...


15/12/1932
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INSÓNIA

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite.
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite –
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
– Todas aquelas de que me arrependo e me culpo –;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
– Todas aquelas de que me arrependo e me culpo –;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho forço para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos –
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir,
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo – sei lá o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.


27/03/1929
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ODE TRIUNFAL

ODE TRIUNFAL


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés – oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocottes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo?)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes –
Das colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá-hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah! olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares,<
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A PASSAGEM DAS HORAS [a]

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavismo,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

Das terrasses de todos os cafés de todas as cidades
Acessíveis à imaginação
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
Vou ao lado dela sem ela saber.
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me, não há modo de eu não estar em toda o parte.
O meu privilégio é tudo
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

Assisto a tudo definitivamente.
Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinquenta
Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo electron-ion, sistema solar resumido
Por dentro da acção dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstracta e louca,
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho!...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria ideia veloz do corpo projectado,
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho... Helahoho...


Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do eléctrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
Ho----

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias abstractas,
A mesmo seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos locomotiva, carro eléctrico, automóvel, debulhadora a vapor,
Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell,
Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a electricidade,
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, nocturna,
Rola no espaço abstracto, na noite mal iluminada realmente
Rola...

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstracto,
Para inencontrável, ali sem restrições nenhumas,
A Meta invisível – todos os pontos onde eu não estou – e ao mesmo tempo...

Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem outro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todos as ruas...

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas...

Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la hup-la...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todos as coisas,
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
Clarim claro da manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Ténue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis...

Clarim trémulo, poeira parada, onde a noite cessa,
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
Tosse seca, nova do que sai de casa,
Leve arrepio matutino na alegria de viver,
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
Inevitavelmente vital,
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
Abrem aqui e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma colina que oscila,
(...)
... e caminha tudo
Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens –
Sol dos vértices e nos (...) da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva seca,
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas «perdão» rua
Rua a passear por mim pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camião rua não me recordo rua

Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios abaixo
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objectos projécteis!
À moi, todos os objectos direcções!
À moi, todos os objectos invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por todas as ideias dentro,
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstracto nos ares,
Senhor supremo da hora europeia, metálico cio.

Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
(...)

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstracta,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir...
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada voo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago
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Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido –
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro –
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.


11/05/1928
2019
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Passo, na noite da rua suburbana,

Passo, na noite da rua suburbana,
Regresso da conferência com peritos como eu.
Regresso só, e poeta agora, sem perícia nem engenharia,
Humano até ao som dos meus sapatos solitários no princípio da noite
Onde ao longe a porta da tenda tardia se encobre com o último taipal.
Ah, o som do jantar nas casas felizes!
Passo, e os meus ouvidos vêem para dentro das casas.
O meu exílio natural enternece-se no escuro
Da aia meu lar, da rua meu ser, da rua meu sangue.
Ser a criança economicamente garantida,
Com a cama fofa e o sono da infância e a criada!
O meu coração sem privilégio!
Minha sensibilidade da exclusão!
Minha mágoa extrema de ser eu!

Quem fez lenha de todo o berço da minha infância?
Quem fez trapos de limpar o chão dos meus lençóis de menino?
Quem expôs por cima das cascas e do cotão das casas
Nos caixotes de lixo do mundo
As rendas daquela camisa que usei para me baptizarem?
Quem me vendeu ao Destino?
Quem me trocou por mim?
Venho de falar precisamente em circunstâncias positivas.
Pus pontos concretos, como um numerador automático.
Tive razão como uma balança.
Disse como sabia.

Agora, a caminho do carro eléctrico do término de onde se volta à cidade,
Passo, bandido, metafísico, sob a luz dos candeeiros afastados
E na sombra entre os dois candeeiros afastados tenho vontade de não seguir.
Mas apanharei o eléctrico.
Soará duas vezes a campainha lá do fim invisível da correia puxada
Pelas mãos de dedos grossos do condutor por barbear.
Apanharei o eléctrico.
Ai de mim; apesar de tudo sempre apanhei o eléctrico —
Sempre, sempre, sempre...
Voltei sempre à cidade,
Voltei sempre à cidade, depois de especulações e desvios,
Voltei sempre com vontade de jantar.
Mas nunca jantei o jantar que soa atrás de persianas
Das casas felizes dos arredores por onde se volta ao eléctrico,
Das casas conjugais da normalidade da vida!
Pago o bilhete através dos interstícios,
E o condutor passa por mim como se eu fosse a Crítica da Razão Pura...
Paguei o bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar.
E tudo isto são coisas que nem o suicídio cura.
767
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Minha imaginação é um Arco de Triunfo.

Minha imaginação é um Arco de Triunfo.
Por baixo passa roda a Vida.
Passa a vida comercial de hoje, automóveis, camiões,
Passa a vida tradicional nos trajes de alguns regimentos,
Passam todas as classes sociais, passam todas as formas de vida,
E no momento em que passam na sombra do Arco de Triunfo
Qualquer coisa de triunfal cai sobre eles,
E eles são, um momento, pequenos e grandes.
São momentaneamente um triunfo que eu os faço ser.

O Arco de Triunfo da minha Imaginação
Assenta de um lado sobre Deus e do outro
Sobre o quotidiano, sobre o mesquinho (segundo se julga),
Sobre a faina de todas as horas, as sensações de todos os momentos,
E as rápidas intenções que morrem antes do gesto.

Eu-próprio, aparte e fora da minha imaginação,
E contudo parte dela,
Sou a figura triunfal que olha do alto do arco,
Que sai do arco e lhe pertence,
E fita quem passa por baixo elevada e suspensa,
Monstruosa e bela.

Mas às grandes horas da minha sensação,
Quando em vez de rectilínea, ela é circular
E gira vertiginosamente sobre si-própria,
O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,
E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,
E toda a gente que passa,
E todo o passado da gente que passa,
E todo o futuro da gente que passa,
E toda a gente que passará
E toda a gente que já passou.
Sinto isto, e ao senti-lo sou cada vez mais
A figura esculpida a sair do alto do arco
Que fita para baixo
O universo que passa.
Mas eu próprio sou o Universo,
Eu próprio sou sujeito e objecto,
Eu próprio sou Arco e Rua,
Eu próprio cinjo e deixo passar, abranjo e liberto,
Fito de alto, e de baixo fito-me fitando,
Passo por baixo, fico em cima, quedo-me dos lados,
Totalizo e transcendo,
Realizo Deus numa arquitectura triunfal
De arco de Triunfo posto sobre o universo,
De arco de triunfo construído
Sobre todas as sensações de todos que sentem
E sobre todas as sensações de todas as sensações...

Poesia do ímpeto e do giro,
Da vertigem e da explosão,
Poesia dinâmica, sensacionista, silvando
Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo,
Em grandes rios de chama, em grandes vulcões de lume.
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Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,

Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, o impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
E que mais vale ser criança que querer compreender o mundo –
A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio!...


06/08/1931
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Se te queres matar, porque não te queres matar?

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


26/04/1926
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Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas —

Nas praças vindouras – talvez as mesmas que as nossas –
Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egipto dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As ideias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém –
Um dia talvez, em fluido abstracto, e substância implausível,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafísica, que tenho porque penso e sinto
Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?
E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,
Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,
E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,
E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma.
Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho,
E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;
Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,
Na minha alma vazia estou,
E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.

Fúria fria do destino,
Intersecção de tudo,
Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,
Consequência de ter corpo e alma,
E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.


03/02/1927
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Mestre, meu mestre querido!

Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.


15/04/1928
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SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN [a]

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN


Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo o que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!
Íncubo de todos os gestos,
Espasmo pra dentro de todos os objectos-força,
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares...
Quantas vezes eu beijo o teu retrato!
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá, –
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito

Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma –
Isso vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo –
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica.
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim – eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há-de passar por força, porque quando quero passou Deus!

Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da puta se me atrevesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
É comigo, com Deus, com o sentido – eu da palavra Infinito...
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracto do corpo fazendo maelstrons na alma...

Arre! Vamos lá prá frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá prá frente... Não faz diferença...

Vamos lá prá frente sem ser para parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho.
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda da pescoço...)
Agora, sim, partamos, vá lá prá frente.

Numa grande marche aux flambeaux-todas-as-cidades-da-Europa,
Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço
Meus versos soltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doida de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
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Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,

Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível – a de haver uma realidade.
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
– Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem.
Tudo quanto construem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequeno... se transforma em outra coisa –
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino –
Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino.
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas
De todas as vidas, abstractas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar porque é um tudo,
Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstracto
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?
Ah, não, nenhuma – nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gémeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gémeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a morte? Como se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.
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Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social.
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer; operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter de pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma; sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.
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LISBON REVISITED (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


(publicado na Contemporânea, nº 8, 1923)
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LISBON REVISITED (1926)

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Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada número de porta que me deram,

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!...


(publicado na Contemporânea, 3ª série, nº2, 1926)
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CASA BRANCA NAU PRETA

A CASA BRANCA NAU PRETA


Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma interrupção lateral na minha consciência...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...

Quem dera que houvesse
Um terceiro estado prá alma, se ela tiver só dois...
Um quarto estado prá alma, se são três os que ela tem...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir...

As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá,
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...

Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde?
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro
Naus partem – naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...

Não há substância de pensamento na matéria de alma com que penso...
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta,
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro...

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?
Húmida sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...

A casa branca nau preta...
Felicidade na Austrália...


11/10/1916
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RETICÊNCIAS

RETICÊNCIAS


Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem – um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...


15/05/1929
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CARNAVAL [a]

II. Carnaval

A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira...

A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões trás a alegria
Duma plebe farsante e copiosa...

Cada momento é um carnaval imenso,
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisto maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso

De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver o que é que faz ao pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...

Automóveis, veículos, (...)
As ruas cheias, (...)
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.

Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade (...)

Uma pândega esta existência toda...
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o ciente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...

E contudo eu estou como ninguém
De Amoroso acordo com isto tudo...
Não encontro em mim, quando em estudo,
Diferença entre mim e isto que tem

Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo...

Que tipos! Que agradáveis e antipáticos!
Como eu sou deles com um nojo a eles!
O mesmo tom europeu em nossas peles
E o mesmo ar conjuga-nos (...)

