Gerardo Mello Mourão

Gerardo Mello Mourão

1917-01-08 Ipueiras
2007-03-09 Rio de Janeiro
29852
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3


Prémios e Movimentos

Jabuti 1999Jabuti 2003

Alguns Poemas

Na noite de Connecticut

Na noite de Connecticut
lambe a língua nos lábios a memória
de tua boca:
não profeta não sou, Amós, nem fiho de profeta
mas pastor e cultivador de canas e sicômoros — e Apolo
me tirou de detrás dos rebanhos
e comecei a andar cantando

os anjos saberão dos pés desse andarilho pelas
cidades sonolentas — e uma vez o Danúbio
anoiteceu teus olhos em Belgrado
e uma vez o Pacífico
madrugou-te a pupila no país cerúleo
de Viña del Mar — e outra vez
à pálpebra do crepúsculo
fulguraste e fugiste
no jardim de Manágua — e na matilha
das cadelas douradas tuas ancas
surgiam e sumiam
ao caçador da primavera essa tarde em Veneza —
e em Paris
eras a aurora persa a lima verde
entre os pendões de cana entre a baunilha em flor
do boulevard de salsas e alecrins
por Saint Michel e São Miguel dos Campos
talvez fronteira dos Hyperbóreos — pois
senhor dos coitos menciono sempre
os portos, as estações, a rota dos Hyperbóreos.

Elas Hellas — Hélas!
a adolescência prístina
imortal no coração da morte:
quando a máscara murcha
a flor do rosto atende à primavera
na esmeralda vegetal dos olhos
et jai vu quelquefois, Jean Arthur,
às vezes possuí, Francisco
o que o macho pensou possuir e perder:
pois por elas
Hellas
adelgaçada avena sou
soprado e sopram
nas jeiras desse tálamo a semente
e do leite
e do mel
do vinho mosto:

E nascem doces musas ébrias
Hesper —
— ma — ia
— ieu
ti
ka
Eleu
theria

Peregrina de ti mesma por ti mesma
te peregrinas
e o país viaja na planta de teu pé:
flor desta planta
pa —
ís
por —
tátil
ao tato a —
corda
dessa viola tua
nua
sobre os calcanhares
uma
noite em Copenhagen um
dia em Belo
Horizonte aquela
tarde em Maceió
e alguma vez a rosa oblíqua
— de que Kamakuras
talvez te disfarçaras
celestial cereja
às amêndoas e ao lótus:

a quem te viu
sabes voltar — pois
de onde não vir
ias?
caíram uma vez dos laranjais as luas
sobre teus olhos
negra e formosa ao sul do Senegal
por onde Arme Aribô e sobre
os lençóis brancos a beleza noturna de seu corpo — e entre
as virilhas ondul
ando
andam e ando as finas ser
pentes em pé — filtro
venenoso entre os pentelhos
o convite
a essa maçã de amor
e morre à concha ébria e ali
o amor é morte e a morte
o estratagema da ressurreição:

aparecida um dia e para sempre
me habitas a pupila
ouvi teu nome e desde então serias
moradora de meus ouvidos
e por isso — ocupado contigo
muitas outras coisas não sei:
mas aprendi a Musa
e ensino a Musa — e ela
no país de Apolo onde
sou corógrafo e recito
aos meninos a geografia de sua botânica
sua fauna de pássaros e os peixes
de seus golfos e seus pótamos

a orografla de seus Himetos e o monte
melodioso onde Melpômene e as outras
consultam a estrela e os ventos boreais
para compor a sílaba
Me
lo
Me
los
melo
dias
e noites
cantam amarradas ao mourão de minha herdade
as nove novilhas em flor ao touro adúltero

e um casto Dionísios cada noite
sabe o sabor do lírio em que se filtra
a doce castidade em cada corpo:

boa noite, Melpômene Mourão
e em teus veludos
adormeça fiel a sábia flecha

boa noite
Eleu
theria

Hoje é dia de louras, Abdias

Hoje é dia de louras, Abdias,
telefona e amanhã
quero Wanda Moreno, quero Hilda, quero Rosa e depois
quero de novo a ruiva da Barata Ribeiro, quero Néa,
quero Paula da casa de Arabela e Lourdes com Marina e quero todas
da casa de Helenita:

meu avô passou nos peitos todas as filhas dos moradores do engenho
os Mourões raparigueiros há trezentos anos:

eram cinqüenta mulheres
à noite no cabaret
entre elas uma francesa
sentada num canapé
Raimundo Mourão brigava
com o vigário da Sé
trazia o diabo no couro
quando entrou no cabaret
as mulheres quando o viram
ficaram todas em pé.

Deixara em baixo o Marreira
no cabresto do alazão
na cinta o coldre bordado
e unia chibata na mão
parecia um cangaceiro
do bando do Lampeão
a parnaíba nos quartos
vinte léguas de sertão
cantador Nertan Macedo
afina já teu bordão
matéria-prima do verso
este é um Mello Mourão
valente rico e faceiro
dançador e fanfarrão
tanto bebe como canta
como atira que nem cão
mulheres no porta-seios
segurem o coração
"couro bando papaceia
o chão imemorial
o bode o cavalo o boi
o sentimento mortal
o homem caça dileta
refletida no punhal"
tanta tesão entre as coxas
como balas no embornal
A noite se encheu de tiros
começou a confusão
não ficou homem na sala
pois quem enfrenta um Mourão?
as luzes levando chumbo
virou tudo escuridão
provou as cinqüenta fêmeas
pôs a mão no coração
e sentiu que ele no peito
não se fartara inda não
não encontrava em Francisca
os seios de Conceição
nem em Antônia a cadência
que as ancas de Isaura dão:
só mesmo teus olhos verdes
dariam a ordenação
capaz na noite e no dia
de saciar um Mourão
mas antes que tu chegasses
um punhal na escuridão
deixou morto aquele macho
banhado em sangue no chão:
caça dileta do amor
tombou Raimundo Mourão
herdei-lhe a espora de prata
o rebenque e o alazão
relógio de ouro maciço
de corrente e medalhão
trinta e dois de carga dupla
o clavinote alemão
e na bainha de couro
o punhal de estimação
dezoito pentes de bala
cartucheira e cinturão
os olhos concupiscentes
a aguardente e a perdição
o gosto de mulher boa
procurada com paixão
e atrás de ti pelo mundo
abandonei o sertão.

