Pablo Neruda
Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.
1904-07-12 Parral, Chile
1973-09-23 Santiago, Chile
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Canto XV - Eu Sou
I
A fronteira (1904)
O primeiro que vi foram árvores, barrancos
decorados com flores de selvagem formosura,
úmido território, bosques que se incendiavam
e o inverno detrás do mundo, transbordado.
Minha infância são sapatos molhados, troncos partidos
tombados na selva, devorados por cipós
e escaravelhos, doces dias sobre a aveia,
e a barba dourada de meu pai saindo
para a majestade da ferroviária.
Diante de minha casa a água austral cavava
fundas derrotas, lameiros de argilas enlutadas,
que no verão eram atmosfera amarela
por onde as carretas rangiam e choravam
prenhadas com nove meses de trigo.
Rápido sol do sul:
restolhos, fumaradas
em caminhos de terras escarlates, ribeiras
de rios de redonda linhagem, currais e potreiros
em que reverberava o mel do meio-dia.
O mundo poeirento entrava grau por grau
nos galpões, entre barricas e cordéis,
nas adegas carregadas com o resumo rubro
da aveleira, todas as pálpebras do bosque.
Pareceu-me ascender com o traje tórrido
do verão, com as máquinas debulhadoras,
pelas costas, na terra envernizada de boldos
erguida entre os carvalhos, indelével,
agarrando-se às rodas como carne esmagada.
Minha infância percorreu as estações: entre
os trilhos, os castelos de madeira recente,
a casa sem cidade, apenas protegida
por reses e maçãs de perfume indizível
fui eu, delgado menino cuja pálida forma
se impregnava de bosques vazios e adegas.
II
O fundeiro (1919)
Amor, talvez amor indeciso, inseguro:
só um golpe de madressilvas na boca,
só umas tranças cujo movimento subia
até minha solidão como uma fogueira negra,
e o mais: o rio noturno, os sinais
do céu, a fugaz primavera molhada,
a enlouquecida fronte solitária, o desejo
levantando as suas cruéis tulipas na noite.
Eu desfolhei as constelações, ferindo-me,
afiando os dedos no tacto das estrelas,
afiando fibra por fibra a contextura gelada
dum castelo sem portas,
ó destroçados amores
cujo jasmim detém sua transparência em vão,
ó nuvens que no dia do amor desembocam
como um soluço entre as ervas hostis,
nua solidão amarrada a uma sombra,
a uma ferida adorada, a uma lua indomável.
Nomeai-me, disse talvez aos rosais:
eles talvez, a sombra de confusa ambrosia,
cada tremor do mundo conhecia meus passos,
me esperava o rincão mais oculto, a estátua
da árvore soberana na planície:
tudo na encruzilhada chegou a meu desvario
debulhando o meu nome sobre a primavera.
E então, doce rosto, açucena queimada,
tu, a que não dormiste com o meu sonho, bravia,
medalha perseguida por uma sombra, amada
sem nome, feita de toda a estrutura do pólen,
de todo o inverno ardendo sobre estrelas impuras:
ó amor, desenredado jardim que se consome,
em ti se levantaram meus sonhos e cresceram
como um fermento de pães tenebrosos.
III
A casa
Minha casa, as paredes cuja madeira fresca,
recém-cortada, cheira ainda: destrambelhada
casa de fronteira, que rangia
a cada passo, e silvava com o vento de guerra
do tempo austral, fazendo-se elemento
de tempestade, ave desconhecida
sob cujas geladas plumas cresceu o meu canto.
Vi sombras, rostos que como plantas
em torno de minhas raízes cresceram, parentes
que cantavam toadas à sombra duma árvore
e disparavam entre os cavalos molhados,
mulheres escondidas na sombra
que deixavam as torres masculinas,
galopes que fustigavam a luz,
enrarecidas
noites de cólera, cachorros que latiam.
Meu pai com a alva escura
da terra, para que perdidos arquipélagos
em seus trens que uivavam se deslizou?
Mais tarde amei o odor do carvão no fumo,
os azeites, os eixos de precisão gelada,
e o grave trem cruzando o inverno estendido
sobre a terra, como uma lagarta orgulhosa.
De repente trepidaram as portas.
É meu pai.
Rodeiam-no os centuriões do caminho:
ferroviários envoltos em suas mantas molhadas,
o vapor e a chuva com eles revestiram
a casa, a sala de jantar se encheu de relatos
enrouquecidos, os copos se verteram,
e até mim, dos seres, como uma separada
barreira, em que viviam as dores,
chegaram as aflições, as carrancudas
cicatrizes, os homens sem dinheiro,
a garra mineral da pobreza.
IV
Companheiros de viagem (1921)
Logo cheguei à capital, vagamente impregnado
de névoa e chuva.
Que ruas eram essas?
Os trajes de 1921 pululavam
num odor atroz de gás, café e tijolos.
Entre os estudantes passei sem compreender,
reconcentrando em mim as paredes, buscando
cada tarde em minha pobre poesia os ramos,
as gotas e a lua que se haviam perdido.
Acudi ao fundo dela, submergindo
cada tarde em suas águas, agarrando impalpáveis
estímulos, gaivotas de um mar abandonado,
até fechar os olhos e naufragar no meio
de minha própria substância.
Foram trevas, foram
apenas escondidas, úmidas folhas do subsolo?
De que matéria ferida se debulhou a morte
até tocar os meus membros, conduzir meu sorriso
e cavar nas ruas um poço desgraçado?
Saí a viver: cresci e endurecido
fui pelas ruelas miseráveis,
sem compaixão, cantando nas fronteiras
do delírio.
Os muros se encheram de rostos:
olhos que não olhavam a luz, águas torcidas
que iluminavam um crime, patrimônios
de solitário orgulho, cavidades
cheias de corações arrasados.
Com eles fui: só em seu coro
a minha voz reconheceu as solidões
onde nasceu.
Comecei a ser homem
cantando entre as chamas, acolhido
por companheiros de condição noturna
que cantaram comigo nas pousadas,
e que me deram mais de uma ternura,
mais de uma primavera defendida
por suas mãos hostis,
único fogo, planta verdadeira
dos desmoronados arrabaldes.
V
A estudante (1923)
Ó tu, mais doce, mais interminável
que a doçura, carnal enamorada
entre as sombras: de outros dias
surges enchendo de pesado pólen
a tua taça, na delícia.
Da noite cheia
de ultrajes, noite como o vinho
destampado, noite de oxidada púrpura,
em ti caí como uma torre ferida,
e entre os pobres lençóis a tua estrela
palpitou contra mim queimando o céu.
Ó redes do jasmim, ó fogo físico
alimentado nesta nova sombra,
trevas que tocamos apertando
a cintura central, golpeando o tempo
com sanguinárias rajadas de espigas.
Amor sem nada mais, no vazio
duma borbulha, amor com ruas mortas,
amor, quando morreu toda a vida
e nos deixou acendendo os rincões.
Mordi mulher, me afundei desvanecendo-me
desde minha força, entesourei cachos de uva,
e saí a caminhar de beijo em beijo,
atado às carícias, amarrado
a esta gruta de fria cabeleira,
a estas pernas por lábios percorridas:
faminto entre os lábios da terra,
devorando com lábios devorados.