Tenho às vezes o todo de ser eu
Com esta forma de hoje e estas maneiras...
Gasto inúteis horas inteiras
A descobrir quem sou e nunca deu

Resultado a pesquisa... Se há um plano
Que eu forme, na vida que talho para mim
Antes que eu chegue desse plano ao fim
Será estar como antes fora dele. É engano

A gente ter confiança em quem tem ser...
(...)
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II - Ah o crepúsculo

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do «Sentimento de um Ocidental»!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas.
Que nem são países, nem momentos, nem vidas.
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
— Tu que me conheces — quem eu sou...
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SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN [b]

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

Portugal — Infinito, onze de Junho de 1915
Hé lá, á — á — á — á!
De aqui, de Portugal, de onde a Europa olha a América,
De onde tu teres existido é um efeito complexo,
Consciente de estar à vista, no palco para a plateia que é no auge.
Saúdo-te deliberadamente, saúdo-te
Desde o princípio de te saudar, como é próprio de ti.

Hé-lá Walt, old boy, meu velho arado das almas,
Hé-lá meu condottiere da sensualidade autêntica
Pirata do teu próprio génio,
Filho-pródigo da tua inspiração!

Ó sempre moderno e eterno; cantor dos concretos absolutos
Concubina fogosamente [...] do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te pela diversidade das coisas,
Sexualidade... etc.

Tu, o homem-mulher-criança-natureza-máquinas!
Tu, o p'ra-dentro, tu o p'ra-fora, tu o ao-lado de tudo!
Fulcro-sensualidade ao serviço do infinito, escada
Até não haver fim a subir, — e subir!

Saúdo-te e chamo
A tomar parte em mim na saudação que te faço
Tudo quanto cantaste ou desejaste cantar.
Ervas, árvores, flores, a natureza dos campos...
Homens, lutas, tratados — a natureza das almas...
Os artifícios, que dão sabor ao que não é artifício
As coisas naturais que valem sem valor dado,
As profissões com que o homem se interessa por ter vontade
As grandes ambições, as grandes raivas, as pálpebras
Descidas sobre a inutilidade metafísica de viver...
Chamo a mim, para os levar até ti,
Como a mãe chama a criança para a sentir ser
A totalidade dispersa do que interessa ao mundo...
Ah, que nada me fique de fora das algibeiras
Quando vou procurar-te.
Que nada me esqueça, se te saúdo, que nada
Falte, nem o faltar esqueça,
Porque faltar é uma coisa — faltar.

Vá! Vá! Tudo! O natural e o humano!
Vá, o que parte! vá, o que fica! vá o que lembra e o que esquece!
Tu tens direito a ser saudado por tudo
E eu, porque o vejo,
Tenho o direito a encanar a voz em tudo saudar-te
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Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?

Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando, do meio destes amigos que não conheço,
Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do meio destas vontades involuntariamente
Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!

Ah, navio que partes, que tens por fim partir,
Navio com velas, navio com máquina, navio com remos,
Navio com qualquer coisa com que nos afastemos,
Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa,
Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente,
Só válida à emoção através da saudade futura,
Da saudade, esquecimento que se lembra,
Da saudade, engano que se deslembra da realidade,
Da saudade, remota sensação do incerto
Vago misterioso antepassado que fomos,
Renovação da vida antenatal, [...]
Absurdamente surgindo, estática e constelada
Do vácuo dinâmico do mundo.

Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,
Que têm realidade na alma,
Que não são mitos, são a realidade
Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la...
Eu quero partir, como quem exemplarmente parte.
Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou?
Para que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou,
Mas isto tudo é como uma realidade longínqua
Daqueles que não partiram ou daqueles
Cujo lar é nenhum e de memória
Quando, navio [...], deixaremos o lar que não temos?

Navio, navio, vem!
Ó lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete,
Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,
Navio de passageiros de todas as nações diversas,
Navio todos os navios,
Navio possibilidade de ir em todos navios
Indefinidamente, incoerentemente,
À busca de nada, À busca de não buscar,
À busca só de partir.
À busca só de não ser
À primeira morte possível ainda em vida —
O afastamento, a distância, a separar-nos de nós.

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada...
Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,
Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a roda multicolor girando branca aos olhos
Do fantasma inteiro que somos,
Lágrima das pálpebras descidas
Do olhar velado divino.

Navio quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me
A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!
Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,
O rio entre mim e a margem.
O mar entre mim e o cais,
A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!
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Sentir tudo de todas as maneiras,

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstracta,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante num abraço comovido
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E...
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, o sombra que espera nas vielas —
Todos são a minha amante predilecta pelo menos um momento na vida.
Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos,
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas — absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
Sim, e o que tenho eu sido, ó meu subjectivo universo,
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!)

Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim...

Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria, estalagem, calabouço número qualquer coisa,
(«Aqui estuvo ei Manolo en visperas de ir al patibulo»)
Meu coração club, sala, plateia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sobre sóis, nocturna,
Rola no espaço abstracto, na noite mal iluminada realmente
Rola e (...)

Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstracto,
Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
A Meta invisível todos os pontos onde eu não estou, e ao mesmo tempo
(...)
Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas,
Saber onde (...)

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas...
Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la hup-la......

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde
De todos os consumos de energia
Cavalgada de mil amperes, [...]
Cavalgada explosiva, explodida como uma bomba que rebenta
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo electrão — ião —, sistema solar resumido
Por dentro da acção dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstracta e louca,
Ajo a ferro e velocidade, vai-vem, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria ideia veloz do corpo projectado,
Com espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho... Helahoho.

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do eléctrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO
HO-HO-HO-HO-HO-HO-HO

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave. salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis,
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias abstractas,
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos locomotiva, carro-eléctrico, automóvel, debulhadora a vapor,
Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell,
Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a electricidade,
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios abaixo
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objectos projécteis!
À moi, todos os objectos direcções!
À moi, todos os objectos invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por todas as ideias dentro,
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as filosofias, os trapos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstracto nos ares,
Senhor supremo da hora europeia metálico e cio.

Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
Vamos que mesmo eu fique atrás da cavalgada, que eu fique
Arrastado à cauda do cavalo, torcido, rasgado, perdido
Em queda, meu corpo e minha alma atrás da minha ânsia abstracta
Da minha ânsia vertiginosa de ultrapassar o universo,
De deixar Deus atrás como um marco miliário nulo,
De deixar o m(...)

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói.
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstracta,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir...
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou,
(...)

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada voo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo-eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...
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ODE MARCIAL

ODE MARCIAL

Inúmero rio sem água – só gente e coisas,
Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido,
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!

Helahoho! helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta...
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! Helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou.
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito.

E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar,
E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e bati-lhe.
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviúve e a quem aconteça isto?

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trémulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo.
Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!
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LÀ-BAS, JE NE SAIS OÙ

LÀ-BAS, JE NE SAIS OÙ ...


Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstracta e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado do linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida –
«E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?» –

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se – dizem – que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...
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Sou vil, sou reles, como toda a gente

BARROW-ON-FURNESS

I

Sou vil, sou reles, como toda a gente,
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
– Acaba lá com isso, ó coração!

II

Deuses, forças, almas de ciência ou fé.
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.

Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer...

Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outra coisa te põe separado?

Deixa de ser novelo o que nos fica...
A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?
Por mim, só me levanto da barrica.

III

Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjectiva!
Qual «leva ao mar»! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se activa,
Morre a pôr etiquetas ao grande ar...

Escancarado Furness, mais três dias
Te aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilíssimas vistorias...

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso...

IV

Conclusão a sucata! ... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...

A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...

Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...

V

Há quanto tempo, Portugal, há quanto
Vivemos separados! Ah, mas a alma,
Esta alma incerta, nunca forte ou calma,
Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.

Sonho, histérico oculto, um vão recanto...
O rio Furness, que é o que aqui banha,
Só ironicamente me acompanha,
Que estou parado e ele correndo tanto...

Tanto? Sim, tanto relativamente...
Arre, acabemos com as distinções,
As subtilezas, o interstício, o entre,
A metafísica das sensações –

Acabemos com isto e tudo mais...
Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!
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Grande libertador

ODE "A PARTIDA"

(excertos)

Grande libertador,
Que quebraste as algemas de todas as mortes – as do corpo e as da alma
A morte, a doença, a tristeza
A arte, e a ciência, e a filosofia...
Grande libertador
Que arrasaste os muros da cadeia velha
E fizeste ruir os andaimes da cadeia nova,
Que abriste de par em par as janelas todas
Nas salas todas de todas as casas,
E o vento real limpou do fumo e do sono
As salas dadas aos prazeres dos sonhos,
......................................................

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,
Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa.
Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica –
Não ter tido a tua calma superior a ti próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra,
...........................................................

Ah, se todo este mundo claro, e estas flores e luz,
Se todo este mundo com terra e mar e casas e gente,
Se todo este mundo natural, social, intelectual,
Estes corpos nus por baixo das vestes naturais,
Se isto é ilusão, por que é que isto está aqui?
Ó mestre Caeiro, só tu é que tinhas razão!
Se isto não é, por que é que é?
Se isto não pode ser, então porque pôde ser?

Acolhei-a, ao chegar,
A ela, à Morte, a esse erro da vista,
Com os cheiros dos campos, e as flores cortadas trazidas ao colo,
Com as romarias e as tardes pelas estradas,
Com os ranchos festivos, e os lares contentes,
Com a alegria e a dor, com o prazer e a mágoa,
Com todo o vasto mar movimentado da vida.

Acolhei-a sem medo,
Como quem na estação de província, no apeadeiro campestre,
Acolhe o viajante que há-de chegar no comboio do Além.
Acolhei-a contentes,
Crianças cantando de riso, corpos de jovens nos jogos,
Alegria rude e natural das tabernas.
E os braços e os beijos e os seios das raparigas.

....................................................

Da casa do monte, símbolo eterno e perfeito,
Vejo os campos, os campos todos,
E eu os saúdo por fim com a voz verdadeira,
Eu lhes dou vivas, chorando, com as lágrimas certas e os vivas exactos
Eu os aperto a meu peito, como filho que encontrasse o pai perdido.