Tu me pediste notícias da Grécia:

Tu me pediste notícias da Grécia:
de Lisboa
por Goa e Madragoa e Itamaracá
me fui partindo e, pois, já tenho
algumas notícias da Grécia e escrevo
entre a mulher da bela cintura
dos olhos verdes
e o mar:
por mar chegadas, por mar envio
as notícias da Grécia;
redijo em alto mar entre
a madrugada jônia e a madrugada
de Maragogí — sudeste
do país dos Mourões.

E eras uma vez:
da cintura de Apolo o tornozelo dáctilo
vinhas e ao vinho o pé arisco —
de corda em corda a pisar na cítara
e em teu andar
notícias recentes da Grécia:
muitos corpos foram assados e o cheiro
da cútis das vítimas de fina raça
subiu das brasas e a fumaça
odorífera e a labareda e as libações
embriagavam os belos mancebos vindimados;
e era uma vez
Febo Apolo, o deus do arco de prata e lira de ouro
e ao teu andar, ao pé arteiro, a melodia
corda a corda
das notícias da Grécia:
aguardo informes: — aplacara a
hecatombe o deus irado ou, vagabundo
passeia Apolo pelos bosques
de aljava a tiracolo?

Escrevo no meio do mar entre a Grécia e a Itália
talvez Ilíria;
respirei quanto pude a violeta divina
vem o vento dos montes e à essência
das rosas maceradas
amadurecem-me as narinas sábias:
tal a rosa-dos-ventos dia e noite ao faro
dos navegantes.

E era uma vez Apolo e era uma vez uma palmeira
e os escravos de Dona Úrsula Mourão acharam
a imagem de São Gonçalo
e foi trazida para casa e louvada
em cânticos e ladainhas
e na manhã seguinte a divina creatura
era de novo achada ao pé da mesma palmeira
e foi trazida para casa e louvada
em cânticos e ladainhas

e no terceiro dia — fugira durante a noite —
voltou à sua palmeira
e Dona Úrsula Mourão, mais os homens
e as outras mulheres e as crianças
foram cantando e se assombrando até a palmeira sagrada
e em duas medidas de sua sombra
riscaram um retângulo
e ergueram uma capela e onde
era seu tronco é hoje o altar
de São Gonçalo dos Mourões
e estas
são noticias da Grécia:

respirei fundo a violeta divina
de Tênedos a Delfos e guardei
a palmeira nos olhos e o templo na serra;
e era uma vez
na ilha flutuante uma palmeira
uma palmeira em Delos e ali
soprou Apoio a flauta e desde então se fez
estável a ilha
imóvel Delos por pisá-la um Deus:
e era macho e belo e tangia também
uma cítara de ouro e do arco de prata
a flecha disputava ao relâmpago
alvo e risco no céu; e sobre a pele
da serpente na trípode sagrada
uma virgem fundou o lábio imaculado
de conceber o oráculo: o divino pênis
aquecido na boca a sacra Pítia
da garganta emprenhada devolvia o sorvo cálido
a palavra profética: —

‘E AEYOEPÍA

e é na boca das virgens e no ventre das ninfas
e semente fecunda
e à sua volta — e à sua cítara
as fêmeas aprendiam a língua e a voz dos deuses
e os rapazes aprendiam o poder dos deuses
e os adolescentes mortos
tornavam à vida e a vida era fundada
à sua volta e à sua cítara;
e era fundada a morte à volta
de seu arco de prata — e os outros deuses
o expulsaram do Olimpo —
estas são noticias da Grécia:

de erguer-se o canto, toda voz se apaga
e as ilhas cessam de flutuar e os deuses
invejavam os carneiros e os pastores
tangidos pelos montes da Tessália
à lira de ouro. E ao seu acorde
em pétala e aroma a bem-amada abria
o coração do heliotrópio e o rosto
do adolescente — amor alheio à vida e à morte —
nas folhas do jacinto doloria
e à mera melodia iam surgindo
o loureiro, a romã, o girassol e o mirto
e o zimbro e o lotus
e o galo e o gavião e o cisne
e a cigarra e o grifo
e era a palmeira e à sombra dela
a invenção do santo e as ladainhas
de Dona Úrsula Mourão;
estas são, amor, as notícias da Grécia
e eu recebi no mar:
ao sul a palmeira de Delos e ao norte
as palmeiras — Camaragibe e Ibiapaba, País dos Mourões —
lá onde a vida
aguça a seta nas aljavas de prata
e a morte
se canta à lua-cheia na viola na cítara
de Apolo adolescente.