VI
O viajante (1927)
E saí pelos mares aos portos.
O mundo entre as gruas
e as adegas da praia sórdida
mostrou em sua greta chusmas e mendigos,
companhias de famintos espectrais
no costado dos navios.
Países
recostados, ressequidos, na areia,
trajes talares, mantos fulgurantes
saíam do deserto, armados
como escorpiões, guardando o buraco
do petróleo, na empoeirada
rede dos calcinados poderios.
Vivi na Birmânia, entre as cúpulas
do metal poderoso, e a mataria
onde o tigre queimava os seus anéis
de ouro sangrento.
De minhas janelas
em Dalhousie Street, o odor
indefinível, musgo nos pagodes,
perfumes e excrementos, pólen, pólvora,
de um mundo saturado pela umidade humana,
subiu até mim.
As ruas me chamaram
com os seus inumeráveis movimentos
de telas de açafrão e escarros vermelhos,
junto à suja marulhada do Irrawaddy, da
água cuja espessura, sangue e azeite,
vinha descarregando a sua linhagem
desde as terras altas cujos deuses
pelo menos dormiam rodeados por seu barro.
VII
Longe daqui
Índia, não amei a tua dilacerada roupa,
a tua desarmada população de farrapos.
Por anos fui com olhos que queriam
subir aos promontórios do desprezo,
entre cidades como cera verde,
entre os talismãs, os pagodes
cuja pastelaria sanguinária
espalhava terríveis aguilhões.
Vi o miserável acumulado, em cima
do outro, do sofrimento de seu irmão,
as ruas como rios de aflição,
as pequenas aldeias esmagadas
entre as grossas unhas das flores,
e fui na multidão, sentinela
do tempo, separando enegrecidas
cicatrizes, cerrames de escravos.
Entrei nos templos, estuque e pedraria
fazem os degraus, sangue e morte sujos,
e os bestiais sacerdotes, ébrios
do estupor ardente, disputando
moedas revolvidas no chão,
enquanto, ó pequeno ser humano,
os grandes ídolos de pés fosfóricos
estiravam as línguas vingativas,
ou sobre um falo de pedra escarlate
deslizavam as pedras trituradas.
VIII
As máscaras de gesso
Não amei.
.
.
Não sei se foi piedade ou vômito.
Corri pelas cidades, Saigon, Madras,
Khandy, até as enterradas, majestosas
pedras de Anuradhapura, e na rocha
do Ceilão, como baleias
as efígies de Siddhartha, fui mais longe:
no saibro de Penang, pelas ribeiras
dos rios, na selva
do silêncio puríssimo, culminado
pelo rebanho das intensas vidas,
para além de Bangkok, as vestimentas
de bailarinas com máscaras de gesso.
Golfos pestilenciais elevavam
tetos de pedraria transbordante,
em largos rios a vivenda
de milhares de pobres, apertados
nas embarcações, e outros, todos
cobriam a infinita terra,
para além dos rios amarelos,
com uma única pele de animal roto,
pele dos povos, pelanca humilhada
por uns e outros amos.
Capitães e príncipes
viviam sobre o úmido estertor
de agonizantes lâmpadas, sangrando
a vida dos pobres artesãos,
e entre as garras e chicotes, mais alto
era a concessão, o europeu,
o norte-americano do petróleo,
fortificando templos de alumínio,
arando sobre a pele desamparada,
estabelecendo novos sacrifícios de sangue.
IX
O baile (1929)
Na profundidade de Java, entre as sombras
territoriais: aqui está o palácio iluminado.
Passo entre arqueiros verdes, aderidos
aos muros, entro
na sala do trono.
Está o monarca,
apoplético porco, pavão impuro,
carregado de cordões, constelado,
entre dois de seus amos holandeses,
mercadores carrancudos que vigiam.
Que repugnante grupo de insetos, como arremessam sobre os seres, conscienciosamente,
pauladas de vileza.
As sentinelas sórdidas
das longínquas terras, e o monarca
como um saco cego, arrastando
a sua carne espessa e as suas estrelas falsas
sobre uma humilde pátria de prateiros.
Mas entraram de repente
do remoto fundo do palácio
dez bailarinas, lentas como um sonho
debaixo das águas.
Cada pé se aproximava
de costas, avançando mel noturno
como um peixe de ouro, e suas máscaras ocre
levavam sobre o cabelo de azeitada espessura
uma coroa fresca de flores de laranjeira.
Até que se colocaram
diante do sátrapa, e com elas a música, um rumor
de élitros de cristal, a dança pura
que cresceu como flor, as mãos claras
construindo uma estátua fugitiva,
a túnica batida nos calcanhares
por um golpe de onda ou de brancura,
e em cada movimento de pomba
feita em metal sagrado, o sussurrante
ar do arquipélago, aceso
como uma árvore nupcial na primavera.
X
A guerra (1930)
Espanha, envolta em sonho, despertando
como uma cabeleira com espigas,
te vi nascer, entre as brenhas
e as trevas, lavradora,
levantar-te entre os carvalhos e os montes
e percorrer o ar com as veias abertas.
Mas te vi atacada nas esquinas
pelos antigos bandoleiros.
Iam
mascarados, com as suas cruzes feitas
de víboras, com os pés metidos
no glacial pântano dos mortos.
Então vi o teu corpo desprendido
de matagais, quebrado
sobre a areia encarniçada, aberto,
sem mundo, aguilhoado na agonia.
Até hoje corre a água de tuas penhas
entre os calabouços, e susténs
a tua coroa de farpas em silêncio,
para ver quem pode mais, se tuas dores
ou os rostos que cruzam sem olhar-te.
Eu vivi com a tua aurora de fuzis,
e quero que de novo povo e pólvora
sacudam as ramagens desonradas
até que trema o sonho e se reúnam
os frutos divididos na terra.
XI
O amor
O firme amor, Espanha, me deste com teus dons.
Veio a mim a ternura que esperava
e me acompanha a que leva o beijo
mais profundo a minha boca.
Não puderam
apartá-la de mim as tempestades
nem as distâncias acrescentaram terra
ao espaço de amor que conquistamos.
Quando antes do incêndio, entre as messes
da Espanha apareceu a tua vestimenta,
eu fui dupla noção, luz duplicada,
e a amargura resvalou em teu rosto
até cair sobre pedras perdidas.
De uma grande dor, de arpões eriçados
desemboquei em tuas águas, amor meu,
como um cavalo que galopa em meio
à ira e à morte, e o recebe
de súbito uma maçã matutina,
uma cascata de tremor silvestre.
Desde então, amor, te conheceram
os páramos que fizeram a minha conduta,
o oceano escuro que me segue,
e os castanhos do outono imenso.
Quem não te viu, amorosa, doce minha,
na luta, a meu lado, como uma
aparição, com todos os sinais
da estrela? Quem, se andou
entre as multidões a procurar-me,
porque sou grão do celeiro humano,
não te encontrou, agarrada a minhas raízes,
elevada no canto de meu sangue?
