Vinicius de Moraes
Vinícius de Moraes, nascido Marcus Vinicius de Moraes foi um diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro.
1913-10-19 Gávea, Rio de Janeiro, Brasil
1980-07-09 Rio de Janeiro, Brasil
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Epitalâmio
Esta manhã a casa madruguei.
Havia elfos alados nos gelados
Raios de sol da sala quando entrei.
Sentada na cadeira de balanço
Resplendente, uma fada balançava-se
Numa poça de luz. Minha chegada
Gigantesca assustou os gnomos mínimos
Que vertiginosamente se escoaram
Pelas frinchas dos rodapés. A estranha
Presença matinal do ser noturno
Desencadeou no cerne da matéria
O entusiasmo dos átomos. Coraram
Os móveis decapês, tremeram os vidros
Estalaram os armários de alegria.
Eram os claros cristais de luz tão frágeis
Que ao tocar um, desfez-se nos meus dedos
Em poeira translúcida, vibrando
Tremulinas e harpejos inefáveis.
Era o inverno, ainda púbere. Bebi
Sofregamente um grande copo de ar
E recitei o meu epitalâmio.
Nomes como uma flor, uma explosão
De flor, vieram da infância envolta em trevas
Penetrados de vozes. Num segundo
Pensei ver o meu próprio nascimento
Mas fugi, tive medo. Não devera
A poesia...
Tão extremo era o transe matutino
Que pareceu-me haver perdido o peso
E esquecido dos meus trinta e quatro anos
Da clássica ruptura do menisco
E das demais responsabilidades
Pus-me a correr à volta do sofá
Atrás de prima Alice, a que morreu
De consumpção e me deixava triste.
Infelizmente acrescentei em quilos
E logo me cansei; mas as asinhas
Nos calcanhares eram bimotores
A querer arrancar. Pé ante pé
Fui esconder-me atrás da geladeira
O corpo em bote, os olhos em alegria
Para esperar a entrada de Maria
A empregada da Ilha, também morta
Mas de doença de homem — que era aquela
Confusão de querer-se e malquerer-se
Aquela multiplicação de seios
Aquele desperdício de saliva
E mãos, transfixiantes, nomes feios
E massas pouco a pouco se encaixando
Em decúbito, até a grande inércia
Cheia de mar (Maria era mulata!).
Depois foi Nina, a plácida menina
Dos pulcros atos sem concupiscência
Que me surgiu. Mandava-me missivas
Cifradas que eu, terrível flibusteiro
Escondia no muro de uma casa
(Esqueci de que casa...) Mas surpresa
Foi quando vi Alba surgir da aurora
Alba, a que me deixou examiná-la
Grande obstetra, com a lente de aumento
Dos textos em latim de meu avô
Alba, a que amava as largatixas secas
Alba, a ridícula, morta de crupe.
Milagre da manhã recuperada!
A infância! Sombra, és tu? Até tu, Sombra...
Sombra, contralto, entre os paralelepípedos
Do coradouro do quintal. Oh, tu
Que me violaste, negra, sobre o linho
Muito obrigado, tenebroso Arcanjo
De ti me lembrarei! Bom dia, Linda
Como estás bela assim descalça, Linda
Vem comigo nadar! O mar é agora
A piscina de Onã, de lodo e alga...
Quantos cajus tu me roubaste, feia
Quanto silêncio em teus carinhos, Linda
Longe, nas águas...Sim! é a minha casa
É a minha casa, sim, a um grito apenas
Da praia! Alguém me chama, é a gaivota
Branca, é Marina! (A doida já chegava
Desabotoando o corpete de menina...)
Marina, como vais, jovem Marina
Deslembrada Marina... Vejo Vândala
A rústica, a operária, a compulsória
Que nos levava aos dez para os baldios
Da Fábrica, e como aos bilros, hábil
Aos dez de uma só vez manipulava
Em francas gargalhadas, e dizia
De mim: Ai, que este é o mais levado!
(Pela mulher, sim, Vândala, obrigado...)
E tu, Santa, casada, que me deste
O Coração, posto que de De Amicis
Tu que calçavas longamente as meias
Pretas que me tiraram o medo à treva
E às aranhas... some, jetatura
Masturbação, desassossego, insônia!
Mas tu, pequena Maja, sê bem-vinda:
Lembra-me tuas tranças; recitavas
Fazias ponto-à-jour, tocavas piano
Pequena Maja... Foi preciso um ano
De namoro fechado, irmão presente
Para me dares, louco, de repente
Tua mão, como um pássaro assustado.
No entanto te esqueci ao ver Altiva
Princesa absurda, cega, surda e muda
Ao meu amor, embora me adorando
De adoração tão pura. Tua cítara
Me ensinou um ódio estúpido à Elegia
De Massenet. Confesso, dispensava a cítara
Ia beber desesperado. Mas
Foi contigo, Suave, que o poeta
Apreendeu o sentido da humildade.
Estavas sempre à mão. Telefonava:
Vamos? Vinhas. Inda virias. Tinhas
Um riso triste. Foi o nada quereres
Que tão pouco te deu, tristonha ave...
Quanta melancolia! No cenário
Púrpura, surges, Pútrida, luética
Deusa amarela, circunscrita imagem...
Obrigado no entanto pelos êxtases
Aparentes; lembro-me que brilhava
Na treva antropofágica teu dente
De ouro, como um fogo em terra firme
Para o homem a nadar-te, extenuado.
Mas que não fuja ainda a enunciada
Visão... Clélia, adeus minha Clélia, adeus!
Vou partir, pobre Clélia, navegar
No verde mar... vou me ausentar de ti!