Vivam, vivam, vivam
Os montes, e a planície, e as ervas!
Vivam os rios, vivam as fontes!
Vivam as flores, e as árvores, e as pedras!
Vivam os entes vivos – os bichos pequenos,
Os bichos que correm, insectos e aves,
Os animais todos, tão reais sem mim,
Os homens, as mulheres, as crianças,
As Famílias, e as não-famílias, igualmente!
Tudo quanto sente sem saber porquê!
Tudo quanto vive sem pensar que vive!
Tudo que acaba e cessa sem angústia nem nada,
Sabendo, melhor que eu, que nada há que temer,
Que nada é fim, que nada é abismo, que nada é mistério,
E que tudo é Deus, e que tudo é Ser, e que tudo é Vida.

Ah, estou liberto!
Ah, quebrei todas
As algemas do pensamento.
Eu, o claustro e a cave voluntários de mim mesmo,
Eu o próprio abismo que sonhei,
Eu, que vi em tudo caminhos e atalhos de sombra
E a sombra e os caminhos e os atalhos estavam em mim!
Ah, estou liberto...
Mestre Caeiro, voltei à tua casa do monte
E vi a verdade que vias, mas com meus olhos,
Verdadeiramente com meus olhos,
Verdadeiramente verdade.
Ah, vi que não há morte alguma!
Vi que

Não há abismos!
Nada é sinistro!
Não há mistério ou verdade!
Não há Deus, nem vida, nem alma distinta da vida!
Tu, tu Mestre Caeiro, tu é que tinhas razão!
Mas ainda não viste tudo, tudo é mais ainda!
Alegre cantaste a alegria de tudo,
Mas sem pensá-lo tu sentias
Que é porque a alegria de tudo é essencialmente imortal.
Como cantaras alegre a morte futura
Se a puderas pensar como morte,
Se deveras sentiras a noite e o acabamento?
Não, não: tu sabias
Não com teu pensamento, mas com teu corpo inteiro,
Com todos os teus sentidos tão acordados ao mundo
Que não há nada que morra, que não há coisa que cesse,
Que cada momento não passa nunca,
Que a flor colhida fica sempre na haste,
Que o beijo dado é eterno,
Que na essência e universo das coisas,
Tudo é alegria e sol
E só no erro e no olhar há dor e dúvida e sombra.
Embandeira a canto e rosas!
E da estação de província, do apeadeiro campestre
Lá vem o comboio!
Com lenços agitados, com olhos que brilham eternos
Saudemos em ouro e flores a morte que chega!

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ODE MORTAL

ODE MORTAL


Tu, Caeiro meu mestre, qualquer que seja o traje
Com que vestes agora, distante ou próxima, a essência
Da tua alma universal localizada,
Do teu corpo divino intelectual...

Viste com a tua cegueira perfeita, sobre o não ver...
Porque o que viste com os teus dedos mortais e admiráveis
Foi a face sensível e não a face física das coisas
Foi a realidade, e não o real.
Porque a verdade que é tudo é só a verdade que há em tudo,
E a verdade que há em tudo é a verdade que o mostra!

Ah, sem cansaço antecipado da marcha
Nem cadáver velado pelo próprio cadáver na alma
Nas noites em que o vento assobie no mundo deserto
E a casa onde dorme é um túmulo de tudo,
Nem o sentir-se morto impossivelmente sentindo-se cadáver,
Nem a consciência de não ter consciência dentro de tábuas e chumbo,
Nem nada...
Olho o céu de dia, e olho o céu de noite –
E este universo esférico e côncavo
Vejo-o como um espelho dentro do qual vivamos,
Limitado porque é a parte de dentro,
Mas com estrelas e sol rasgando o vidro
Para fora, para o convexo que é infinito.

Gritai de alegria, gritai comigo, gritai,
Coisas cheias, sobre-cheias,
Que sois minha vida turbilhonante...
Eu vou sair da esfera oca
Não por uma estrela, mas pela luz de uma estrela...
Vou para o espaço real...
Que o espaço, cá dentro é espaço que está fechado
E só parece infinito por estar fechado muito longe...
Muito longe em pensá-lo...
A minha mão está já no puxador-luz.
Vou abrir com um gesto largo,
Com um gesto autêntico e mágico
A Porta para o Convexo,
A janela para o Informe,
A Razão para o maravilhoso definitivo.

Vou poder circumnavegar por fora este dentro
Que tem as estrelas no fim, vou ter o céu
Por baixo do sobrado curvo –
Tecto da cave das coisas reais,
Da abóbada nocturna da morte e da vida...

Vou partir para FORA,
Para o Arredor Infinito,
Para a circunferência exterior, metafísica,
Para a luz por fora da noite,
Para a Vida-morte por fora da Morte-Vida.

E aí, no Verdadeiro,
Tirarei os astros e a vida da algibeira como um presente ao Certo,
Lerei a Vida de novo, como uma carta guardada
E então, com luz melhor, perceberei a letra e saberei.

O cais está cheio de gente a ver-me partir.
Mas o cais é à minha volta e eu encho o navio.
E o mar é cama, caixão, sepultura...
E eu não sei o que sou pois já não estou ali...

E eu, que cantei
A civilização moderna, aliás igual às antigas,
As coisas do meu tempo só porque esse tempo foi meu,
As máquinas, os motores,
Vou em diagonal a tudo para cima.
Passo pelos interstícios de tudo,
E como um pó sem ser rompo o invólucro

E partirei, globe-trotter do Divino,
Quantas vezes, quem sabe?, regressando ao mesmo ponto.
(Quem anda de noite que sabe do andar e da noite?),
Levarei na sacola o conjunto do visto –
O céu de estrelas, e o sol em todos os modos,
E todas as estações e as suas milhares de cores,
E os campos, e as serras, e as terras que cessam em praias,
E o mar para além, e o para além do mar que há além.

E de repente se abrirá a Última Porta das coisas
E Deus, como um Homem, me aparecerá por fim.
E será o Inesperado que eu esperava
O Desconhecido que eu conheci sempre –
O único que eu sempre conheci,
(...)

12/01/1927
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A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa

A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo...
Que pena eu não ter casado com ela...
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido
Do que teria sido, que é o que nunca foi?

Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,
Mas antes que até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela.
E assim é tudo arrependimento,
E o arrependimento é pura abstracção.
Dá um certo desconforto
Mas também dá um certo sonho...

Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha alma.
Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma.
Santo Deus! que complicação por não ter casado com uma inglesa que já me deve ter esquecido!...
Mas se não me esqueceu?
Se (porque há disso) me lembra ainda e é constante
(Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados
E às vezes por mulheres!)
Se não me esqueceu, ainda me lembra.
Isto, realmente, é já outra espécie de arrependimento.
E fazer sofrer alguém não tem esquecimento.

Mas, afinal, isto são conjecturas da vaidade.
Bem se há-de ela lembrar de mim, com o quarto filho nos braços,
Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Pussy Maria.

Pelo menos é melhor pensar que é assim.
É um quadro de casa suburbana inglesa,
É uma boa paisagem íntima de cabelos louros,
E os remorsos são sombras...
Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme.
O quarto filho do outro, o Daily Mirror na outra casa.
O que podia ter sido...
Sim, sempre o abstracto, o impossível, o irreal mas perverso —
O que podia ter sido.
Comem marmelade ao pequeno almoço em Inglaterra...
Vingo-me em toda a linguagem inglesa de ser um parvo português.

Ah, mas ainda vejo
O teu olhar realmente tão sincero como azul
A olhar como uma outra criança para mim...
E não é com piadas de sal do verso que te apago da imagem
Que tens no meu coração;
Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da vida.
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CUL DE LAMPE

CUL DE LAMPE

Pouco a pouco,
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Acabei.

Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
(Que importa tudo quanto me tem sido dito na vida?),
Sem que ninguém me escutasse
(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)
Sem que ninguém me quisesse
(Que importa o que disse quem me disse que queria?),
Muito bem...
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando,
Vou parar,
Acabei.

Qual acabei!
Estou farto de sentir e de fingir em pensar,
E não acabei ainda.
Ainda estou a escrever versos.
Ainda estou a escrever.
Ainda estou.

(Não, não vou acabar
Ainda...
Não vou acabar.
Acabei.)

Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto e que vulto nela?
E o horror de ter perdido a infância em que ali não estive
E o caminho vagabundo da minha consciência inexequível.

Que mais querem? Acabei.
Nem falta o canário da vizinha ó manhã de outro tempo,
Nem som (cheio de cesto) do padeiro na escada
Nem os pregões que não sei já onde estão —
Nem o enterro (ouço as vozes) na rua,
Nem trovão súbito da madeira das tabuinhas de defronte no ar de verão
Nem... quanta coisa, quanta alma, quanto irreparável!
Afinal, agora tudo cocaína...
Meu amor infância!
Meu passado bibe!
Meu repouso pão com manteiga boa à janela!
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!
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Lentidão dos vapores pelo mar...

Lentidão dos vapores pelo mar...
Tanto que ver, tanto que abarcar.
No eterno presente da pupila
Ilhas ao longe, costas a despontar
Na imensidão oceânica e tranquila.

Mais depressa... Sigamos... Hoje é o real...
O momento embriaga... A alma esquece
Que existe no mover-se... Cais, carnal...
Para os botes no cais quem é que desce?
Que importa? Vamos! Tudo é tão real!

Quantas vidas que ignoro que me ignoram!
Passo por casas, fumo em chaminés
Interiores que adivinho! Choram
Em mim desejos lívidos resvés
Do tédio de ser isto aqui, e ali
Outro não-eu... Sigamos... Outras terras!

Quantas paisagens vivi!
Planícies! mares! serras
Ao longe! Pareceis com tanta curva,
Pinheirais! Igualdade das culturas!
Dias monótonos de chuva...
Noites de lua nova — canto de ruelas escuras

Antros... Dias de sol — de agasalho
De que o olhar abrasa e amodorrado
Mal tem espaço para desejar...
Campos cheios de vultos em trabalho
À sombra de um carvalho ali isolado
— Ah e eu passo! — um mendigo a descansar.

O longe! O além! O outro! A rota! Ir!
Ir absolutamente! ir entregadamente
Ir sem mais consciência de sentir
Que tem um suicida na corrente
Que passa a dor da morte na água a rir.