Não sei, meu amor, se terei tempo e lugar para
escrever outra vez a tua sombra fina
estendida em minhas páginas, esposa:
são duros estes dias e radiantes,
e recolhemos deles a doçura
amassada com pálpebras e espinhos.
Não sei recordar quando começas:
estavas antes do amor,
vinhas
com todas as essências do destino,
e antes de ti, a solidão foi tua,
foi talvez a tua adormecida cabeleira.
Hoje, taça de meu amor, te nomeio apenas,
título de meus dias, adorada,
e no espaço ocupas como o dia
toda a luz que tem o universo.
XII
México (1940)
México, de mar a mar te vivi, transpassado
por tua férrea cor, subindo montes
sobre os quais aparecem monastérios
cheios de espinhos,
o ruído venenoso
da cidade, os dentes solapados
do pululante poetiso, e sobre
as folhas dos mortos e os degraus
que construiu o silêncio irredutível,
como coto dum amor leproso,
o esplendor molhado das ruínas.
Porém do acre acampamento, rude
suor, lanças de grãos amarelos,
sobe a agricultura coletiva
repartindo os pães da pátria.
Outras vezes calcárias cordilheiras
interromperam o meu caminho,
formas
das metralhadas nevadas
que despedaçam a casca escura
da pele mexicana, e os cavalos
que cruzam como o beijo da pólvora
sob os patriarcais arvoredos.
Aqueles que apagaram bravamente
a fronteira do prédio e entregaram
a terra conquistada pelo sangue
entre os esquecidos herdeiros,
também aqueles dedos dolorosos
atados ao sul das raízes,
a minuciosa máscara teceram,
povoaram de floral quinquilharia
e de fogo têxtil o território.
Não soube que mais amei, se a escavada
antigüidade de rostos que guardaram
a intensidade de pedras implacáveis,
ou a rosa recente, construída
por uma mão ontem ensangüentada.
E assim de terra em terra fui tocando
o barro americano, minha estatura,
e subiu por minhas veias o esquecimento
recostado no tempo, até que um dia
estremeceu a minha boca a sua linguagem.
XIII
Nos muros do México (1943)
Os países se estendem junto aos rios, buscam
o suave peito, os lábios do planeta,
tu, México, tocaste
os ninhos do espinho,
a desértica altura da águia sangrenta,
o mel da coluna combatida.
Outros homens buscaram o rouxinol, acharam
o fumo, o vale, regiões como a pele humana:
tu, México, enterraste as mãos na terra,
tu cresceste na pedra de olhar selvagem.
Quando chegou a tua boca a rosa do rocio
o látego do céu a converteu em tormento.
foi a tua origem um vento de punhais
entre dois mares de irritada espuma.
Tuas pálpebras se abriram na espessa papoula
de um dia enfurecido
e a neve estendia sua espaçosa brancura
onde o fogo vivo começava a habitar-te.
conheço a tua coroa de nopais
e sei que sob as tuas raízes
a tua subterrânea estátua, México, se constrói
com as águas secretas da terra
e os lingotes cegos das minas.
Ó terra, ó esplendor
de tua perpétua e dura geografia,
a derramada rosa do mar da Califórnia,
o raio verde que Yucatán derrama,
o amarelo amor de Sinaloa,
as pálpebras rosadas de Morelia,
e o longo fio da piteira fragrante
que amarra o coração à tua estatura.
México augusto de rumor e espadas,
quando a noite na terra era maior,
repartiste o berço do milho entre os homens.
Levantaste a mão cheia de pó santo
e a puseste em meio a teu povo
como uma nova estrela de pão e de fragrância.
O camponês então à luz da pólvora
olhou a sua terra desencadeada
brilhar sobre os mortos germinais.
Canto a Morelos.
Quando caía
seu fulgor verrumado,
uma pequena gota ia chamando
sob a terra até encher a taça
de sangue, e da taça um rio
até chegar a toda a silenciosa praia
da América, empapando-a de misteriosa essência.
Canto a Cuauhtémoc.
Toco
a sua linhagem de lua
e seu fino sorriso de deus martirizado.
Onde estás, perdeste,
antigo irmão, a tua dureza doce?
Em que te converteste?
Onde vive a tua estação de fogo?
Vive na pele de nossa mão escura,
vive nos cinzentos cereais:
quando, depois da noturna sombra
se debulham as cepas da aurora,
os olhos de Cuauhtémoc abrem a sua luz remota
sobre a vida verde da folhagem.
Canto a Cárdenas.
Eu estive;
eu vivi a tormenta de Castilla.
Eram os dias cegos das vidas.
Altas dores como ramos cruéis
feriam a nossa mãe angustiada.
Era o abandonado luto, os muros do silêncio
quando
se atraiçoava, se assaltava e feria
essa pátria da alva e do loureiro.
Então
só a estrela vermelha da Rússia e o olhar
de Cárdenas brilharam na noite do homem.
General, presidente da América, te deixo neste canto
algo do resplendor que recolhi na Espanha.
México, abriste as portas e as mãos
ao errante, ao ferido,
ao desterrado, ao herói.
Sinto que isto não possa se dizer de outra forma
e quero que se agarrem as minhas palavras
outra vez como beijos em teus muros.
De par em par abriste a tua porta combatente
e encheu-se de estranhos filhos a tua cabeleira
e tocaste com as tuas duras mãos
as faces dos filhos
que te pariu com lágrimas e tormenta do mundo.
Aqui termino, México,
aqui te deixo esta caligrafia
sobre as fontes para que a idade
vá apagando este novo discurso
de quem te amou por livre e por profundo.
Adeus te digo, mas não me vou.
Vou-me, mas não posso
dizer-te adeus.
Porque na minha vida, México, vives como uma pequena
águia equivocada que circula nas minhas veias,
e só no fim a morte dobrará as asas
sobre o meu coração de soldado adormecido.
XIV
O regresso (1944)
Regressei.
.
.
O Chile me recebeu com o rosto amarelo do deserto.
Peregrinei sofrendo
de árida lua em cratera arenosa
e encontrei os domínios agrestes do planeta,
a lisa luz sem pâmpanos, a retidão vazia.
Vazia? Mas sem vegetais, sem garras, sem esterco
me revelou a terra sua dimensão nua
e lá longe a sua longa linha em que nascem
aves e peitos ígneos de suave contextura.
Porém mais longe homens cavavam as fronteiras,
recolhiam metais duros, disseminados
alguns como a farinha de amargos cereais,
outros como a altura calcinada do fogo,
e homens e lua, tudo me envolveu em sua mortalha
até perder o fio vazio dos sonhos.
Me entreguei aos desertos e o homem da escória
saiu de seu buraco, de sua aspereza muda
e soube as dores de meu povo perdido.
Então, fui por ruas e curules e disse
o quanto vi, mostrei as mãos que tocaram
os torrões enfartados de dor, as vivendas
da desamparada pobreza, o miserável
pão e a solidão da lua esquecida.
E lado a lado com meu irmão sem sapatos
quis mudar o reino das moedas sujas.
Fui perseguido, mas a nossa luta continua.
A verdade é mais alta que a lua.
É vista, como se estivessem num navio negro,
pelos homens das minas quando a olham à noite.