Tenho notícias da Grécia, algumas:
noticias para a tua cintura pequena e os calcanhares
o chão dos deuses exilados
e lembranças de um deus: no exílio,
de seu canto se sustentava e ao canto
— sustento dos deuses e perigo dos deuses —
floresciam os homens e o rei Midas foi punido
e em sua própria frauta soprou Mársyas
sua própria morte; e ao canto
— ó sustento dos deuses, ó perigo dos homens! —
por auroras e noites perigosas
tenho notícias da Grécia — algumas —
da corte de Admeto na Tessália
da cor das águas ao redor das Cícladas
das virilhas cheirosas de Kirina, Hotel Adrianos,
do vôo do gavião no ar da tarde
do poeta caldeu na noite de Poséidon
dessa relva curvada à brisa do Parnaso
Danai tragountai Danai e Lyda e uma canção
e uma taberna e o vinho
e a inocência e o espanto de Hiacinto
e o zéfiro da morte em meus cabelos.

Ao terror da delícia os olhos brilham
pisa a planta dos pés a palmilha de pedra
rastro incandescente de um deus:
quem sou eu que te trago
as noticias da Grécia — algumas —?
o doce filho
da raça dos Mourões — país de para lá
da linha do Equador onde o pecado
não é e os homens
são machos e as mulheres
fêmeas — onde
à sombra das palmeiras e em seus troncos
aparecem os deuses e seus santos.

Vem, formosa mulher, camélia pálida,
que banharam de luz as alvoradas
na concha de tuas mãos a água verde
flauta diáfana de água à pétala
do lábio estremecia
e desmanchada ao canto — ao canto
a água sugeria de novo o gomo verde
a flauta diáfana de água
ao milagre dos dedos e do sopro:
bem que me deste, tu mesma, as notícias da Grécia
e eras jônica e coríntia, às vezes dórica
em teus quadris eólios tua concha
à relva eólia
à pétala do lábio estremecia e era
a melodia de tuas flautas escondidas:
começara
no golfo de teus olhos a viagem
ao verde mar por onde
a lua esverdeara a lua
de mel dos cabelos
de Helena à espuma
do desvairado amor:
e estas são notícias da Grécia e um deus
tangia cítaras e ovelhas e os homens
jurados à beleza
domavam o cavalo, a nau, a lança, a espada e a terra
orvalhada de sangue dos guerreiros — um deus
anunciava
a vida e a morte por amor do amor
e anunciava a vida e a morte e os machos
do país dos Mourões.

pois o Major Galdino, meu avô,
cortava a taquara da serra com seu punhal de dois gumes
e ao fim da tarde e ao nascer da manhã
no alto do pé de tamarindo
pendurava a gaiola de alçapão armado e dentro dela
ou galo-de-campina de cabeça de púrpura
ou juriti arrulhadora:
e da copa das cajaranas de ouro
o outro galo-de-campina — a outra juriti —
vinha aprender
a banda de laranja a talhada de melão o arroz
a água do pequeno alguidar de barro e o canto
solitário entre as varetas de bambu — e logo
eram duas gargantas a cantar e era
aos ouvidos do risonho Major
um canto novo — e tu,
pássara chamadora,
ao furo de meu punhal na taquara
a flauta pura ao céu
azul irás sorvendo
soprada em sopro novo a velha
canção que cantavam as pássara

Um dia as orquídeas se abriram sobre

Um dia as orquídeas se abriram sobre
olhos oblíquos de Magdalena
antes da âncora da dor numa angra verde
e antes
de partir-se teu rosto da romã
antes, vadio com seu cão e sua flauta
pelos montes o poeta
vadiava e farejava as garrafas de whisky,
a virilha das francesas e eram
baralhos de bacará e roletas de ouro
— a bolinha de marfim
cai no sete
cai no zero
cai no preto
no vermelho
a bolinha de marfim
cai não cai
onde é que cai?

Valencius Wurch, echt deutsch
barão da Pomerânia usava polainas e chapéu
gelô e seu nariz
usava um olho cego de um lado e de outro
um monóculo inútil
e era a glória das namoradas da Rua do Senado

e Monsenhor Manuel Gomes, prelado doméstico
do Papa,
pastoreava o bairro de São Cristóvão
com seu cajado do país da Paraíba
e Manuel Machado, depois doutor em leis, depois
capitão de tropas expedicionárias e herói da Pátria
guardou no coração um estilhaço de granada alemã
e com o belo cravo de sangue de seu peito
visitou a morte num campo da Itália
e tornou, virgem e alegre, à Rua Mem de Sá
e casto ao medo e intemperante ao perigo
o filho dos Mourões
Mourão pastava
adolescentes, cônegos, roletas e janelas de trem
de lira a tiracolo e essas
são notícias da Grécia
do caminho da Grécia
onde às vezes perguntava o sol ao quarto dalva
e Dalva
Dalva Silveira navegava o sargaço nas virilhas
aloeste de seus promontórios trêmulos
dei toda as velas.

Sabia de naus francesas por ali com muita
artilharia e pólvora e abarrotadas de brasil:
fiz a vela no bordo do sul
fui quatro relógios
e ao meio-dia era na esteira da nau
duas léguas dela e não podia cobrar terra
cheguei à nau e primeiro que lhe tirasse
me tirou dois tiros:
antes que fosse noite lhe tirei
três tiros de camelo e três vezes
toda a artilharia: e de noite carregou
tanto o vento lessueste que não pude jogar
senão artelheria meúda — e com ele
pelejamos toda a noite:
em rompendo a alva
mandei um marinheiro ver:
via uma vela — não divisava
se era latina se redonda.

E que me importa a mim que veja ou que não veja
se cumpriu toda
a cerimônia de ver.