        Sonho-desolação!
Ó meu desejo e tédio das viagens,
Cansado anseio do meu coração —
        Cidades, brumas, margens
        De rios desejadas para     olhar...
        Costa triste, ermo mar
        Barulhando segredos,
Negrume cortiçado dos rochedos
D'onde pulsa chiando a espuma na água —
        — Frio pela consciência dos meus nervos —
        De não estar eu a ver-vos, ódio-mágoa!
Ó Tédio! só pensar estar a ver-vos...

Gozo gloriosamente estéril e oco
De encher de memórias de cidades,
De campos fugitivos, feitos pouco
Na fuga do comboio — sociedades
Só pensadas de velha bancarrota

Surpresas no olhar sobre colinas,
Rios sob pontes, águas instantâneas
Grandes cidades através neblinas
Fábricas — fumo e fragor — sonhos insónias...

Mares súbitos, através carruagens
Vistos por meu olhar sempre cansado
Tudo isto cansa, só de imaginado
Tenho em minha alma o tédio das viagens

Que quero eu ser? Eu que desejo querer?
Feche eu os olhos, e o comboio seja
Apenas um estremecimento a [encher?]
Meu corpo inerte, meu cérebro que nada deseja
E já não quer saber o que é viver...

Minuto exterior pulsando em mim
Minuciosamente, entreondulando
Numa oscilada indecisão sem fim
Meu corpo inerte... Sigo, recostando
Minha cabeça no vidro que me treme
De encontro à consciência o meu ser todo;
Para quê viajar? O tédio vai ao leme
De cada meu angustiado modo.

Por entre árvores — fumo...
Ó domésticos (...) escondidos!
Ó tédio... Ó dor... O vago é o meu rumo.
Viajo só pelos meus sentidos
Dói-me a monotonia dessa viagem...
Peso-me... Entreolho sem me levantar
Estações (...) ... [Campolides?]... Reagem
Inutilmente em mim desejos de gozar...
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Bem sei que tudo é natural

Bem sei que tudo é natural
Mas ainda tenho coração...

Boa noite e merda!...
(Estala, meu coração!)
(Merda para a humanidade inteira!)

Na casa da mãe do filho que foi atropelado,
Tudo ri, tudo brinca.
E há um grande ruído de buzinas sem conta a lembrar

Receberam a compensação:
Bebé igual a X,
Gozam o X neste momento,
Comem e bebem o bebé morto,
Bravo! São gente!
Bravo! São a humanidade!
Bravo: são todos os pais e todas as mães
Que têm filhos atropeláveis!
Como tudo esquece quando há dinheiro.
Bebé igual a X.

Com isso se forrou a papel uma casa.
Com isso se pagou a última prestação da mobília.
Coitadito do Bebé.
Mas, se não tivesse sido morto por atropelamento, que seria das contas?
Sim, era amado.
Sim, era querido
Mas morreu.
Paciência, morreu!
Que pena, morreu!
Mas deixou o com que pagar contas
E isso é qualquer coisa.
(É claro que foi uma desgraça)
Mas agora pagam-se as contas.
(É claro que aquele pobre corpinho
Ficou triturado)
Mas agora, ao menos, não se deve na mercearia.
(É pena sim, mas há sempre um alívio.)

O bebé morreu, mas o que existe são dez contos.
Isso, dez contos.
Pode fazer-se muito (pobre bebé) com dez contos.
Pagar muitas dívidas (bebezinho querido)
Com dez contos.
Pôr muita coisa em ordem
(Lindo bebé que morreste) com dez contos.

Bem se sabe é triste
(Dez contos)
Uma criancinha nossa atropelada
(Dez contos)
Mas a visão da casa remodelada
(Dez contos)
De um lar reconstituído
(Dez contos)
Faz esquecer muitas coisas (como o choramos!)
Dez contos!
Parece que foi por Deus que os recebeu
(Esses dez contos).
Pobre bebé trucidado!
Dez contos.
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Com as malas feitas e tudo a bordo

Com as malas feitas e tudo a bordo
E nada mais a esperar da terra que deixamos,
Já com os trajes moles característicos dos viajantes, debruçados da amurada
Digamos adeus com um levantar da alegria ao que fica,
Adeus às afeições, e aos pensamentos domésticos, e às lareiras, e aos irmãos,
E enquanto se abre o espaço entre o navio lento e o cais
Gozemos uma grande esperança indefinida e arrepiada,
Uma trémula sensação de futuro.

Eis-nos a caminho, e quase a meio do rio
Aumenta a nitidez deixada na terra
Dos alpendres e dos guindastes ou das mercadorias descarregadas
E não é a nós, felizmente, que diz adeus aquela família
Aglomerada no extremo do cais, com um cuidado subjectivo e visível
De não cair dentro de água no meio da emoção.

Olhemos para os companheiros de bordo. Como são diversos!
Uns vão em trânsito. Não é com eles nenhuma destas despedidas.
Outros, com um ar palidamente sorridente de não querer chorar,
Acenam com um gesto deselegante e pouco afoito com os lenços
Para lenços que se acenam de outra gente que ficou no cais
No cais — ah reparem — subitamente tão mais longe do que notámos.

A amargura alegre da ida,
O sabor especial a começo de viagem marítima, a mistura com nossos sentidos
De cheiro das malas, de cheiro a navio, de cheiro a comida de bordo,
E a nossa alma é um composto confuso de cheiros e sabores
E tudo é a viagem indefinida que faremos vista através do paladar e do olfacto,
Tudo é a incerteza sensual da vida sentida pela espinha abaixo...

E nós não deixamos ninguém...
Se deixássemos, ah os lenços que lindos!, o navio que se afasta
Afastar-se-ia de mais do que da terra;
Afastava-se do nosso passado todo, de nós-mesmos, ficados no cais e aqui a caminho,
Do sentimento doméstico com que beijamos a nossa mãe,
Da alegria com que às vezes, brincando, arreliamos as nossas irmãs...
Partir! partir é viver excessivamente. O que é tudo senão partir...
Todos os dias do cais da nossa vida nos separamos, navios (...),
E vamos para o futuro como se fossemos para o Mistério,
Mas que sabemos nós para onde vamos, ó dor, e o que somos,
E que proteico e fluido Deus é tutelar das partidas?
Olha, de longe, já os guindastes ainda mexendo,
Olha as figuras no cais, negras figuras, manchadas de lenços que se acenam,
Olha os casarões de zinco ondulado dos cais e docas, às portas deles,
O sossego destacado e acostumado a isto dos empregados e dos carregadores...
Vai tal angústia, tão inexplicável angústia na minha alma,
Que não sei como têm coragem, vendo que eu grito assim, para estarem parados
No cais, tranquilamente os descarregadores e os guardas fiscais!

Bebedeira da vida... ligeiro nervoso nas nossas sensações...
Perturbação alcoólica dos nossos sentidos íntimos...
A nossa alma sai um pouco para fora do seu lugar
E as rodas da nossa vida quotidiana começam a cambalear como se fossem sair do eixo...

Pelo convés fora a gente que já está acostumada a estar aqui a bordo
Está alheia a isto e interessada contudo
(Ah [enquanto eu atirar meu directo olhar, nunca?] olhar tranquilo,
Fremem em mim os nervos vibrados de todos que vejo que sentem,
Correm-me dos olhos as lágrimas de todos que choram porque se separam,
Tenho nas mãos os gestos circulares de mãos saudosas já que acenam com lenços,
Sou todas as penas que toda esta gente tem de se ir embora...
Sou as esperanças que levam consigo e agora lhes fazem mais trémula a dor da partida,
Estou [...] por dentro deles todos, na roupa que compraram para a viagem,
Nos pequenos objectos que, na véspera («Lá me ia esquecendo» dizem, e era uma coisa inútil)
Compraram de noite numa loja feérica cheia de malas de couro e que ia fechar...
Ah, com todos os nervos de toda a gente, os meus nervos vibram...
E com os estremeções das máquinas do navio, e com o estralejar da bandeira ao vento
E com o túmido tremor das enxárcias e com o ondular dos toldos
E toda a minha alma é uma dolorosa vibração física em ritmos de mim).

Vida cosmopolita atirada aos quatro ventos...
Vida de tanta gente real a bordo de tantos navios...
Embriaguez de lidar com outra gente e saber que eles existem e têm vidas passadas, preparadas, gozadas,
Sofridas, e tão curioso o traje, interessante a moral, de cada pessoa,
E tão cheio de enigmas e de metafísicas o modo como falam, como riem, como arranjam o cabelo, como se entendem uns com os outros...

Sensação metafísica das outras pessoas e das suas realidades, e do seu décor...
Ó doença humanitária dos meus nervos vibrando cheios de outras pessoas,
Volúpia de gozar e sofrer através de hipóteses dos outros...
E eu ser só eu, só eu eternamente, e não ter outras vidas senão a minha!
Como se tocassem o fado de repente à meia-noite numa aldeia na América do Norte,
Um fatalismo metafísico com os nervos de toda a gente vibra em mim a cada momento
Quando reparo cosmopoliticamente nos outros, e ouço várias línguas
E vejo nos gestos e nos trajes — que parecem idênticos mas são tão diferentes — várias pátrias, vários costumes,
E entrevejo lares diversos, vidas comerciais complexas, amores desconhecidos, mas de cidades que desconheço,
Tudo como num animatógrafo num teatro do tamanho do Universo,
Onde se soubesse que acabava o mundo e saindo para fora,
Não há casa para onde se regresse, nem automóvel que nos leve para um lugar qualquer,
Mas a Noite Absoluta, e Deus talvez como uma Lua Enorme significando

IV

Profunda e religiosa solidão do indefinido Universo,
Vastidão enorme, nem larga nem alta nem comprida, mas só espaço, o constelado espaço
Deste mistério azul-negro e estrelado onde a terra é uma coisa
E as vidas aparecem como lanchas à superfície da água...
Raios de sol entrando pela janela entreaberta no quarto da casa de campo,
Meios-dias nas eiras abandonadas,
Tardes noites para encontros em outras margens de rios,
Fazei do nosso conseguimento natural um sossego, uma capa
E descei sobre a minha alma...
Vós, ó campos repousados e incivilizados
Vós ó rios tranquilamente passando por uma inquietação,
Vós ó jardins públicos às tardes visitados
Vós ó tanques de quintas, vós ó lareiras em solares,
E disperso arfar de sedas pretas o silêncio da noite.
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Meu cérebro fotográfico...