E na sombra a minha voz é repartida
pelas mais duras estirpes da terra.
XV
A linha de madeira
Eu sou um carpinteiro, cego, sem mãos.
Vivi
sob as águas, consumindo frio,
sem construir as caixas fragrantes, as moradas
que cedro a cedro erguem a grandeza,
porém meu canto foi procurando fios do bosque,
secretas fibras, ceras delicadas,
e foi cortando ramos, perfumando
a solidão com lábios de madeira.
Amei cada matéria, cada gota
de púrpura ou de metal, água e espiga
e entrei em espessas camadas resguardadas
por espaço e areia tremulante
até cantar com a boca destruída,
como um morto, nas uvas da terra.
Argila, barro, vinho, me cobriram,
enlouqueci tocando os quadris
da pele cuja flor foi sustida
como um incêndio sob a minha garganta,
e pela pedra passearam os meus sentidos
invadindo fechadas cicatrizes.
Como mudei sem ser, desconhecendo
o meu ofício antes de ser,
a metalurgia
que estava destinada à minha dureza,
às serranias olfateadas
pelas cavalgaduras no inverno?
Tudo se fez ternura e mananciais
e servi somente para noturno.
XVI
A bondade combatente
Mas não tive a bondade morta nas ruas.
Rechacei o seu aqueduto purulento
e não toquei o seu mar contaminado.
Extraí o bem como um metal, cavando
além dos olhos que mordiam,
e entre as cicatrizes foi crescendo
meu coração nascido nas espadas.
Não saí desbocado, descarregando
terra ou punhal entre os homens.
Não era
meu ofício o da ferida ou o veneno.
Não sujeitei o inerme em ataduras
que lhe atravessassem chicotes gelados,
não fui à praça procurar inimigos
espreitando com a mão mascarada:
não fiz mais que crescer com as minhas raízes,
e o chão que estendeu o meu arvoredo
decifrou os vermes que jaziam.
Veio morder-me Segunda-feira e lhe dei algumas folhas
Veio insultar-me Terça-feira e fiquei dormindo.
Chegou logo Quarta-feira com dentes iracundos.
Eu a deixei passar construindo raízes.
E quando Quinta-feira veio com uma venenosa
lança negra de urtigas e de escamas
eu a esperei em meio à minha poesia
e em plena lua lhe parti um cacho de uva.
Venham aqui estrelar-se nesta espada.
Venham se desfazer em meus domínios.
Venham em amarelos regimentos,
ou na congregação dos sulfurosos.
Morderão sombra e sangue de sinos
sob as sete léguas do meu canto.
XVII
Reúne-se o aço (1945)
Vi o mal e o mau, mas não em seus covis.
É uma história de fadas a maldade com caverna.
Aos pobres depois de terem tombado
em farrapos, à mina desgraçada,
povoaram-no com bruxas o caminho.
Encontrei a maldade sentada nos tribunais:
no Senado a encontrei vestida
e penteada, torcendo os debates
e as idéias para os próprios bolsos.
O mal e o mau
acabavam de sair do banho: estavam
encadernados em satisfações,
e eram perfeitos na suavidade
de seu falso decoro.
Vi o mal, e para
desterrar esta pústula vivi
com outros, acrescentando vidas,
fazendo-me secreta cifra, metal sem nome,
invencível unidade de povo e pó.
O orgulhoso estava feramente
combatendo em seu armário de marfim
e passou a maldade em meteoro
dizendo: “É admirável
a sua solitária retidão.
Deixai-o”.
O impetuoso tirou o seu alfabeto
e montado em sua espada se deteve
a perorar na rua deserta.
Passou o mal e lhe disse: “Que valente!”
e se foi ao clube para comentar a façanha.
Mas quando fui pedra e argamassa,
torre e aço, sílaba associada:
quando apertei a mão de meu povo
e fui ao combate com o mar inteiro;
quando deixei a minha solidão e pus
o meu orgulho no museu, a minha vaidade no
desvão das carruagens desengonçadas,
quando me fiz partido com outros homens, quando
se organizou o metal da pureza,
então veio o mal e disse: “Duro
com eles, no cárcere, morram!”
Mas já era tarde, e o movimento
do homem, meu partido,
é a invencível primavera, dura
sob a terra, quando foi esperança
e fruto geral para mais tarde.
XVIII
O vinho
Vinho da primavera.
.
.
Vinho do outono, dai-me
meus companheiros, uma mesa em que caiam
folhas equinociais, e o grande rio do mundo
que empalideça um pouco movendo o seu som
longe de nossos cantos.
Sou um bom companheiro.
Não entraste nesta casa para que te arrancasses
um pedaço do ser.
Talvez quando te vás
leves algo meu, castanhas, rosas ou
uma segurança de raízes ou navios
que quis compartilhar contigo, companheiro.
Canta comigo até que as taças
se derramem deixando púrpura desprendida
sobre a mesa.
Esse mel vem à tua boca
da terra, de seus obscuros racimos.
Quantos me faltam, sombras do canto,
companheiros
que amei oferecendo a face, tirando de minha vida
a incomparável ciência varonil que professo,
a amizade, arvoredo de rugosa ternura.
Dá-me a mão, encontra-te comigo,
simples, não busques nada em minhas palavras,
a não ser a emanação duma planta nua.
Por que me pedes mais que a um operário? Já sabes
que a golpes fui forjando minha enterrada forja,
e que não quero falar a não ser como ê minha língua.
Sai a procurar doutores se não te agrada o vento.
Nós cantaremos com o vinho áspero
da terra: golpearemos as taças do outono,
e a guitarra ou o silêncio irão trazendo
linhas de amor, linguagem de rios que não existem,
estrofes adoradas que não têm sentido.
XIX
Os frutos da terra
Como sobe a terra pelo milho, buscando
leitosa luz, cabelos, marfim endurecido,
a primorosa rede da espiga madura
e todo o reino de ouro que se vai debulhando?
Quero comer cebolas, traze-me do mercado
uma, um globo pleno de neve cristalina,
que transformou a terra em cera e equilíbrio
como uma bailarina detida em seu vôo.
Dá-me umas codornizes de caça, cheirando
a musgo da selva, um pescado vestido
como um rei, destilando profundidade molhada
sobre a fonte,
abrindo pálidos olhos de ouro
sob o multiplicado mamilo dos limões.
Vamo-nos, e sob a castanheira a fogueira
deixará o seu tesouro branco sob as brasas,
e um cordeiro com toda a sua oferenda irá dourando
a sua linhagem até ser âmbar para a tua boca.
Dá-me todas as coisas da terra, torcazes
recém-tombadas, ébrias de cachos selvagens,
doces enguias que ao morrer, fluviais,
alongaram as suas pétalas diminutas,
e uma bandeja de ácidos ouriços
darão o seu alaranjado submarino
ao fresco firmamento das alfaces.
E antes que a lebre marinada
encha de aroma o ar do almoço
como silvestre fuga de sabores,
para as ostras do sul, recém-abertas,
em seus estojos de esplendor salgado,
vai o meu beijo empapado nas substâncias
da terra que amo e que percorro
com todos os caminhos do meu sangue.