E essas são notícias da Grécia
do caminho da Grécia
e o valete bicéfalo tangia
ora a espada ora a lira
ora a esquina ora o mar — e Nilo
Nilo José da Costa achara no subúrbio de
Campo Grande
a lua — e achara seu verdadeiro nome e era
Marcus Sandoval e de suas mãos
antes pendiam o fio da navalha e a tesoura
sábia — e delas
nunca mais rolaram cabelos de macho no salão
de barbeiro rolaram
as mechas da lua fêmea
— lua — disse o vento —
mostra-me a graça feminina
das tuas bailarinas
e ao sopro do luar sussurrando
ao ouvido das árvores quietas
todas as frondes num deslumbramento
bailavam aos levíssimos do vento
o bailado das sombras pelo chão
e Marcus Sandoval penou degredo
na Ilha de Fernando Noronha
Fernam de Loronha a nornordeste
por ouvir o filho dos Mourões
e por tanger espada em vez de cítara
e a morte se hospedou em seus pulmões e dorme
no cemitério de Campo Grande e nunca mais
um soneto foi pedido nos botequins do subúrbio
e nunca mais
o silêncio da noite doeu na serenata
onde andará o violão de José Carlos
e a rouca voz de Orlando Carneiro amigo íntimo
de Jesus Cristo
escande agora em vez da ode os códigos da lei
Meritíssimo Juiz da Vara Cível
trauteia agora a dodecafônica demanda
cite-se o réu — e testemunha
debaixo de vara sou citado
e desde as 7 horas do dia, Pero Lopes, até o sol
posto
pelejamos sempre: a nau me deu dentro
na caravela trinta e dois tiros
quebrou-me muitos aparelhos e rompeu-me
as velas todas:
estando eu assim com a nau tomada chegou
o Capitão Irmão com os outros navios e Francisco
Francisco da Gama Lima
servia o mel e o pão o coração fraterno
de José Ribas e fazia o pelo sinal da santa cruz
com a mesma lágrima e o mesmo mel
junto ao cadáver de Anísio Teixeira
onde era o pranto da filha derelicta.

E vinha a nau do Capitão com Pedro Maranduba
carregado de brasil
trazia muita artelheria e outra muita munição
de guerra
por lhes faltar pólvora se deram —
na nau não demos mais que uma bombarda
com um pedreiro ao lume dágua:
com a artelheria meúda lhe ferimos seis homens
na caravela me não mataram nem feriram
nenhum homem — de que
dei muitas graças ao Senhor Deus.

Noroeste e sulsueste se corria:
ao longo da nau eram tudo barreiras vermelhas
vieram da terra a nado às naus
índios a perguntar-nos
se queríamos Brasil:
carregado de Brasil
quero Brasil e as naus
carregadas de Brasil
se preciso, com muita artilharia e bombarda e ainda
abalroar as naus estrangeiras quebrar
a espada aos coronéis piratas e passá-los
a fio de espada boa e partir
a caminho da Grécia em nossa caravela
abarrotada de Brasil com Pero Lopes de Souza
e de seus bagos venho,
com grande lastro de Brasil.

Ao sair da lua abonançou-se o vento
e era o quarto da prima
formosa
no mar de seus cabelos Dora
Maria Mourão — Dora Correia Lima
no quarto da modorra no Leblon
era meio-dia e parecia noite
e o relâmpago de ouro de teus olhos
cortava a tempestade dos cabelos
e o mar tão grosso me entrava
por todas as partes com
o jogar da nau de ventre liso
Dora afagada à brisa ao faro das narinas:
houve vista de montes
e era mui alta a maravilha
em teu monte de relva
e hoje me faz dela
dez léguas e dez línguas noroleste
a costa se corre nornordeste e susudeste — Dora —
e toda longa ao longo do mar
no sertão serras mui altas e formosas
haverá delas ao mar dez léguas — e a lugares,
menos
e haveria às altas e formosas colinas tuas dez
beijos aos teus seios
e a lugares, menos,
e à noite veio o piloto-mor no esquife e súbito
são dez mil léguas de memória a esses seios
e a lugares, mais.

Perfundo de cinqüenta braças dárea limpa
o cabo de pareel que jaz ao mar
da banda sudoeste aloeste e a tuas partes
loessudoeste:
quando fui fora do parcel
eram serras mui altas sudoeste
sob a cintura túrgidas redondas
à mercê de tomar prumo
e com Mercedes Martins a prumo
vou mordendo a maçã em labirinto e mar
a caminho da Grécia onde esperavam entre
orquídeas
olhos oblíquos de Magdalena.

Pois faço aos tempos surdos

Pois faço aos tempos surdos a doação deste ouvido
e venho doar ao tempo mudo esta língua
aprendi as álgebras do espaço
e calculei às vezes aurora e noite e sou
sabedor de sua hipotenusa e mestre
de sua bissetriz e de seu algarismo: posso armar
no doce teorema de seu caule
a parábola da rosa e sua paralaxe
pois proponho a rosa aos circunstantes desde
seu logaritmo — colho
teu nome em minha boca
e em minha mão floresces
com teu monte de pétalas
com teu seio redondo —
não seria ali
o sítio do desejo, Capitão Gofredo?
e venho e volto e um deus
veste na própria pele o corpo livre e gera
da incessante vida a saciada morte
e da morte incessante esta sede da vida.

