Nuno Júdice
Nuno Júdice é um ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e obteve o grau de Doutor pela Universidade Nova.
1949-04-29 Mexilhoeira Grande
2024-03-17
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Carta de Orfeu a Eurídice - 7
Iludia-me. A morte, que é o fim
do amor, corria à solta nos temporais
da alma. Eu podia ter uma consciência
da sua presença nalguns intervalos bruscos,
quando os teus passos me faltavam, e
só uma nova respiração, atrás de mim, me
restituía o ânimo da ascensão. Tu,
liberta dessa morte que te prendia os lábios,
dizias-me: não me deixes! Como se fosse
preciso dizê-lo! E não fosses tu a única
razão dessa viagem a que dei o nome
vida, sabendo que a sua única verdade é esse
amor. Porém, os nossos lábios não se
encontravam na certeza do tempo.
O futuro instalou a sua distância naquilo
que é o presente, com a sua duração inscrita
no destino dos que conheceram uma
coincidência de um e outro, o olhar uníssono
dos amantes, o brusco repouso de uma
ânsia de espaço. Aqui, a distância é o que não
separa; o medo da mudança dissipa-se;
e a recordação é o que está depois do que foi
vivido, como se fosse a memória a construir
o dia de amanhã.
Quis arrancar-te, assim, ao destino ― e
libertar-me, eu próprio, da sua sujeição. Quantos
rostos se fixaram no teu, para que em ti
eu visse cada uma das imagens por onde passei,
restituindo-lhes uma respiração humana. Procurei-te
enquanto imaginei que me procuravas ― e
cada passo que dava, na minha descida, afastava
tudo o que eu perdia enquanto descia. Nesse outro
mundo, em que nos reduzimos a nós, afastando
do que somos tudo o que nos opunha,
não dei por que um cansaço de ser me obrigava
ao regresso. Tê-lo-ei feito cedo demais? Por
que me voltei, então, como se soubesse que
as sombras não pedem que as olhemos,
e deixei que te prendessem com a sua
inquietação de fumo?
No entanto, um eco responde-me: estou
aqui. E por trás dele outros ecos se sucedem,
multiplicando os lugares, até ao fim
do caminho. No teu quarto, prendendo o cabelo,
esperas que um incêndio de poço entreabra
a noite, e rompa os muros que o silêncio
ergueu à tua volta. Mas o canto envolve-te: e
despe-te, com a solidão dos seus dedos, até
à nudez do caule.
Nuno Júdice | "A pura inscrição do amor", págs. 58 e 59 | Publicações Dom Quixote, 1ª. edição. Jan. 2018
do amor, corria à solta nos temporais
da alma. Eu podia ter uma consciência
da sua presença nalguns intervalos bruscos,
quando os teus passos me faltavam, e
só uma nova respiração, atrás de mim, me
restituía o ânimo da ascensão. Tu,
liberta dessa morte que te prendia os lábios,
dizias-me: não me deixes! Como se fosse
preciso dizê-lo! E não fosses tu a única
razão dessa viagem a que dei o nome
vida, sabendo que a sua única verdade é esse
amor. Porém, os nossos lábios não se
encontravam na certeza do tempo.
O futuro instalou a sua distância naquilo
que é o presente, com a sua duração inscrita
no destino dos que conheceram uma
coincidência de um e outro, o olhar uníssono
dos amantes, o brusco repouso de uma
ânsia de espaço. Aqui, a distância é o que não
separa; o medo da mudança dissipa-se;
e a recordação é o que está depois do que foi
vivido, como se fosse a memória a construir
o dia de amanhã.
Quis arrancar-te, assim, ao destino ― e
libertar-me, eu próprio, da sua sujeição. Quantos
rostos se fixaram no teu, para que em ti
eu visse cada uma das imagens por onde passei,
restituindo-lhes uma respiração humana. Procurei-te
enquanto imaginei que me procuravas ― e
cada passo que dava, na minha descida, afastava
tudo o que eu perdia enquanto descia. Nesse outro
mundo, em que nos reduzimos a nós, afastando
do que somos tudo o que nos opunha,
não dei por que um cansaço de ser me obrigava
ao regresso. Tê-lo-ei feito cedo demais? Por
que me voltei, então, como se soubesse que
as sombras não pedem que as olhemos,
e deixei que te prendessem com a sua
inquietação de fumo?
No entanto, um eco responde-me: estou
aqui. E por trás dele outros ecos se sucedem,
multiplicando os lugares, até ao fim
do caminho. No teu quarto, prendendo o cabelo,
esperas que um incêndio de poço entreabra
a noite, e rompa os muros que o silêncio
ergueu à tua volta. Mas o canto envolve-te: e
despe-te, com a solidão dos seus dedos, até
à nudez do caule.
Nuno Júdice | "A pura inscrição do amor", págs. 58 e 59 | Publicações Dom Quixote, 1ª. edição. Jan. 2018
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