XX
A grande alegria
A sombra que indaguei já não me pertence.
Eu tenho a alegria duradoura do mastro,
a herança dos bosques, o vento do caminho
e um dia decidido sob a luz terrestre.
Não escrevo para que outros livros me aprisionem,
nem para encarniçados aprendizes de lírio,
mas para singelos habitantes que pedem
água e lua, elementos da ordem imutável,
escolas, pão e vinho, guitarras e ferramentas.
Escrevo para o povo ainda que ele não possa
ler a minha poesia com seus olhos rurais.
Virá o instante em que uma linha, a aragem
que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,
então o labrego levantará os olhos,
o mineiro sorrirá quebrando pedras,
o caldeireiro limpará a fronte,
o pescador verá melhor o brilho
dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,
o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio
do aroma do sabão, olhará meus poemas,
e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.
Isso é bastante, essa é a coroa que quero.
Quero que à saída da fábrica e das minas
esteja a minha poesia aderida à terra,
ao ar, à vitória do homem maltratado.
Quero que um jovem ache na dureza
que construí, com lentidão e com metais,
como uma caixa, abrindo-a, cara a cara, a vida,
e afundando a alma toque as rajadas que fizeram
minha alegria, nas alturas tempestuosas.
XXI
A morte
Renasci muitas vezes, desde o fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com as minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre o meu corpo, destinado a ser terra.
Não comprei uma parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.
Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo de estudá-la,
enquanto os espancavam os que têm
o céu dividido e arrumado.
Tenho pronta a minha morte, como uma roupa
que me espera, da cor que amo,
da extensão que procurei inutilmente,
da profundidade que necessito.
Quando o amor gastou a sua matéria evidente
e a luta debulha os seus martelos
em outras mãos de acrescentada força,
vem a morte para apagar os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.
XXII
A vida
Que outro se preocupe com os ossários.
.
.
O mundo
tem uma cor nua de maçã: os rios
arrastam um caudal de medalhas silvestres
e em todas as partes vive Rosalía, a doce,
e Juan, o companheiro.
.
.
Ásperas pedras fazem
o castelo, e o barro mais suave que as uvas
com os restos do trigo fez minha casa.
Vastas terras, amor, sinos lentos,
combates reservados à aurora,
cabeleiras de amor que me esperaram,
depósitos adormecidos de turquesa:
casas, caminhos, ondas que constroem
uma estátua varrida pelos sonhos,
padarias na madrugada,
relógios educados na areia,
papoulas do trigo circulante,
e estas mãos escuras que amassaram
os materiais de minha própria vida:
para viver acendem-se as laranjas
sobre a multidão dos destinos!
Que os coveiros escarvem as matérias
aziagas: que levantem
os fragmentos sem luz da cinza,
e falem do idioma do verme.
Diante de mim só tenho sementes,
desenvolvimentos radiantes e doçura.
XXIII
Testamento (I)
Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
a minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que lá repousem os maltratados filhos
da minha pátria, saqueada por machados e traidores,
desbaratada em seu sangue sagrado,
consumida em vulcânicos farrapos.
Quero que ao limpo amor que percorresse
o meu domínio, descansem os cansados,
se sentem a minha mesa os obscuros,
durmam sobre a minha cama os feridos.
Irmão, esta é a minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que ergui lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som na minha janela
como num crescente caracol
e logo estabeleceu as suas latitudes
em minha desordenada geologia.
Vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.
XXIV
Testamento (II)
Deixo meus velhos livros, recolhidos
pelos rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no rouco tear interrompido
as significações de amanhã.
Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos c mineiros
haja dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão desengonçado, o filamento
que enredou as nossas ávidas planícies.
Toquem eles o inferno, este passado
que esmagou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.
Sobre os ossos de caciques, longe
de nossa herança traída, em pleno
ar de povos que caminham sós,
eles vão para povoar o estatuto
dum longo sofrimento vitorioso.
Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiães, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakóvski vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.
XXV
Disposições
Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
diante do mar que conheço, de cada área rugosa
de pedras e ondas que meus olhos perdidos
não tornarão a ver.
Cada dia do oceano
meu trouxe, névoa ou puros precipícios de turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha face.
Cada passagem enlutada de cormorão, o vôo
de grandes aves grises que amavam o inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode o frio,
e ainda mais, a terra que um escondido herbário
secreto, filho de brumas e sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa agarradas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado da minha alegria, sabem
que lá quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra.
.
.
Quero ser arrastado
abaixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos caudais subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.
Abri junto a mim o vazio da que amo, e um dia”
deixai-a que outra vez me acompanhe na terra.
XXVI
Vou viver (1949)
Não vou morrer.
Saio agora
neste dia cheio de vulcões
para a multidão, para a vida.
Aqui deixo arrumadas estas coisas
hoje que os pistoleiros passeiam
com a “cultura ocidental” nos braços,
com as mãos que matam na Espanha
e as forcas que oscilam em Atenas
e a desonra que governa o Chile
e paro de contar.
Aqui fico
com palavras e povos e caminhos
que me esperam de novo, e que batem
com mãos consteladas em minha porta.
XXVII
A meu partido
Me deste a fraternidade para o que não conheço.
Me acrescentaste a força de todos os que vivem.
Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento.
Me deste a liberdade que não tem o solitário.
Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo.
Me deste a retidão que necessita a árvore.
Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens.
Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos.
Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos.
Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha.
Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético.
Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.
XXVIII
Aqui termino (1949)
Este livro termina aqui.
Nasceu
da ira como uma brasa, como os territórios
de bosques incendiados, e desejo
que continue como uma árvore vermelha
propagando a sua clara queimadura.
Mas não somente cólera em seus ramos
encontraste: não somente as suas raízes
procuraram a dor mas também a força,
e força sou de pedra pensativa,
alegria de mãos congregadas.
Por fim, sou livre dentro dos seres.
Entre os seres, como o ar vivo,
e da solidão acurralada
saio para a multidão dos combates,
livre porque em minha mão vai a tua mão,
conquistando alegrias indomáveis.
Livro comum de um homem, pão aberto
é esta geografia do meu canto,
e uma comunidade de lavradores
algum dia recolherá o seu fogo
e semeará as suas chamas e suas folhas
outra vez na nave da terra.
E nascerá de novo esta palavra,
talvez em outro tempo sem dores,
sem as impuras fibras que aderiram
negras vegetações em meu canto,
e outra vez nas alturas estará ardendo
meu coração queimante e estrelado.
Assim termina este livro, aqui deixo
meu Canto geral escrito
na perseguição, cantando sob
as asas clandestinas de minha pátria.
Hoje, 5 de fevereiro, neste ano
de 1949, no Chile, em “Godomar
de Chena”, alguns meses antes
dos quarenta e cinco anos de minha idade.
A fronteira (1904)
O primeiro que vi foram árvores, barrancos
decorados com flores de selvagem formosura,
úmido território, bosques que se incendiavam
e o inverno detrás do mundo, transbordado.
Minha infância são sapatos molhados, troncos partidos
tombados na selva, devorados por cipós
e escaravelhos, doces dias sobre a aveia,
e a barba dourada de meu pai saindo
para a majestade da ferroviária.