Meu cérebro fotográfico...
Vaga náusea física... o cies no longe cheira-me a aqui perto...
Que tristeza a de partir! What time did the captain say an order to leave? de partir e deixar atrás de nós
Não só as pedras da cidade, e as casas e a cidade vista de longe
Mas oh, [...] just ever and ever on that village on the other side up at river, it's just perfect in this [...]
Também as memórias antigas, as carícias maternas hoje na sepultura,
Tudo isso parece que ficou aqui, deixado aqui, e nós indo sem levar
                 isso tudo... Non, Monsieur, c'est de l'autre bord...

Ó Chico, não te chegues para fora
([...] oh!) podes cair!

Que lume na lenha da velha lareira provinciana — o senhor dá-me
        licença?... passa uma farda de guarda fiscal pelo meu ombro
        — e dos contos que me contavam nas noites de inverno
         u-uf-u-u-u-u... o apito do vapor...

Et vous aussi, Mark — Sim senhor, para o Rio de Janeiro
Tenho lá... yes, all the time... Ó pobre pequenino rio da minha terra!
O ruído da água — shl, shl, shlbrtsher, shlbrtsher, e o meu velho primo, perdido para sempre
Quase que me esqueço de me poder lembrar dele
         came into the smoking room... God [...] Lisboa? Oh, yes, but
         not (entram para dentro alguns dias [...] através da minha sensação
        deles no meu cérebro que não tem olhos para os ver)
u-u-u-u-u-u-u
        u u-u
        u-u-u-u-u-u
u-u-u-u-u-u-u-u-u
        u-u-u-u-u-u-u
        u-u-u-u-u-u u
        u-u-u
                  u-u-u
                  u-u
u-fff-(uu uff)
         f.f.
        (fff)
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Porta p'ra tudo!

Porta p'ra tudo!
Ponte p'ra tudo!
Estrada p'ra tudo!
Tua alma omnívora e (...)
Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher,
Tua alma os dois onde estão dois,
Tua alma o um que são dois quando dois são um,
Tua alma seta, raio, espaço,
Amplexo, nexo , sexo , Texas, Carolina, Nova Iorque,
Brooklyn Ferry à tarde,
Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,
Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!
Pum! pum! pum! pum! pum!
PUM!

Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,
O sujeito e o objecto, o activo e o passivo,
Aqui e ali, em toda a parte tu,
Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,
Marco miliário de todas as coisas que podem ser,
Deus Termo de todos os objectos que se imaginem e és tu!
Tu Hora.
Tu Minuto,
Tu Segundo!
Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,
Intercalamento, libertação ida, desfraldamento,
lntercalador, libertador, desfraldador, remetente,
Carimbo em todas as cartas,
Nome em todos os endereços,
Mercadoria entregue, devolvida, seguindo...
Comboio de sensações a alma-quilómetros à hora,
À hora, ao minuto, ao segundo. PUM!

E todos estes ruídos naturais, humanos, de máquinas
Todos eles vão juntos, tumulto completo de tudo,
Cheios de mim até ti, saudar-te
Cheios de mim até ti,
Vão gritos humanos, vão [...] de terra,
Vão os volumes dos montes,
Vão os rumores de águas,
Vão os barulhos da guerra,
Vão os estrondos da (...), os (...) da (...)
Vão os ruídos dos povos em lágrimas,
Vão os sons débeis dos ais no escuro
E vão mais cerca da vida, rodeando-me,
Prémio melhor do meu saudar-te
Os ruídos, cicios, assobios dos comboios
Os ruídos modernos e das fábricas,
Som regular,
Rodas,
[...],
Hélices
Pum...
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Não há abismos!

Da casa do monte, símbolo eterno e perfeito,
Vejo os campos, os campos todos,
E eu os saúdo por fim com a voz verdadeira,
Eu lhes dou vivas, chorando, com as lágrimas certas e os vivas exactos —
Eu os aperto a meu peito, como filho que encontrasse o pai perdido.

Vivam, vivam, vivam
Os montes, e a planície, e as ervas!
Vivam os rios, vivam as fontes!
Vivam as flores, e as árvores, e as pedras!
Vivam os entes vivos e os bichos pequenos,
Os bichos que correm, insectos e aves,
Os animais todos, tão reais sem mim,
Os homens, as mulheres, as crianças,
As famílias, e as não-famílias, igualmente!
Tudo quanto sente sem saber porquê!
Tudo quanto vive sem pensar que vive!
Tudo que acaba e nunca se aumenta com nada,
Sabendo, melhor que eu, que nada há que temer,
Que nada é fim, que nada é abismo, que nada é mistério,
E que tudo é Deus, e que tudo é Ser, e que tudo é Vida.

Ah, estou liberto!
Ah, quebrei todas
As algemas do pensamento.
Eu, o claustro e a cave voluntários de mim mesmo,
Eu o próprio abismo que sonhei,
Eu, que vi em tudo caminhos e atalhos de sombra
E a sombra e os caminhos e os atalhos eram eu!
Ah, estou liberto...
Mestre Caeiro, voltei à tua casa do monte
E vi o mesmo que vias, mas com meus olhos,
Verdadeiramente com meus olhos,
Verdadeiramente verdadeiros...
Ah vi que não há muitos abismos!

(...)

Não há abismos!
Nada é sinistro!
Não há mistério verdadeiro!
Não há mistério ou verdade!
Não há Deus, nem vida, nem alma distante da vida!
Tu, tu mestre Caeiro, tu é que tinhas razão!
Mas ainda não viste tudo; tudo é mais ainda!
Alegre cantaste a alegria de tudo,
Mas sem pensá-lo tu sentias
Que é porque a alegria de tudo é essencialmente inevitável.
Como cantaras alegre a morte futura

Se a puderas pensar como morte,
Se deveras sentiras a noite e o acabamento?
Não, não: tu sabias
Não com teu pensamento, mas com teu corpo inteiro,
Com todos os teus sentidos tão acordados ao mundo
Que não há nada que morra, que não há coisa que cesse,
Que cada momento não passa nunca,
Que a flor colhida fica sempre na haste,
Que o beijo dado é eterno,
Que na essência e universo das coisas
Tudo é alegria e sol
E só no erro e no olhar há dor e dúvida e sombra.
Embandeira em canto e rosas!

E da estação de província, do apeadeiro campestre,
— Lá vem o comboio!
Com lenços agitados, com olhos que brilham eternos
Saudemos em ouro e flores a morte que chega!

Não, não enganas!
Avó carinhosa de terra já grávida!
Madrinha disfarçada dos sentimentos expressos!

E o comboio entra na curva, mais lento, e vai parar...
E com grande explosão de todas as minhas esperanças
Meu coração universo
Inclui a ouro todos os sóis,
Borda-se a prata todas as estrelas,
Entumesce-se em flores e verduras,
E a morte que chega conclui que a já conhecem
E no seu rosto grave desabrocha
O sorriso humano de Deus!
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Por isso é a ti que endereço

Por isso é a ti que endereço
Meus versos saltos, meus versos pulos , meus versos espasmos,
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro (...) dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me-de-pé me-exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!

Não quero intervalos no mundo!
Quero a contiguidade penetrada e material dos objectos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstracto auge no fim de mim e de tudo!

Clímax a ferro e motores!
Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!
Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!
Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso.
As mãos apertaram-me no escuro.
Morri temporariamente de senti-lo.
Seguiu-se a minh’alma a lamber o chão do cárcere-privado,
E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,
Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,
Paradeiro indeciso do meu destino a motores!
Salta, pula, embandeira-te,
Deixa a sangue o rasto na imensidade nocturna ,
A sangue quente, [mesmo de longe?],
A sangue fresco [mesmo de longe?].
A sangue vivo e frio no ar dinâmico a mim!
Salta, galga, pula,
Ergue-te, vai saltando, (...)
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Foi numa das minhas viagens...

Foi numa das minhas viagens...
Era mar-alto e luar.
Cessara o ruído da noite a bordo.
Um a um grupo a grupo, recolheram-se os passageiros,
A banda era só uma estante que ficara a um canto não sei porquê...
Só na sala de fumo em silêncio jogava xadrez...
A vida soava pela porta aberta para a casa das máquinas.
Só... E um era uma alma nua diante do Universo...
(Ó minha vila natal em Portugal tão longe!
Porque não morri eu criança quando só te conhecia a ti?)

Ah. quando nos fazemos ao mar
Quando largamos da terra, quando a vamos perdendo de vista,
Quando tudo se vai enchendo de vento puramente marítimo,
Quando a costa se torna uma linha sombria,
Nessa linha cada vez mais vaga no anoitecer (pairam luzes) —
Ah então que alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver razão para existir socialmente.
Não há já razões para amar, odiar, dever,
Não há já leis, não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só a Partida Abstracta, o movimento das águas
O movimento do afastamento, o som
Das ondas arrulhando à proa,
E uma grande paz intranquila entrando suave, no espírito.

Ah ter toda a minha vida
Fixa instavelmente num momento destes,
Ter todo o sentido da minha duração sobre a terra
Tornado um afastamento dessa costa onde deixei tudo —
Amores, irritações, tristezas, cumplicidades, deveres,
A angústia irrequieta dos remorsos,
A fadiga da inutilidade de tudo,
A saciedade até das coisas imaginadas,
A náusea, as luzes,
As pálpebras pesadas sobre a minha vida perdida...

Irei p'ra longe, p'ra longe! P'ra longe, ó barco sem causa,
Para a irresponsabilidade pré-histórica das águas eternas,
Para longe, p’ra sempre para longe, ó morte.
Quando [souber?] onde para longe e porque para longe, ó vida...
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E se todos ligam pouca importância à morte, nem conseguem

E se todos ligam pouca importância à morte, nem conseguem
Sofrendo, ter verdadeiramente a concentração de sofrer,
É que a vida não crê na morte, é que a morte é nada.