Não estão mortos os deuses, Efraim,
sob a defunta máscara seus olhos
cravejados de esmeraldas
coruscam sobre nós
e a rosa de seus lábios
despetala ao fervor de seu sangue botânico
a suplicante saudação:
tu dichorisandra albo-lineata
tu campelia zanonia
tu gladiolus ceruleus
venustus labiatus
desde o musgo do chão ao firmamento firmas
no lírio vertical o fluxo de teu rosto:
também eu — ego poeta
arranco e piso aos pés minha máscara de morto
e sustento o fulgor de tua
pupila incandescente.

Não, Antônio José,
não morreram os deuses e na pata
do cavalo de Alexandre Mourão
na palmeira de dona Úrsula
em teus olhos moribundos, Capitão,
num punhal no relógio da sala
no patacão de prata no retrato da parede na relva
de tuas coxas sagradas
o rastro de Apolo:
ego poeta, ego cartographus
faço o mapa, Gonçalo, desse rastro
entre o cróton e o crótalus terrificus
pois de terra terrífica é o chão onde um dia
deixaste florescer a planta de teu pé:
e as distâncias do mundo
permanecem regidas
à balística de seu passo — não morreram, amor.

E deles os que um dia visitaram a morte
desceram aos infernos
e subiram aos céus no terceiro dia — e um dia, Augustin,
rebentou um ruido dos céus um vento de tempestade
e mandaram descer suas línguas de fogo
sobre a cabeça do poeta
e saí pelo boulevard bêbado de glória
e os Partas e os Medas e os Elamitas
e os que habitam a Capadócia o Ponto e a Ásia
a Frígia a Panfília e as partes da Líbia
perto de Cirene — e os forasteiros
romanos e judeus e seus prosélitos
e os cretenses e os árabes
e os servos e os croatas e os guerrilheiros guatemaltecos
e a puta de Quebec e o travesti de Amsterdam
recolhiam maravilhados
sílaba por sílaba meu canto — pois conheço
o poliedro da palavra — ego poeta
e no sonho dos adolescentes e dos moribundos
fiz minha morada no país de Pentecostes
e abriram-se as fontes das águas em minha língua
e todos entendiam a fala das fontes das águas.

Por isso
Pallas invoco — Palas Athenaia
e Afrodite clamo — Afrodite
e Zeus e Poseidon e Hermes Trimegisto
e Afrodite clamo — Afrodite — e ao seu nome
estremecem frementes
a pele e o corpo dos machos e das fêmeas:
da concha de seus lábios com seus olhos verdes
ergue-se Afrodite
os mesmos ombros de cabelos molhados
pelo mar da Jônia na concha de Poseidon
calipígia a oeste
e a leste — de pentelhos frondosos
mas ninguém lhe acaricia os pêlos
pois transfigurada
ela nos conta
sob a luz das estrelas
sua própria ficção
e não é mais
que a ficção de si mesma
e de sua metáfora a metáfora
a presença real
— e só a morte
dos deuses é irreal:

e da raiz do coração a língua erecta
ousa chegar ao êxtase:
Afrodite! Afrodite!
da transfiguração
de teu nome real
teu rosto original parece
irreal.
Um dia percorríamos a aurora de Montréal
saudávamos os bisontes e os jaguares nas esquinas do
bairro inglês
e alí
cantava o galo no quintal de Teresa e urrava
o touro de Vila Bela no curral de Eufrásio
ao quebrar das barras
na madrugada hermafrodita:
as donzelas e os Travestis e as putas da Guatemala e as
leopardas ciumentas e os lábios no cio perguntavam
— "por quem, poeta, teu amor, por quem?"
Amante sou é de meu próprio rosto — amoroso estou
do lago de tuas pupilas de onde
meu amor é pela gema de meu dedos no pelo
de tuas virilhas — e apaixonado
estou por minha mão que ronda as tuas coxas
pela língua
que diz teu nome — línguabela abelha
no mel de tuas pétalas em tua
rosa negra — e ali
em seu ninho de estrelas mergulhava
o pássaro — e por ele, amor,
o poeta,
e seu amor.

E não morreram — pois
era uma vez uma cidade, Gilbués chamada — e era uma vez
uma mulher por nome Laura — e outra vez
bebíamos o Ballantines twelve years
na fronteira do Maranhão
barrancas do Parnaíba:
sob a celeste água-marinha
da noite piauiense
as doces loucas de Terezina
penduravam sob as mangueiras
no sanatório de Clidenor
entre as douradas mangas-lira os redondos olhos — e a lua
arredondava o seio das putas quotidianas sob
os coqueiros de Ana Paula — e era uma vez uma noite —
e era uma vez
uma cidade, Gilbués chamada — e era uma vez
uma mulher por nome Isidora — Dora —
de Gilbués chegada — e quem se esquecerá
de Mariana — os mesmos olhos
augurais inaugurais
de Sanharó chegada
aos bordéis do Recife:
do trampolim de seu rosto
o peregrino pé ao desferir o salto
cunhara o rastro — e, pois,
por esses rostos e lugares vivo em romaria
Delos Delfos Gilbués Oeiras e ali o Coronel
Victor de Barros Galvão governador das armas
até Olho dÁgua Grande onde Domingos
o Coronel Domingos Mourão Filho
governador dos povos assentava
o rústico condado e cultivava
a rosa do perigo:
pois visconde conde comes senhor e servo
soldado de aventura sou, Apolo,
pelo sangue das veias
de todo chão de todo rosto
onde quer que esse rastro e tua mão
vela sobre nossos capitães
pois flor-de-lis pois rosa
de puro artelho rosa e flor-de-lis
onde marquês marquei minha fronteira pelo
som de uma flauta pela
corda de sua lira — e por ela
joguei a minha noiva e meu condado e meu escudo
de faixa verde em campo de ouro
um castelo em abismo e abismado
entre as coxas das nove castelãs — ali
farejo o faro de teu falus e sou
de tua corte o derradeiro conde
Gerardus derelictus — criatura
de Apolo e de Melpômene
ego poeta
conde do abismo.