Diante de minha casa a água austral cavava
fundas derrotas, lameiros de argilas enlutadas,
que no verão eram atmosfera amarela
por onde as carretas rangiam e choravam
prenhadas com nove meses de trigo.
Rápido sol do sul:
restolhos, fumaradas
em caminhos de terras escarlates, ribeiras
de rios de redonda linhagem, currais e potreiros
em que reverberava o mel do meio-dia.
O mundo poeirento entrava grau por grau
nos galpões, entre barricas e cordéis,
nas adegas carregadas com o resumo rubro
da aveleira, todas as pálpebras do bosque.
Pareceu-me ascender com o traje tórrido
do verão, com as máquinas debulhadoras,
pelas costas, na terra envernizada de boldos
erguida entre os carvalhos, indelével,
agarrando-se às rodas como carne esmagada.
Minha infância percorreu as estações: entre
os trilhos, os castelos de madeira recente,
a casa sem cidade, apenas protegida
por reses e maçãs de perfume indizível
fui eu, delgado menino cuja pálida forma
se impregnava de bosques vazios e adegas.
II
O fundeiro (1919)
Amor, talvez amor indeciso, inseguro:
só um golpe de madressilvas na boca,
só umas tranças cujo movimento subia
até minha solidão como uma fogueira negra,
e o mais: o rio noturno, os sinais
do céu, a fugaz primavera molhada,
a enlouquecida fronte solitária, o desejo
levantando as suas cruéis tulipas na noite.
Eu desfolhei as constelações, ferindo-me,
afiando os dedos no tacto das estrelas,
afiando fibra por fibra a contextura gelada
dum castelo sem portas,
ó destroçados amores
cujo jasmim detém sua transparência em vão,
ó nuvens que no dia do amor desembocam
como um soluço entre as ervas hostis,
nua solidão amarrada a uma sombra,
a uma ferida adorada, a uma lua indomável.
Nomeai-me, disse talvez aos rosais:
eles talvez, a sombra de confusa ambrosia,
cada tremor do mundo conhecia meus passos,
me esperava o rincão mais oculto, a estátua
da árvore soberana na planície:
tudo na encruzilhada chegou a meu desvario
debulhando o meu nome sobre a primavera.
E então, doce rosto, açucena queimada,
tu, a que não dormiste com o meu sonho, bravia,
medalha perseguida por uma sombra, amada
sem nome, feita de toda a estrutura do pólen,
de todo o inverno ardendo sobre estrelas impuras:
ó amor, desenredado jardim que se consome,
em ti se levantaram meus sonhos e cresceram
como um fermento de pães tenebrosos.
III
A casa
Minha casa, as paredes cuja madeira fresca,
recém-cortada, cheira ainda: destrambelhada
casa de fronteira, que rangia
a cada passo, e silvava com o vento de guerra
do tempo austral, fazendo-se elemento
de tempestade, ave desconhecida
sob cujas geladas plumas cresceu o meu canto.
Vi sombras, rostos que como plantas
em torno de minhas raízes cresceram, parentes
que cantavam toadas à sombra duma árvore
e disparavam entre os cavalos molhados,
mulheres escondidas na sombra
que deixavam as torres masculinas,
galopes que fustigavam a luz,
enrarecidas
noites de cólera, cachorros que latiam.
Meu pai com a alva escura
da terra, para que perdidos arquipélagos
em seus trens que uivavam se deslizou?
Mais tarde amei o odor do carvão no fumo,
os azeites, os eixos de precisão gelada,
e o grave trem cruzando o inverno estendido
sobre a terra, como uma lagarta orgulhosa.
De repente trepidaram as portas.
É meu pai.
Rodeiam-no os centuriões do caminho:
ferroviários envoltos em suas mantas molhadas,
o vapor e a chuva com eles revestiram
a casa, a sala de jantar se encheu de relatos
enrouquecidos, os copos se verteram,
e até mim, dos seres, como uma separada
barreira, em que viviam as dores,
chegaram as aflições, as carrancudas
cicatrizes, os homens sem dinheiro,
a garra mineral da pobreza.
IV
Companheiros de viagem (1921)
Logo cheguei à capital, vagamente impregnado
de névoa e chuva.
Que ruas eram essas?
Os trajes de 1921 pululavam
num odor atroz de gás, café e tijolos.
Entre os estudantes passei sem compreender,
reconcentrando em mim as paredes, buscando
cada tarde em minha pobre poesia os ramos,
as gotas e a lua que se haviam perdido.
Acudi ao fundo dela, submergindo
cada tarde em suas águas, agarrando impalpáveis
estímulos, gaivotas de um mar abandonado,
até fechar os olhos e naufragar no meio
de minha própria substância.
Foram trevas, foram
apenas escondidas, úmidas folhas do subsolo?
De que matéria ferida se debulhou a morte
até tocar os meus membros, conduzir meu sorriso
e cavar nas ruas um poço desgraçado?
Saí a viver: cresci e endurecido
fui pelas ruelas miseráveis,
sem compaixão, cantando nas fronteiras
do delírio.
Os muros se encheram de rostos:
olhos que não olhavam a luz, águas torcidas
que iluminavam um crime, patrimônios
de solitário orgulho, cavidades
cheias de corações arrasados.
Com eles fui: só em seu coro
a minha voz reconheceu as solidões
onde nasceu.
Comecei a ser homem
cantando entre as chamas, acolhido
por companheiros de condição noturna
que cantaram comigo nas pousadas,
e que me deram mais de uma ternura,
mais de uma primavera defendida
por suas mãos hostis,
único fogo, planta verdadeira
dos desmoronados arrabaldes.
V
A estudante (1923)
Ó tu, mais doce, mais interminável
que a doçura, carnal enamorada
entre as sombras: de outros dias
surges enchendo de pesado pólen
a tua taça, na delícia.
Da noite cheia
de ultrajes, noite como o vinho
destampado, noite de oxidada púrpura,
em ti caí como uma torre ferida,
e entre os pobres lençóis a tua estrela
palpitou contra mim queimando o céu.
Ó redes do jasmim, ó fogo físico
alimentado nesta nova sombra,
trevas que tocamos apertando
a cintura central, golpeando o tempo
com sanguinárias rajadas de espigas.
Amor sem nada mais, no vazio
duma borbulha, amor com ruas mortas,
amor, quando morreu toda a vida
e nos deixou acendendo os rincões.
Mordi mulher, me afundei desvanecendo-me
desde minha força, entesourei cachos de uva,
e saí a caminhar de beijo em beijo,
atado às carícias, amarrado
a esta gruta de fria cabeleira,
a estas pernas por lábios percorridas:
faminto entre os lábios da terra,
devorando com lábios devorados.
VI
O viajante (1927)
E saí pelos mares aos portos.
O mundo entre as gruas
e as adegas da praia sórdida
mostrou em sua greta chusmas e mendigos,
companhias de famintos espectrais
no costado dos navios.
Países
recostados, ressequidos, na areia,
trajes talares, mantos fulgurantes
saíam do deserto, armados
como escorpiões, guardando o buraco
do petróleo, na empoeirada
rede dos calcinados poderios.