Embandeira em arco, a todas as cores, ao vento
Sob o grande céu luminoso e azul da terra...
Danças e cantos,
Músicas alacres,
Ruídos de risos e falas, e conversas banais,
Acolham a morte que vem, porque a morte não vem,
E a vida sente em todas as suas veias,
O corpo acha em tudo o que nele é alma,
Que a vida é tudo, e a morte é nada, e que o abismo
É só a cegueira de ver,
Que tudo isto não pode existir e deixar de existir,
Porque existir é ser, e ser não se reduz ao nada.
Ah, se todo este mundo claro, e estas flores e luz,
Se todo este mundo com terra e mar e casas e gente,
Se todo este mundo natural, social, intelectual,
Estes corpos nus por baixo das vestes naturais,
Se isto é ilusão, porque é que isto está aqui?
Ó mestre Caeiro, só tu é que tinhas razão!
Se isto não é, porque é que é?
Se isto não pode ser, então porque pôde ser?

Acolhei-a, ao chegar,
A ela, à Morte, a esse erro da vista,
Com os cheiros dos campos, e as flores cortadas trazidas ao colo,
Com as romarias e as tardes pelas estradas,
Com os ranchos festivos, e os lares contentes,
Com a alegria e a dor, com o prazer e a mágoa,
Com todo o vasto mar movimentado da vida.

Acolhei-a sem medo,
Como quem na estação de província, no apeadeiro campestre,
Acolhe o viajante que há-de chegar no comboio de Além.
Acolhei-a contentes,
Crianças cantando de riso, corpos de jovens em fogo,
Alegria rude e natural das tabernas,
E os braços e os beijos e os sorrisos das raparigas.

Embandeira em arco a cores de sangue e verde,
Embandeira em arco a cores de luz e de fogo,
Que a morte é a vida que veio mascarada,
E o além será isto, isto mesmo, noutro presente
Não sei de que novo modo diversamente.
Gritai às alturas,
Gritos pelos vales,
Que a morte não tem importância nenhuma,
Que a morte é um [suposto?],
Que a morte é um (...)
E que se tudo isto é um sonho, é a morte um sonho também.
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Oh o maior horror de terem cessado os clarins

Oh o maior horror de terem cessado os clarins
Que sons indecisos nos traz o que substitui o vento
Nesta profunda palidez [...] dos que mataram?
Quem é que vem? O que nos vai dar
Que criança a soluçar em calma noite intranquila,
Meu irmão? A irmã de quem? Ó anos de infância
Em que eu olhava da janela os soldados e via os uniformes
E a sangrenta e carnal realidade das coisas não existia para mim!...

Choque de cavaleiros onde?
Artilharia, onde, onde, onde?
Ó dor da [indecisão?] com agitações inexplicáveis à superfície de águas estagnadas...
Ó murmúrio incompreensível da morte como que vento nas folhagens...
Ó pavor certo de uma realidade desenhada pelos espelhos indecisos...

(Lágrimas nas tuas mãos
E plácido o teu olhar...
E tu, amor, és uma realidade também...
Ah, não ser tudo senão um quadro, um quadro qualquer...
E quem sabe se tudo não será um quadro e a dor e a alegria
E a incerteza e o terror
Coisas, meras coisas, [...]
Lágrimas nas tuas mãos, no terraço sobre o lago azul da montanha
E lento o crepúsculo sobre os cumes altos das nossas duas almas
E uma vontade de chorar a apertar-nos aos dois ao seu peito...)

A guerra. a guerra, a guerra realmente.
Excessivamente aqui, horror, a guerra real...
Com a sua realidade de gente que vive realmente,
Com a sua estratégia realmente aplicada a exércitos reais compostos de gente real
E as suas consequências, não coisas contadas em livros
Mas frias verdades, de estragos realmente humanos, mortes de quem morreu, na verdade,
E o sol também real sobre a terra também real
Reais em acto e a mesma merda no meio disto tudo!

Verdade do perigo, dos mortos, dos doentes e das violações,
E os sons florescem nos gritos misteriosamente...
A gaiola do canário à tua janela, Maria,
E o sussurro suave da água que gorgoleja no tanque...

O corpo... E os outros corpos não muito diferentes deste,
A morte... E o contrário disto tudo é a vida...
Dói-me a alma e não compreendo...
Custa-me a acreditar no que existe...
Pálido e perturbado. não me mexo e sofro.
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São poucos os momentos de prazer na vida...

São poucos os momentos de prazer na vida...
É gozá-la... Sim, já o ouvi dizer muitas vezes
Eu mesmo já o disse. (Repetir é viver.)
É gozá-la não é verdade?

Gozêmo-la, loura falsa, gozêmo-la, casuais e incógnitos,
Tu, com teus gestos de distinção cinematográfica
Com teus olhares para o lado a nada,
Cumprindo a tua função de animal emaranhado;
Eu no plano inclinado da consciência para a indiferença,
Amemo-nos aqui. Tempo é só um dia.
Tenhamos o [romantismo?] dele!
Por trás de mim vigio, involuntariamente.
Sou qualquer nas palavras que te digo, e são suaves — e as que esperas.
Do lado de cá dos meus Alpes, e que Alpes! somos do corpo.
Nada quebra a passagem prometida de uma ligação futura,
E vai tudo elegantemente, como em Paris, Londres, Berlim.
"Percebe-se", dizes, «que o senhor viveu muito no estrangeiro."
E eu que sinto vaidade em ouvi-lo!
Só tenho medo que me vás falar da tua vida...
Cabaret de Lisboa? Visto que o é, seja.
Lembro-me subitamente, visualmente, do anúncio no jornal...
"Rendez-vous da sociedade elegante",
Isto.
Mas nada destas reflexões temerárias e futuras
Interrompe aquela conversa involuntária em que te sou qualquer.
Falo medias e imitações
E cada vez, vejo e sinto, gostas mais de mim a valer que (...) hoje;
É nesta altura que, debruçando-me de repente sobre a mesa
Te segredo em segredo o que exactamente convinha.
Ris, toda olhar e em parte boca, efusiva e próxima,
E eu gosto verdadeiramente de ti.
Soa em nós o gesto sexual de nos irmos embora.
Rodo a cabeça para o pagamento...
Alegre, alacre, sentindo-te, falas...
Sorrio.
Por trás do sorriso, não sou eu.
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Os mortos! Que prodigiosamente

Os mortos! Que prodigiosamente
E com que horrível reminiscência
Vivem na nossa recordação deles!

A minha velha tia na sua antiga casa, no campo
Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era...
Penso nisso e uma saudade toda raiva repassa-me...
E, além disso, penso, ela já morreu há anos...
Tudo isto, vendo bem, é misterioso como um lusco-fusco...
Penso, e todo o enigma do universo repassa-me.
Revejo aquilo na imaginação com tal realidade
Que depois, quando penso que aquilo acabou
E que ela está morta,
Encaro com o mistério mais palidamente
Vejo-o mais escuro, mais impiedoso, mais longínquo
E nem choro, de atento que estou ao terror da vida...

Como eu desejaria ser parte da noite,
Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espaço
Não propriamente um lugar, por não ter posição nem contornos,
Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe por todos os lados
E unido e afastado companheiro da minha ausência de existir...

Aquilo era tão real, tão vivo, tão actual!...
Quando em mim o revejo, está outra vez vivo em mim...
Pasmo de que coisa tão real pudesse passar...
E não existir hoje e hoje ser tão diverso...
Corre para o mar a água do rio, abandona a minha vista,
Chega ao mar e perde-se no mar,
Mas a água perde-se de si-própria?
Uma coisa deixa de ser o que é absolutamente
Ou pecam de vida os nossos olhos e os nossos ouvidos
E a nossa consciência exterior do Universo?
Onde está hoje o meu passado?
Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele?
Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo?
Tudo isto deve ter um sentido — talvez muito simples —
Mas por mais que pense não atino com ele.
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WALT WHITMAN

WALT WHITMAN

Onde não sou o primeiro, prefiro não ser nada, não estar lá,
Onde não posso agir o primeiro, prefiro só ver agir os outros.
Onde não posso mandar, antes quero nem obedecer.

Excessivo na ânsia de tudo, tão excessivo que nem falo,
E não falo, porque não tento.
«Ou Tudo ou Nada» tem um sentido pessoal para mim.
Mas ser universal — não o posso, porque sou particular.
Não posso ser todos, porque sou Um, um só, só eu Não posso ser o primeiro em qualquer coisa, porque não há o primeiro.
Prefiro por isso o nada de ser co-primeiro em ser nada.

Quando é que parte o último comboio, Walt?
Quero deixar esta cidade, a Terra,
Quero emergir de vez deste país, Eu,
Deixar o mundo com o que se comprova falido,
Como um caixeiro viajante que vende navios a habitantes do interior.

O fim a motores partidos!
Que foi todo o meu ser? Uma grande ânsia inútil —
Estéril realização com um destino impossível —
Máquina de louco para realizar o motu continuo,
Teorema de absurdo para a quadratura do círculo,
Travessia a nado do Atlântico, falando na margem de cá
Antes da entrada na água, só com eles e o cálculo,
Atirar de pedras à lua
Ânsia absurda do encontro dos paralelos Deus-vida.

Megalomania dos nervos,
Ânsia de elasticidade do corpo duro,
Raiva de meu concreto ser por não ser o auge-eixo
O carro da sensualidade de entusiasmo abstracto
O vácuo dinâmico do mundo!

Vamo-nos embora de Ser.
Larguemos de vez, definitivamente, a aldeia-Vida
O arrabalde-Mundo de Deus
E entremos na cidade à aventura, ao rasgo
Ao auge, loucamente ao Ir...
Larguemos de vez.

Quando parte, Walt, o último comboio p'ra aí?
Que Deus fui para as minhas saudades serem estas ânsias?
Talvez partindo regresse. Talvez acabando, chegue,
Quem sabe? Qualquer hora é a hora. Partamos,
Vamos! A estada tarda. Partir é ter ido.

Partamos para onde se fique.
Ó estrada para não-haver-estradas!
Término no Não-Parar!
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Futilidade, irrealidade, (...) estática de toda a arte,

Futilidade, irrealidade, (...) estática de toda a arte,
Condenação dos artistas a não viver!