Mas teço o pano pastoreio a cabra e forjo o ferro
e planto a cana
e camponez e obreiro
degolo o conde nas auroras de outubro
ego poeta o conde degolado
à beira de seu abismo:
depois com o sopro de meus pulmões
encho de ar os foles de couro
e malho a brasa dos metais
e produzo as estrelas
na oficina onde canto
o meu próprio motim
e o meu próprio massacre:

Pois malho, Apolo, na bigorna os colhões de aço
e o coração de chumbo — e invento
a mágica do ouro e vou
fazendo rosas braceletes pétalas
e outros objetos de ouro
até chegar à lira:
pois criei a minha mão e fiz
eu mesmo a minha própria lira
suas cordas fiei
e modelei os dedos com que as pulso
do pulso às unhas.

peregrino pelas calçadas do bairro
e os rapazes e as raparigas me apontam:
Gerardo
de
lira.

Barão publicou na Revista do Instituto Histórico

Barão publicou na Revista do Instituto Histórico as
Memórias de Alexandre Mourão:
muito sangue e muito amor nessa história
e as velhas da família contam com ódio e orgulho a devastação das terras dos Mourões
pela tropa imperial
Alexandre Mourão salvou-se atravessando a nado o rio Parnaíba com um patacão
de dois mil réis na boca
e o ódio e o orgulho e o sangue e o amor e os patacões de prata são
a herança de meus filhos
e a minha tarefa é atravessar o rio a nado
com o ódio o orgulho o sangue o amor e os patacões de prata
na boca
e nunca perecer na travessia
e saltar na terra estrangeira
a água de meus rios escorrendo dos cabelos
e o barro de minha terra no couro das alpercatas e do peito.

Francisco, neto de Tobias, tinha os cabelos de ouro
e arrancava comigo no quintal as penas dos pavões azuis
e caiu da grande cajazeira sobre a lança do gradil
e houve um jorro de sangue em sua coxa
o sangue pintou a cauda azul dos pavões
o sangue dos Mourões se derrama no país dos Mourões há quatro séculos
o velho Tobias derramou o seu nos dentes de um jacaré do Amazonas
também o derramam das coxas as raparigas fecundas

temos cobrado largamente o nosso sangue
e do alimento da bravura o nosso coração
faz a sua pureza e a sua força
e na festa rústica à beira da fogueira
nossos adolescentes ensinavam os meninos
a cantarem na viola em mesmo tom
o amor e a morte. E as primas prometiam
o seio e o ventre
às estrelas de agosto
e à lua do Equador.

A linha do Equador passa aqui perto
e o signo de Capricórnio já me envolve
no tempo e no espaço e envolta nele
ao luar do trópico
— ó noite de Crateús! —
veio Elisa banhada no açude
veio Carmen banhada nos jasmins da noite
vieram as primas de vestido encarnado e veio
ao coração do infante o vaticínio
do rosto que trarias
o anúncio de teus olhos e o desejo
dos quadris adivinhados
noutras noites mais longe possuídos.

A linha do Equador passa aqui perto
e de seu fio de fogo o meu novelo
há de levar ao coração varado do Minotauro
e dali devolver a alegria
dos rapares e raparigas de Atenas
a linha do Equador passa aqui perto
e em portulanos
de Gênova e de Sagres fui sonhado:
Vicente Yañez Pínzón e Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral
e Bartolomeu Perestrello e o Infante Dom Henrique e Isabel, a Católica,
me caçavam no mar entre hipocampos.

"Se o Amor servir de guia, terás êxito"
disse a Teseu o oráculo de Delfos.

De tuas mãos, amor, recebo o novelo de fogo da linha do Equador
e vou e volto e devolvo aos conquistadores rijo e novo
o pênis que por mim se murchara no ventre
da índia Iracema da tribo tabajara.

Branca filha de Telefasse!
Crescem ao sol numa terra de sol
essas flores de cactus da grinalda
que me dói na cabeça
cresce a fome
das ervas que já vou pastar em tua mão:
sobre as margens do Letes
os plátanos de Creta
aprenderão as palmas sempre verdes
do buriti selvagem.

Não me temas se venho coroado dos cactus e talictres do país dos Mourões
e trago o rosto rude das terras imaturas
sou filho de Calíope e fui eu
que recebi de Apolo na floresta virgem
a cítara de Linos
e aprendi a tanger a cítara de Linos
e fui o primeiro a juntar mais duas cordas à cítara de Linos
e de volta do país moreno
sou eu que vou introduzir de novo em tua casa
a expiação dos crimes, o culto de Dionísios, de Hécate Ctônia
e os outros mistérios órficos.

Todas as noivas mortas voltarão
quando eu tanger a lira no Tenaro
e condoer os capitães do inferno.

Não, eu não te perdi; ao teu encalço
viajei o inferno e demorei no inferno
e ainda espedaçado nas orgias trácias
as águas do rio a arrastar-me a cabeça cortada
os lábios à torrente clamariam
teu nome — e tu serias no meu canto
e touro e cisne e degolado Orfeu

a flor do talictres tem o cheiro da semente humana
em meu lombo em minha asa em minha lira em minha toledana
celebrarás, ó bem amada,
o teu guerreiro e o teu cantor.