Vivi na Birmânia, entre as cúpulas
do metal poderoso, e a mataria
onde o tigre queimava os seus anéis
de ouro sangrento.
De minhas janelas
em Dalhousie Street, o odor
indefinível, musgo nos pagodes,
perfumes e excrementos, pólen, pólvora,
de um mundo saturado pela umidade humana,
subiu até mim.
As ruas me chamaram
com os seus inumeráveis movimentos
de telas de açafrão e escarros vermelhos,
junto à suja marulhada do Irrawaddy, da
água cuja espessura, sangue e azeite,
vinha descarregando a sua linhagem
desde as terras altas cujos deuses
pelo menos dormiam rodeados por seu barro.
VII
Longe daqui
Índia, não amei a tua dilacerada roupa,
a tua desarmada população de farrapos.
Por anos fui com olhos que queriam
subir aos promontórios do desprezo,
entre cidades como cera verde,
entre os talismãs, os pagodes
cuja pastelaria sanguinária
espalhava terríveis aguilhões.
Vi o miserável acumulado, em cima
do outro, do sofrimento de seu irmão,
as ruas como rios de aflição,
as pequenas aldeias esmagadas
entre as grossas unhas das flores,
e fui na multidão, sentinela
do tempo, separando enegrecidas
cicatrizes, cerrames de escravos.
Entrei nos templos, estuque e pedraria
fazem os degraus, sangue e morte sujos,
e os bestiais sacerdotes, ébrios
do estupor ardente, disputando
moedas revolvidas no chão,
enquanto, ó pequeno ser humano,
os grandes ídolos de pés fosfóricos
estiravam as línguas vingativas,
ou sobre um falo de pedra escarlate
deslizavam as pedras trituradas.
VIII
As máscaras de gesso
Não amei.
.
.
Não sei se foi piedade ou vômito.
Corri pelas cidades, Saigon, Madras,
Khandy, até as enterradas, majestosas
pedras de Anuradhapura, e na rocha
do Ceilão, como baleias
as efígies de Siddhartha, fui mais longe:
no saibro de Penang, pelas ribeiras
dos rios, na selva
do silêncio puríssimo, culminado
pelo rebanho das intensas vidas,
para além de Bangkok, as vestimentas
de bailarinas com máscaras de gesso.
Golfos pestilenciais elevavam
tetos de pedraria transbordante,
em largos rios a vivenda
de milhares de pobres, apertados
nas embarcações, e outros, todos
cobriam a infinita terra,
para além dos rios amarelos,
com uma única pele de animal roto,
pele dos povos, pelanca humilhada
por uns e outros amos.
Capitães e príncipes
viviam sobre o úmido estertor
de agonizantes lâmpadas, sangrando
a vida dos pobres artesãos,
e entre as garras e chicotes, mais alto
era a concessão, o europeu,
o norte-americano do petróleo,
fortificando templos de alumínio,
arando sobre a pele desamparada,
estabelecendo novos sacrifícios de sangue.
IX
O baile (1929)
Na profundidade de Java, entre as sombras
territoriais: aqui está o palácio iluminado.
Passo entre arqueiros verdes, aderidos
aos muros, entro
na sala do trono.
Está o monarca,
apoplético porco, pavão impuro,
carregado de cordões, constelado,
entre dois de seus amos holandeses,
mercadores carrancudos que vigiam.
Que repugnante grupo de insetos, como arremessam sobre os seres, conscienciosamente,
pauladas de vileza.
As sentinelas sórdidas
das longínquas terras, e o monarca
como um saco cego, arrastando
a sua carne espessa e as suas estrelas falsas
sobre uma humilde pátria de prateiros.
Mas entraram de repente
do remoto fundo do palácio
dez bailarinas, lentas como um sonho
debaixo das águas.
Cada pé se aproximava
de costas, avançando mel noturno
como um peixe de ouro, e suas máscaras ocre
levavam sobre o cabelo de azeitada espessura
uma coroa fresca de flores de laranjeira.
Até que se colocaram
diante do sátrapa, e com elas a música, um rumor
de élitros de cristal, a dança pura
que cresceu como flor, as mãos claras
construindo uma estátua fugitiva,
a túnica batida nos calcanhares
por um golpe de onda ou de brancura,
e em cada movimento de pomba
feita em metal sagrado, o sussurrante
ar do arquipélago, aceso
como uma árvore nupcial na primavera.
X
A guerra (1930)
Espanha, envolta em sonho, despertando
como uma cabeleira com espigas,
te vi nascer, entre as brenhas
e as trevas, lavradora,
levantar-te entre os carvalhos e os montes
e percorrer o ar com as veias abertas.
Mas te vi atacada nas esquinas
pelos antigos bandoleiros.
Iam
mascarados, com as suas cruzes feitas
de víboras, com os pés metidos
no glacial pântano dos mortos.
Então vi o teu corpo desprendido
de matagais, quebrado
sobre a areia encarniçada, aberto,
sem mundo, aguilhoado na agonia.
Até hoje corre a água de tuas penhas
entre os calabouços, e susténs
a tua coroa de farpas em silêncio,
para ver quem pode mais, se tuas dores
ou os rostos que cruzam sem olhar-te.
Eu vivi com a tua aurora de fuzis,
e quero que de novo povo e pólvora
sacudam as ramagens desonradas
até que trema o sonho e se reúnam
os frutos divididos na terra.
XI
O amor
O firme amor, Espanha, me deste com teus dons.
Veio a mim a ternura que esperava
e me acompanha a que leva o beijo
mais profundo a minha boca.
Não puderam
apartá-la de mim as tempestades
nem as distâncias acrescentaram terra
ao espaço de amor que conquistamos.
Quando antes do incêndio, entre as messes
da Espanha apareceu a tua vestimenta,
eu fui dupla noção, luz duplicada,
e a amargura resvalou em teu rosto
até cair sobre pedras perdidas.
De uma grande dor, de arpões eriçados
desemboquei em tuas águas, amor meu,
como um cavalo que galopa em meio
à ira e à morte, e o recebe
de súbito uma maçã matutina,
uma cascata de tremor silvestre.
Desde então, amor, te conheceram
os páramos que fizeram a minha conduta,
o oceano escuro que me segue,
e os castanhos do outono imenso.
Quem não te viu, amorosa, doce minha,
na luta, a meu lado, como uma
aparição, com todos os sinais
da estrela? Quem, se andou
entre as multidões a procurar-me,
porque sou grão do celeiro humano,
não te encontrou, agarrada a minhas raízes,
elevada no canto de meu sangue?
Não sei, meu amor, se terei tempo e lugar para
escrever outra vez a tua sombra fina
estendida em minhas páginas, esposa:
são duros estes dias e radiantes,
e recolhemos deles a doçura
amassada com pálpebras e espinhos.
Não sei recordar quando começas:
estavas antes do amor,
vinhas
com todas as essências do destino,
e antes de ti, a solidão foi tua,
foi talvez a tua adormecida cabeleira.