Ó quem nos dera, Walt,
A terceira coisa, a média entre a arte e vida
A coisa que sentiste, e não seja estática nem dinâmica,
Nem real nem irreal
Nem nós nem os outros —
Mas como até imaginá-la?
Ou mesmo apreendê-la
Mesmo sem a esperança de não a ter nunca?

A dinâmica pura, a velocidade em si,
Aquilo que dê absolutamente as coisas,
Aquilo que chegue tactilmente aos sentidos,
Construamos comboios, Walt, e não os cantemos,
Cavemos e não cantemos, meu velho, o cavador e o campo,

Provemos e não escrevamos,
Amemos e não construamos,
Metamos dois tiros de revólver na primeira cabeça com chapéu
E não façamos onomatopeias inúteis e vãs no nosso verso
No nosso verso escrito em prosa, e depois [....].

Poema que esculpisse em Móvel e Eterno a escultura,
Poema que (...)se palavras
Que (...) ritmo o canto, a dança e (...)
Poema que fosse todos os poemas,
Que dispensasse bem outros poemas,
Poema que dispensasse a Vida.
Irra, faço o que quero, estorça o que estorça no meu ser central,
Force o que force em meus nervos industriados a tudo,
Maquine o que maquine no meu cérebro furor e lucidez,
Sempre me escapa a coisa em que eu penso,
Sempre me falta a coisa que (...) e eu vou ver se me falta,
Sempre me falta, em cada cubo, seis faces,
Quatro lados em cada quadrado do que quis exprimir,
Três dimensões na solidez que procurei perpetuar...
Sempre um comboio de criança movido a corda, a corda,
Terá mais movimento que os meus versos estáticos e lidos,
Sempre o mais verme dos vermes, a mais química célula viva
Terá mais vida, mais Deus, que toda a vida dos meus versos,
Nunca como os duma pedra todos os vermelhos que eu descreva,
Nunca como numa música todos os ritmos que eu sugira!
Nunca como (...)
Eu nunca farei senão copiar um eco das coisas,
O reflexo das coisas reais no espelho baço de mim.

A morte de tudo na minha sensibilidade (que vibra tanto!)
A secura real eterna do rio lúcido da minha imaginação!
Quero cantar-te e não posso cantar-te, Walt!
Quero dar-te o canto que te convenha,
Mas nem a ti, nem a nada, — nem a mim, ai de mim! — dou um canto...
Sou um surdo-mudo berrando em voz alta os seus gestos,
Um cego fitando à roda do olhar um invisível-tudo

Assim te canto, Walt, dizendo que não posso cantar-te!
Meu velho comentador da multiplicidade das coisas,
Meu camarada em sentir nos nervos a dinâmica marcha
Da perfeita físico-química da
Da energia fundamental da aparência das coisas para Deus,
Da distinta forma de sujeito e objecto para além da vida

Andamos a jogar às escondidas com a nossa intenção...
Fazemos arte e o que queremos fazer afinal é a vida.
O que queremos fazer já está feito e não está em nós fazê-Io,
E fá-lo o [...] melhor do que nós, mais de perto,
Mais instintivamente [...]
Sim, se o que nos poemas é o que vibra e fala,
4O mais casto gesto da vida é mais sensual que o mais sensual dos poemas,
Porque é feito por alguém que vive, porque é (...) porque é Vida.
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Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda.

Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda,
Ó meu guizo de prata,
Meu colar de pérolas deixado em cima da cómoda,
Minha aliança de ouro em dedos já velhinhos e fieis,
Minha cantiga de raparigas ao poente,
Ó meu fumo de cigarro, tão inútil e tão necessário,
Minha Bíblia para as crianças brincarem,
Minha amante que eu queria trazer ao colo como uma filha...

Olha, tenho as mãos em febre...
Tenho a testa a escaldar, tenho os olhos muito estranhos...
Todos olham para o brilho dos meus olhos e espetam-se neles...
Eu tenho febre e tenho sede e lembro-me de ti por causa disso
Porque se eu te tivesse como te quereria ter
(Não sei se é de um modo físico, ou de um modo psíquico)
Eu não teria nem febre, nem sede, nem a testa a arder,
Nem os olhos secos, muito secos, sob a fronte...

Tu não sabes o que tem sido a minha vida!...
Tu não sabes que martírio tem sido o meu...
Se tu soubesses o que é amar as coisas simples e calmas
E não ter jeito para procurar senão as outras coisas!
Se tu soubesses porque é que quando eu estou na minha quinta de dia
Tenho saudades dela como se não estivesse lá...
Se tu soubesses o que eu sinto à noite, nos hotéis, pelas ruas,
Se tu soubesses! Mas eu próprio não sei o que é que sinto...

Minha lantejoula, minha casa de bonecas,
Ó meus brinquedos da minha infância atados com cordéis!
Ó meu regimento que passa com a banda à frente,
Minha noite no circo, nos cavalinhos, a rir dos palhaços...
Ó minha (...)
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A PARTIDA [a]

A PARTIDA

Agora que os dedos da Morte à roda da minha garganta
Sensivelmente começam a pressão definitiva...
E que tomo consciência exorbitando os meus olhos,
Olho p'ra trás de mim, reparo pelo passado fora
Vejo quem fui, e sobretudo quem não fui
Considero lucidamente o meu passado misto
E acho que houve um erro
Ou em eu viver ou em eu viver assim.

Será sempre que quando a Morte me entra no quarto
E fecha a porta a chave por dentro,
E a coisa é definitiva, inabalável,
Sem Cour de cassation para o meu destino findo,
Será sempre que, quando a meia-noite soa na vida
Uma exasperação de calma, uma lucidez indesejada
Acorda como uma coisa anterior à infância no meu partir?
Último arranco, extenuante clarão, de chama que a seguir se apaga
Frio esplendor do fogo de artifício antes da cinza completa,
Trovão máximo sobre as nossas cabeças, por onde
Se sabe que a trovoada, por estar [...], decresceu.

Viro-me para o passado.
Sinto-me ferir na carne.
Olho com essa espécie de alegria da lucidez completa
Para a falência instintiva que houve na minha vida
Vão apagar o último candeeiro
Na rua amanhecente de minha Alma!
Sinal de [..]
O último candeeiro que apagam!
Mas antes que eu veja a verdade, pressinto-a
Antes que a conheça, amo-a.
Viro-me para trás, para o passado, não [visiono? ];
Olho e o passado é uma espécie de futuro para mim.

Mestre, Alberto Caeiro, que eu conheci no princípio
E a quem depois abandonei como um espantalho reles,
Hoje reconheço o erro, e choro dentro de mim,
Choro com a alegria de ver a lucidez com que choro
E embandeiro em arco à minha morte e à minha falência sem fim,
Embandeiro em arco a descobri-la, só a saber quem ela é.
Ergo-me em fim das almofadas quase cómodas
E volto ao meu remorso sadio.
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A PARTIDA [b]

A PARTIDA

Ave atque vale, ó assombroso universo!
Ave atque vale, de que diversa maneira
É que eu te verei, e será definitivamente,
Se haverá ainda mais vida, mais modos de te conhecer,
Mais lados de onde te olhar, — e talvez nunca te verei do Único —
Seja como for, ave atque vale, ó Mundo!

Partirei para aquele teu aspecto que a Morte deve revelar-me
Com o coração confrangido, a alma ansiosa, o olhar vago,
E toda a consciência da aventura pondo-me ondas no sangue...
Eu partirei para a Morte nada esperando encontrar
Mas disposto a ver coisas prodigiosas do outro lado do Mundo.

Ave atque vale, ó Universo espontâneo!
Verde esmiuçado a ervas nos prados contentes,
Verde escurecido das copas das árvores ao vento,
Escura brancura da água,
Penugem invisível dos brejos
Garras de sombra imaterial dos vendavais,
Grandes extensões (...) dos mares
Curso evidente dos rios
Ave atque vale! Até Deus! Até Mim! Até Vós!

Quando eu abandonar o meu ser como uma cadeira donde me levanto
Deixar atrás o mundo como a um quarto donde saio,
Abandonar toda esta forma, de sentidos e pensamento, de sentir as coisas,
Como uma capa que me prenda,
Quando de vez minha alma chegar à superfície da minha pele
E dispersar o meu ser pelo universo exterior,
Seja com alegria que eu reconheça que a Morte
Vem como um sol distante na antemanhã do meu novo ser.

Numa viagem oblíqua do meu leito de moribundo
Viagem em diagonal às dimensões dos objectos
Para o canto do tecto mais longe, a cama erguer-se-á do chão,
Erguer-se-á como um balão ridículo e seguirá
Como um comboio sobre os rails directamente...
 (...)
Não tenho medo, ó Morte, ao que não deixa entrever
O teu postigo proibido na tua porta sobre o mundo.

Estendo os braços para ti como uma criança
Do colo da ama para o aparecimento da mãe...
Por ti deixo contente os meus brinquedos de adulto,
Por ti não tenho parentes, não tenho nada que me prenda
A este prodigioso, constante e doentio universo...
Todo o Definitivo deve estar em Ti ou em parte nenhuma.
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A PARTIDA [c]

A PARTIDA

E eu o complexo, eu o numeroso,
Eu a saturnália de todas as possibilidades,
Eu o quebrar do dique de todas as personalizações,
Eu o excessivo, eu o sucessivo, eu o (...)
Eu o prolixo até de continências e paragens,
Eu que tenho vivido através do meu sangue e dos meus nervos
Todas as sensibilidades correspondentes a rodas as metafísicas
Que tenho desembarcado em todos os portos da alma,
Passado em aeroplano sobre todas as terras do espírito,
Eu o explorador de todos os sertões do raciocínio,
O (...)
O criador de Weltanschauungen,
Pródigo semeador pela minha própria indiferença
De correntes de moderno todas diferentes
Todas no momento em que são concebidas verdades
Todas pessoas diferentes, todas eu-próprio apenas —
Eu morrerei assim? Não: o universo é grande
E tem possibilidade de coisas infinitas acontecerem.
Não: tudo é melhor e maior que nós o pensamos
E a morte revelará coisas absolutamente inéditas...
Deus será mais contente.
Salve, ó novas coisas, a acontecer-me quando eu morrer,
Nova mobilidade do universo a despontar no meu horizonte
Quando definitivamente
Como um vapor largando do cais para longa viagem,
Com a banda de bordo a tocar o hino nacional da Alma
Eu largado para X, perturbado pela partida
Mas cheio da vaga esperança ignorante dos emigrantes,
Cheio de fé no Novo, de Crença limpa no Ultramar,
Eia — por aí fora, por esses mares internado,
À busca do meu futuro — nas terras, lagos e rios
Que ligam a redondeza da terra — todo o Universo —
Que oscila à vista. Eia por aí fora...
Ave atque vale, ó prodigioso Universo...