Quem de vocês matou o uruguaio

"Quem de vocês matou o uruguaio?"
os soldados não sabiam
"Quero saber imediatamente quem matou o uruguaio" —
— "Saberá Vossa Senhoria que fui eu, Benedito Antônio da Silva, natural do Crato,
número 39 da 2.a Companhia do 12, praça de 1851, ferido na batalha de Caseros".
"E por que matou?"
— "Vossa Mercê, que é da raça dos Mourões, não há de ignorar que eu também
sou morador daqueles pés-de-serra e por isto matei o gringo; pois saiba
Vossa Mercê que estou sem matar desde a guerra do Rosas e o Senhor seu pai me
encomendou três dúzias. Tá completo".
Sob a pala da barretina agaloada
o General de rosto sereno e triste
sorriu sobre o pátio do quartel de Bastarrica
e mandou os soldados passearem tocando
charanga pelas ruas de Montevidéu.

O Marquês de Herval era galante:
Ordem do Dia sobre a batalha de Tuiuti:
— é de louvar o bizarro comportamento do General Sampaio, da raça dos Mourões —
o primeiro cavalo fora derrubado à bala, o segundo também e o terceiro e o quarto
varados à baioneta
combatia a pé
"Guarde seu cavalo, alferes, eu sou da Infantaria"
"Corra à barraca de Osório e diga que estou perdendo muito sangue, é conveniente
substituir-me, fui ferido duas vezes"
continência do Alferes, mão de súbito no peito:
"e esta é a terceira".

"Maté el general brasilero!"
ainda não — e o paraguaio engoliu com chumbo a última sílaba
na mão o sangue da última tapa de carícia sobre a cabeça de seu alazão
espedaçada à bala
quando outra bala decepa a folha da espada
"soldado, passe-me sua espada"
um olhar para o alferes fanfarrão:
tomara a bandeira do porta-estandarte e no meio do mar de sangue e fumaça gritava
"viva o General Sampaio!"
e nos braços dos guerreiros que rangiam os dentes e choravam
e banhado no sangue dos cavalos fortes como o seu
e banhado em seu sangue o sangue
da raça dos Mourões:
"não corte minha perna, doutor,
um general morto é bizarro ainda
um general coxo é feio".
E belo e triste em seu caixão de zinco
os guerreiros da Argentina e do Uruguai lhe hastearam em funeral as bandeiras do Prata
e sobre o chão do país de Godo, Raul e Efran
vou lavrando a escritura deste canto
e ali também é o país dos Mourões e nosso primo Martin Fierro e Osório,
Marquês de Herval, são testemunhas
Antônio de Sampaio, filho do ferreiro de Monte-Mor-o-Velho,
da estirpe de Francisco e Manuel,
da raça dos Mourões
era um general bizarro.

As exéquias na Corte custaram um conto e quatrocentos
o Maestro Arcângelo Fiorito regeu de graça o coro e a orquestra com
primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos, fagotes e oboés e trompas e pistons
e Sua Majestade o Imperador que lhe trouxera o corpo de Buenos Aires
ao meio-dia em ponto na Ilha do Bom Jesus entre os inválidos da Pátria
curva a cabeça em reverência
ao filho dos Mourões:
— "Só no Maranhão foram quarenta e seis combates por Vossa Majestade"
sua Divisão se chamava Encouraçada
bateu o paraguaio a ferro-frio nas sangas dos banhados
encouraçada à dureza de seu olhar a soldadesca
não conhecia o medo
aquele olhar endurecido
ao ódio dos Mourões — seu amor e seu ódio —
e ao seu vigor ergueram-se e deitaram-se
para a vida e para a morte
as coisas e os logares e as pessoas.

"Alferes, a morte é bizarra
guarde este botão de minha farda de lembrança
e cante na hora aquela moda que eu cantei no Tamboril à janela de Maria Veras.
Aquela moda..."

E ao meu canto e à moda antiga
que cantavam os machos à janela das fêmeas
no país dos Mourões
vou lavrando a escritura destas terras que são minhas
até além do Prata e além dos Andes
das Ibiturunas azuis
e um dia
no cartório de Ipueiras, Penedo ou Arapiraca
te farei a doação dessas léguas de sesmaria
do Passo de Camaragibe a Villaguay,
de Crateús, Ipu e São Gonçalo dos Mourões
até Buenos Aires e Santiago do Chile e Guayaquil e Bogotá
nos termos da doação de minha avó Dona Ana Feitosa a Santo Anastácio e
Dona Úrsula Mourão a São Gonçalo
e, te farei sobre essas braças de chão
um templo e uma cama de cedro sob o céu de Deus
à sombra dos plátanos e das carnaubeiras para onde
deitada no meu lombo vens chegando.

Visita o forasteiro sua própria beleza e traz

Visita o forasteiro sua própria beleza e traz
o coração na mão enrolado no mapa
de sua própria pátria

— "Moi aussi, Monsieur, je suis un étranger
e meus olhos pranteiam minha beleza estranha
aos circunstantes
— pois estranho a mim mesmo
só à minha beleza não sou estranho e só
meu coração suporta a delícia cruel
da inventada beleza"

Volvia a cabeça e assumia a garça e o lírio
e flutuavam sobre os ombros
à soberba das pupilas as crinas
das éguas alazãs.

A noite se busca a si mesma
nas calçadas de Chelsea
da haste de sua galáxia sobre
o casaco de pele pende
la cansada paloma de su mano:

não sabe de seu ninho e o ninho
é que estremece à noite
em busca do seu pássaro:
anoiteceu em Chelsea
boa noite, Melpômene Mourão

Estava nu entre as montanhas sagradas
e dizia:
— "não governo meu nome
dado a Melpômene e às outras
tenho de meu o chão que piso
a mulher que escolhi
e os filhos que gerei:
pois boa noite, Apolo,
toma a minha mulher, dorme com ela
viola em tua cama, Calíope, meus filhos".