Vejo chegar alguém que me procura
Alguém à porta, alguma desgraçada
Que se perdeu, a voz no telefone
Que não sei de quem é, a com que moro
E a que morreu... Quem és, responde!
És tu a mesma em todas renovada?
Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!
Havia elfos alados nos gelados
Raios de sol da sala quando entrei.
Sentada na cadeira de balanço
Resplendente, uma fada balançava-se
Numa poça de luz. Minha chegada
Gigantesca assustou os gnomos mínimos
Que vertiginosamente se escoaram
Pelas frinchas dos rodapés. A estranha
Presença matinal do ser noturno
Desencadeou no cerne da matéria
O entusiasmo dos átomos. Coraram
Os móveis decapês, tremeram os vidros
Estalaram os armários de alegria.
Eram os claros cristais de luz tão frágeis
Que ao tocar um, desfez-se nos meus dedos
Em poeira translúcida, vibrando
Tremulinas e harpejos inefáveis.
Era o inverno, ainda púbere. Bebi
Sofregamente um grande copo de ar
E recitei o meu epitalâmio.
Nomes como uma flor, uma explosão
De flor, vieram da infância envolta em trevas
Penetrados de vozes. Num segundo
Pensei ver o meu próprio nascimento
Mas fugi, tive medo. Não devera
A poesia...
Tão extremo era o transe matutino
Que pareceu-me haver perdido o peso
E esquecido dos meus trinta e quatro anos
Da clássica ruptura do menisco
E das demais responsabilidades
Pus-me a correr à volta do sofá
Atrás de prima Alice, a que morreu
De consumpção e me deixava triste.
Infelizmente acrescentei em quilos
E logo me cansei; mas as asinhas
Nos calcanhares eram bimotores
A querer arrancar. Pé ante pé
Fui esconder-me atrás da geladeira
O corpo em bote, os olhos em alegria
Para esperar a entrada de Maria
A empregada da Ilha, também morta
Mas de doença de homem — que era aquela
Confusão de querer-se e malquerer-se
Aquela multiplicação de seios
Aquele desperdício de saliva
E mãos, transfixiantes, nomes feios
E massas pouco a pouco se encaixando
Em decúbito, até a grande inércia
Cheia de mar (Maria era mulata!).
Depois foi Nina, a plácida menina
Dos pulcros atos sem concupiscência
Que me surgiu. Mandava-me missivas
Cifradas que eu, terrível flibusteiro
Escondia no muro de uma casa
(Esqueci de que casa...) Mas surpresa
Foi quando vi Alba surgir da aurora
Alba, a que me deixou examiná-la
Grande obstetra, com a lente de aumento
Dos textos em latim de meu avô
Alba, a que amava as largatixas secas
Alba, a ridícula, morta de crupe.
Milagre da manhã recuperada!
A infância! Sombra, és tu? Até tu, Sombra...
Sombra, contralto, entre os paralelepípedos
Do coradouro do quintal. Oh, tu
Que me violaste, negra, sobre o linho
Muito obrigado, tenebroso Arcanjo
De ti me lembrarei! Bom dia, Linda
Como estás bela assim descalça, Linda
Vem comigo nadar! O mar é agora
A piscina de Onã, de lodo e alga...
Quantos cajus tu me roubaste, feia
Quanto silêncio em teus carinhos, Linda
Longe, nas águas...Sim! é a minha casa
É a minha casa, sim, a um grito apenas
Da praia! Alguém me chama, é a gaivota
Branca, é Marina! (A doida já chegava
Desabotoando o corpete de menina...)
Marina, como vais, jovem Marina
Deslembrada Marina... Vejo Vândala
A rústica, a operária, a compulsória
Que nos levava aos dez para os baldios
Da Fábrica, e como aos bilros, hábil
Aos dez de uma só vez manipulava
Em francas gargalhadas, e dizia
De mim: Ai, que este é o mais levado!
(Pela mulher, sim, Vândala, obrigado...)
E tu, Santa, casada, que me deste
O Coração, posto que de De Amicis
Tu que calçavas longamente as meias
Pretas que me tiraram o medo à treva
E às aranhas... some, jetatura
Masturbação, desassossego, insônia!
Mas tu, pequena Maja, sê bem-vinda:
Lembra-me tuas tranças; recitavas
Fazias ponto-à-jour, tocavas piano
Pequena Maja... Foi preciso um ano
De namoro fechado, irmão presente
Para me dares, louco, de repente
Tua mão, como um pássaro assustado.
No entanto te esqueci ao ver Altiva
Princesa absurda, cega, surda e muda
Ao meu amor, embora me adorando
De adoração tão pura. Tua cítara
Me ensinou um ódio estúpido à Elegia
De Massenet. Confesso, dispensava a cítara
Ia beber desesperado. Mas
Foi contigo, Suave, que o poeta
Apreendeu o sentido da humildade.
Estavas sempre à mão. Telefonava:
Vamos? Vinhas. Inda virias. Tinhas
Um riso triste. Foi o nada quereres
Que tão pouco te deu, tristonha ave...
Quanta melancolia! No cenário
Púrpura, surges, Pútrida, luética
Deusa amarela, circunscrita imagem...
Obrigado no entanto pelos êxtases
Aparentes; lembro-me que brilhava
Na treva antropofágica teu dente
De ouro, como um fogo em terra firme
Para o homem a nadar-te, extenuado.
Mas que não fuja ainda a enunciada
Visão... Clélia, adeus minha Clélia, adeus!
Vou partir, pobre Clélia, navegar
No verde mar... vou me ausentar de ti!
Vejo chegar alguém que me procura
Alguém à porta, alguma desgraçada
Que se perdeu, a voz no telefone
Que não sei de quem é, a com que moro
E a que morreu... Quem és, responde!
És tu a mesma em todas renovada?
Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!
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