Haverá primeiro
Uma grande aceleração das sensações, um (...)
Com grandes dérapages nas estradas da minha consciência,
(...)
(E até à aterissage final do meu aero (...) )
Uma grande conglobação das sensações incontíguas,
Veloz silvo voraz do espaço entre a alma e Deus
Do meu (...)
Os meus estados de alma, de sucessivos, tornar-se-ão simultâneos,
Toda a minha individualidade se amarrotará num só ponto,
E quando, prestes a partir,
Tudo quanto vivo, e o que viverei para além do mundo,
Será fundido num só conjunto homogéneo e incandescente
E com um tal aumentar do ruído dos motores
Que se torna um ruído já não férreo, mas apenas abstracto,
Irei num silvo de sonho de velocidade pelo Incógnito fora
Deixando prados, paisagens, vilas dos dois lados
E cada vez mais no confim, nos longes do cognoscível,
Sulco de movimento no estaleiro das coisas,
Nova espécie de eternidade dinâmica ondeando através da eternidade estática —
s-s-s-ss-sss
z-z-z-z-z-z automóvel divino
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Ruído longínquo e próximo não sei porquê

Ruído longínquo e próximo não sei porquê
Da guerra europeia... Ruído de universo de catástrofe...
Que vai morrer para além de onde ouvimos e vemos?
Em que fronteiras deu a morte rendez-vous
Ao destino das nações?

Ó Águia Imperial, cairás?
Rojar-te-ás, negra amorfa coisa em sangue,
Pela terra, onde sob o teu cair
Ainda tens marcado o sinal das tuas garras para antes formar o voo
Que deste sobre a Europa confusa?

Cairás, ó matutino galo francês,
Sempre saudando a aurora? Que amos saúdas agora
Que sol de sangue no azul pálido do horizonte matutino?
Porque atalhos de sombra que caminho buscas,
Que caminho para onde?
Ó civilizações chegando à encruzilhada nocturna
D'onde tiraram o ponto-de-apoio
E donde partem caminhos curvos não sei para onde,
E não ha luar sobre as indecisões...

Deus seja connosco...
Chora na noite a Senhora de [...],
Torcendo as mãos, de modo a ouvir-se que elas se torcem
No silêncio profundo.

Deus seja connosco no céu e na terra,
Ó Deusa Tutelar do Futuro, ó Ponte
Sobre os abismos do que não sabemos que seja...
Deus seja connosco, e não esqueçamos nunca
Que o mar é eterno e afinal de tudo tranquilo
E a terra grande e mãe e tem a sua bondade
Porque sempre podemos nela recostar a cabeça cansada
E dormir encostados a qualquer coisa.

Clarins na noite, desmaiando... Ó Mistério
Que se está formando lá fora, na Europa, no Império...
Tropel vário de raças inimigas que se chocam
Mais profundamente do que seus exércitos e suas esquadras,
Mais realmente do que homem contra homem e nação contra nação...

Clarins de horror trémulo e frio na noite profunda...
E o quê?... Tambores para além do mistério do mundo?
Tambores de quê... dormis deitados, dobres minúsculos sobre quê?
Passa na noite um só passo soturno do uno exército enorme...
Clarins sobrepostos mais perto na Noite...
Ó Homem de mãos atadas e levado entre sentinelas
Para onde, porque caminho, para ao pé de quem?
Para ao pé [de] quem, clarins anunciadores de quê?
(Tityro, a tua flauta e os campos de Itália sob César Augusto
Ah, porque se armam de lágrimas absurdas os olhos
E que dor é esta, do antigo e do actual e do futuro,
Que dói na alma como uma sensação de exílio?
Tityro a tua flauta em Éclogas longínquas...
Virgílio a adular o César que venceu
Per populum dat juri... Um pobre em guerra,
Ó minha alma intranquila... Ó silêncios que as pontes
Sob as fortalezas antiquissimamente teriam,
Sabeis e vedes que a terra treme sob os passos dos exércitos,
Fluxo eterno e divino das ondas sob os cruzadores e os torpedeiros...
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SAUDAÇÃO [b]

Heia? Heia o quê e porquê?
O que tiro eu de heia! ou de qualquer coisa,
Que valha pensar em heia!?
Decadentes, meu velho, decadentes é que nós somos...
No fundo de cada um de nós há uma Bizâncio a arder,
E nem sinto as chamas e nem sinto Bizâncio
Mas o Império finda nas nossas veias aguadas
E a Poesia foi a da nossa incompetência para agir...
Tu, cantador de profissões enérgicas, Tu o Poeta do Extremo, do Porto,
Tu, músculo da inspiração, com musas masculinas por destaque,
Tu, afinal, inocente em viva histeria,
Afinal apenas “acariciador da vida”,
Mole ocioso, paneleiro pelo menos na intenção,
— Bem... isso era contigo — mas onde é que aí está a Vida?

Eu, engenheiro como profissão, Farto de tudo e de todos,
Eu, exageradamente supérfluo, guerreando as coisas
Eu, inútil, gasto, improfícuo, pretensioso e amoral,
Bóia das minhas sensações desgarradas pelo temporal,
Âncora do meu navio já quebrada pr'ó fundo
Eu feito cantor da Vida e da Força — acreditas?
Eu, como tu, enérgico, salutar, nos versos —
E afinal sincero como tu, ardendo em ter toda a Europa no cérebro,
No cérebro explosivo e sem diques,
Na inteligência mestra e dinâmica,
Na sensualidade carimbo, projector, marca, cheque
P’ra que diabo vivemos, e fazemos versos?
Raios partam a mandriice que nos faz poetas,
A degenerescência que nos engana artistas,
O tédio fundamental que nos pretende enérgicos e modernos,
Quando o que queremos é distrair-nos, dar-nos ideia da vida
Porque nada fazemos e nada somos, a vida corre-nos lenta nas veias.
Vejamos ao menos, Walt, as coisas bem pela verdade...
Bebamos isto como um remédio amargo
E concordemos em mandar à merda o mundo e a vida
Sem quebranto no olhar, e não por desprezo ou aversão

Isto, afinal é saudar-te?
Seja o que for, é saudar-te,
Seja o que valha, é amar-te,
Seja o que calhe, é concordar contigo...
Seja o que for é isto. E tu compreendes, tu gostas,
Tu, a chorar no meu ombro, concordas, meu velho, comigo —
(Quando parte o último comboio? —
Vilegiatura em Deus...)
Vamos, confiadamente, vamos...
Isto tudo deve ter um outro sentido
Melhor que viver e ter tudo...
Deve haver um ponto da consciência
Em que a paisagem se transforme
E comece a interessar-nos, a acudir-nos, a sacudir-nos...
Em que comece ti haver fresco na alma
E sol e campo nos sentidos despertos [...]
Seja onde for a Estação, lá nos encontraremos...
Espera-me à porta, Walt; lá estarei...
Lá estarei sem o universo, sem a vida, sem eu-próprio, sem nada...
E relembraremos, a sós, silenciosos, com a nossa dor
O grande absurdo do mundo, a dura inépcia das coisas
E sentirei, o mistério sentirei tão longe, tão longe, tão longe,
Tão absoluta e abstractamente longe,
Definitivamente longe.
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ODE MARCIAL [b]

ODE MARCIAL

Inúmero rio sem água — só gente e coisas
Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido,
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!

Helahoho! helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogavam os velhos,
(...)

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso como uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito
E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e bati-lhe,
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviuve e a quem aconteça isto?

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trémulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo
Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!
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POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA

POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA

               I

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.

                II

Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
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Dá-nos a Tua paz,

Dá-nos a Tua paz,
Deus Cristão falso, mas consolador, porque todos
Nascem para a emoção rezada a ti;
Deus anti-científico mas que a nossa mãe ensina;
Deus absurdo da verdade absurda, mas que tem a verdade das lágrimas
Nas horas de fraqueza em que sentimos que passamos
Como o fumo e a nuvem, mas a emoção não o quer,
Como o rasto na terra, mas a alma é sensível...

Dá-nos a Tua paz, ainda que não existisses nunca,
A Tua paz no mundo que julgas Teu,
A Tua paz impossível tão possível à Terra,
À grande mãe pagã, cristã em nós a esta hora
E que deve ser humana em tudo quanto é humano em nós.

Dá-nos a paz como uma brisa saindo
Ou a chuva para a qual há preces nas províncias,
E chove por leis naturais tranquilizadoramente.

Dá-nos a paz, porque por ela siga, e regresse
O nosso espírito cansado ao quarto de arrumações e coser
Onde ao canto está o berço inútil, mas não a mãe que embala,
Onde na cómoda velha está a roupa da infância, despida
Com o poder iludir a vida com o sonho...

Dá-nos a tua paz.
O mundo é incerto e confuso,
O pensamento não chega a parte nenhuma da Terra,
O braço não alcança mais do que a mão pode conter,
O olhar não atravessa os muros da sombra,
O coração não sabe desejar o que deseja
A vida erra constantemente o caminho para a Vida.
Dá-nos, Senhor, a paz, Cristo ou Buda que sejas,
Dá-nos a paz e admite
Nos vales esquecidos dos pastores ignotos
Nos píncaros de gelo dos eremitas perdidos,
Nas ruas transversais dos bairros afastados das cidades,
A paz que é dos que não conhecem e esquecem sem querer.

Materna paz que adormeça a terra,
Dormente à lareira sem filosofias,
Memória dos contos de fadas sem a vida lá fora,
A canção do berço revivida através do menino sem futuro,
O calor, a ama, o menino,
O menino que se vai deitar
E o sentido inútil da vida,
O coveiro antigo das coisas,
A dor sem fundo da terra, dos homens, dos destinos
Do mundo...
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