Quer a beleza o sacrifício
da beleza
e o amor
o sacrifício
do amor
pois eu te queimo a rosa a bem-amada
os pêssegos do outono
e a rosa e a bem-amada e os pêssegos do outono
serão aroma a tuas narinas
— por isso —
do hálito de teus pulmões venho viver.
E lembro-me também das outras oferendas
vinte amantes em chamas sobre teu altar

— "Moi — jai brûlé mon sexe
et je crie sur les flammes
la douleur de ma beauté"
e dessa dor se vive
e dessa dor se morre

Salamandra — chamei
e fulgurou a boca
à labareda de seus olhos

Anoiteceu em Chelsea
e sobre seus altares
na pira crepitavam
os bagos de seu sexo —
"Moi, jai fait ce que fait un dieu"
e eu mesmo sou meu próprio sacrifício
e minha adoração"

Anoiteceu em Chelsea
o adorado adorava o adorador
e às vezes crea a creatura
sua creação

— "Je suis lesclave et le maitre de mon corps
e canto sobre os querubins
la fleur de ma beauté"

— "Não te lembras? um dia a serpente
andava erecta à beira dos riachos:
contempla o meu andar quando anoitece em Chelsea —
eu desejei meu corpo e eu mesmo
ergui da relva
as ancas altas e o redondo seio"

E amante de si mesma
dormia
em seu jasmim sua beleza e em sua
beleza sua solidão
— "E sou Ginandramor Ginandramante
a minha própria companhia
Ginandramada"

Os deuses — só os deuses
não estão sós
e os que caminham por seu país
aprendem sua língua

Boa noite, Apolo,
anoitece em Chelsea e uma asa
de pássaro ou de anjo
me roça a fronte e tremo

ao perigo de seu rosto — e dele
nunca mais me despeçam estes olhos
que a terra, a tua terra, há de nutrir.

Movia as largas pálpebras e da cinza de suas pupilas
se acendiam as lâmpadas douradas
sobre Greenwich Village

Coming from Ohio
—"Are you going to be here for a couple of minutes?
—"For ever, Johnny,
pela eternidade".

Anoitece em Chelsea
from Chelsea to Eleusis, Mister Corso:
— "Who are you who spend the day walking in this lobby" —
eu sou o gastador do dia e o ecônomo da noite
não caminho o hall
ensaio a grande marcha
caminho o dia rumo à noite
e a noite rumo ao dia quando
escapa Mona Lisa de seu quadro e sorri
na adolescência milenária desse rosto chinês e os poetas, Ho
pelos arrozais pelo ria amarelo pelo rio azul
pelas serras de África
conduzem a cruzada e a sagrada lira marca
o ritmo das grandes marchas —
entoando os teus peãs, Apolo,
pois os ventos de Uganda trazem tua voz.

Essa trabalha as ancas sob a saia de veludo vermelho
essa trabalha as unhas escarlates nas sandálias de ouro
essa o umbigo no strip-tease do Club 82
e Johnny no Chelsea trabalha o som:
— "este é um poeta, darling,
veio ouvir minha guitarra e contemplar teus seios" —
e ouvir uma guitarra
e contemplar teus seios
é minha profissão
e consumo o crepúsculo a aurora os clitóris rosados
em seu ninho
e o rouxinol
e o grito do amor — e nasce um seio
de Mo
na
li
sa
Laisa
coming from Ohio
to Delphos — Hellas — clamo e amo e o meu
cl
amor
me tu
mul
tua

Benditos os que beijam teu seio e intumescem teu seio
e apojam teu seio, Eleutheria, onde
as criaturas mamam o leite de Apolo Lykio.

Vejo a lua do Potomac e banha-se no Hudson
e à neblina verde de seus olhos
Laisa
agoniza o sexo e a garganta
de um pássaro se forma
desmancha-se em abelhas
tu —
mel —
tuas —
um tumulto de relvas orvalhadas.

Pois vou a Port-au-Prince, Tuna,
Port-au-Prince
Porto Rico
Porto Belo
Porto Fino
Porto Alegre alegre
por tua noite
e preciso de muitos lugares e de muitas pessoas
preciso de cerejas
e da cereja um mel
e desse mel um fio
para o caminho de labirintos pelas
Califórnias de ouro
e ali
o Macho da Sibila — Alberto —
entre Los Angeles Las Vegas
pastoreia os anjos nas floridas veigas —
caminhos dos Hyperbóreos.

Pois de Kennedy Airport TWA
— "are you a jew, sir?
— Do you speak yddish"?
"are you from India
or Pakistan?
Árabe ou grego?
E eu sou
das terras do Ceará Grande e Mel Redondo
Ipueiras Itabuna e Tanque dArca, Jarmelino,
e não falo yddish
falo a fala falo a flauta falo a língua
das abelhas sobre as cerejas
e leio Léa e lêem- me los angeles
e Lisa
Laisa
Mon
a
Lisa
pois vou
a Porto Belo
Porto Fino e Porto Príncipe onde príncipe
aguardo o reino e a núpcia — e onde
a princesa aprende a abrir-me
a flor das coxas lancinantes
e a pitanga madura e o pintassilgo
me ensinam o que sei:
dormir contigo acordar contigo —
bom dia boa noite
Eleutheria.

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