Hoje, taça de meu amor, te nomeio apenas,
título de meus dias, adorada,
e no espaço ocupas como o dia
toda a luz que tem o universo.
XII
México (1940)
México, de mar a mar te vivi, transpassado
por tua férrea cor, subindo montes
sobre os quais aparecem monastérios
cheios de espinhos,
o ruído venenoso
da cidade, os dentes solapados
do pululante poetiso, e sobre
as folhas dos mortos e os degraus
que construiu o silêncio irredutível,
como coto dum amor leproso,
o esplendor molhado das ruínas.
Porém do acre acampamento, rude
suor, lanças de grãos amarelos,
sobe a agricultura coletiva
repartindo os pães da pátria.
Outras vezes calcárias cordilheiras
interromperam o meu caminho,
formas
das metralhadas nevadas
que despedaçam a casca escura
da pele mexicana, e os cavalos
que cruzam como o beijo da pólvora
sob os patriarcais arvoredos.
Aqueles que apagaram bravamente
a fronteira do prédio e entregaram
a terra conquistada pelo sangue
entre os esquecidos herdeiros,
também aqueles dedos dolorosos
atados ao sul das raízes,
a minuciosa máscara teceram,
povoaram de floral quinquilharia
e de fogo têxtil o território.
Não soube que mais amei, se a escavada
antigüidade de rostos que guardaram
a intensidade de pedras implacáveis,
ou a rosa recente, construída
por uma mão ontem ensangüentada.
E assim de terra em terra fui tocando
o barro americano, minha estatura,
e subiu por minhas veias o esquecimento
recostado no tempo, até que um dia
estremeceu a minha boca a sua linguagem.
XIII
Nos muros do México (1943)
Os países se estendem junto aos rios, buscam
o suave peito, os lábios do planeta,
tu, México, tocaste
os ninhos do espinho,
a desértica altura da águia sangrenta,
o mel da coluna combatida.
Outros homens buscaram o rouxinol, acharam
o fumo, o vale, regiões como a pele humana:
tu, México, enterraste as mãos na terra,
tu cresceste na pedra de olhar selvagem.
Quando chegou a tua boca a rosa do rocio
o látego do céu a converteu em tormento.
foi a tua origem um vento de punhais
entre dois mares de irritada espuma.
Tuas pálpebras se abriram na espessa papoula
de um dia enfurecido
e a neve estendia sua espaçosa brancura
onde o fogo vivo começava a habitar-te.
conheço a tua coroa de nopais
e sei que sob as tuas raízes
a tua subterrânea estátua, México, se constrói
com as águas secretas da terra
e os lingotes cegos das minas.
Ó terra, ó esplendor
de tua perpétua e dura geografia,
a derramada rosa do mar da Califórnia,
o raio verde que Yucatán derrama,
o amarelo amor de Sinaloa,
as pálpebras rosadas de Morelia,
e o longo fio da piteira fragrante
que amarra o coração à tua estatura.
México augusto de rumor e espadas,
quando a noite na terra era maior,
repartiste o berço do milho entre os homens.
Levantaste a mão cheia de pó santo
e a puseste em meio a teu povo
como uma nova estrela de pão e de fragrância.
O camponês então à luz da pólvora
olhou a sua terra desencadeada
brilhar sobre os mortos germinais.
Canto a Morelos.
Quando caía
seu fulgor verrumado,
uma pequena gota ia chamando
sob a terra até encher a taça
de sangue, e da taça um rio
até chegar a toda a silenciosa praia
da América, empapando-a de misteriosa essência.
Canto a Cuauhtémoc.
Toco
a sua linhagem de lua
e seu fino sorriso de deus martirizado.
Onde estás, perdeste,
antigo irmão, a tua dureza doce?
Em que te converteste?
Onde vive a tua estação de fogo?
Vive na pele de nossa mão escura,
vive nos cinzentos cereais:
quando, depois da noturna sombra
se debulham as cepas da aurora,
os olhos de Cuauhtémoc abrem a sua luz remota
sobre a vida verde da folhagem.
Canto a Cárdenas.
Eu estive;
eu vivi a tormenta de Castilla.
Eram os dias cegos das vidas.
Altas dores como ramos cruéis
feriam a nossa mãe angustiada.
Era o abandonado luto, os muros do silêncio
quando
se atraiçoava, se assaltava e feria
essa pátria da alva e do loureiro.
Então
só a estrela vermelha da Rússia e o olhar
de Cárdenas brilharam na noite do homem.
General, presidente da América, te deixo neste canto
algo do resplendor que recolhi na Espanha.
México, abriste as portas e as mãos
ao errante, ao ferido,
ao desterrado, ao herói.
Sinto que isto não possa se dizer de outra forma
e quero que se agarrem as minhas palavras
outra vez como beijos em teus muros.
De par em par abriste a tua porta combatente
e encheu-se de estranhos filhos a tua cabeleira
e tocaste com as tuas duras mãos
as faces dos filhos
que te pariu com lágrimas e tormenta do mundo.
Aqui termino, México,
aqui te deixo esta caligrafia
sobre as fontes para que a idade
vá apagando este novo discurso
de quem te amou por livre e por profundo.
Adeus te digo, mas não me vou.
Vou-me, mas não posso
dizer-te adeus.
Porque na minha vida, México, vives como uma pequena
águia equivocada que circula nas minhas veias,
e só no fim a morte dobrará as asas
sobre o meu coração de soldado adormecido.
XIV
O regresso (1944)
Regressei.
.
.
O Chile me recebeu com o rosto amarelo do deserto.
Peregrinei sofrendo
de árida lua em cratera arenosa
e encontrei os domínios agrestes do planeta,
a lisa luz sem pâmpanos, a retidão vazia.
Vazia? Mas sem vegetais, sem garras, sem esterco
me revelou a terra sua dimensão nua
e lá longe a sua longa linha em que nascem
aves e peitos ígneos de suave contextura.
Porém mais longe homens cavavam as fronteiras,
recolhiam metais duros, disseminados
alguns como a farinha de amargos cereais,
outros como a altura calcinada do fogo,
e homens e lua, tudo me envolveu em sua mortalha
até perder o fio vazio dos sonhos.
Me entreguei aos desertos e o homem da escória
saiu de seu buraco, de sua aspereza muda
e soube as dores de meu povo perdido.
Então, fui por ruas e curules e disse
o quanto vi, mostrei as mãos que tocaram
os torrões enfartados de dor, as vivendas
da desamparada pobreza, o miserável
pão e a solidão da lua esquecida.
E lado a lado com meu irmão sem sapatos
quis mudar o reino das moedas sujas.
Fui perseguido, mas a nossa luta continua.
A verdade é mais alta que a lua.
É vista, como se estivessem num navio negro,
pelos homens das minas quando a olham à noite.
E na sombra a minha voz é repartida
pelas mais duras estirpes da terra.
XV
A linha de madeira
Eu sou um carpinteiro, cego, sem mãos.
Vivi
sob as águas, consumindo frio,
sem construir as caixas fragrantes, as moradas
que cedro a cedro erguem a grandeza,
porém meu canto foi procurando fios do bosque,
secretas fibras, ceras delicadas,
e foi cortando ramos, perfumando
a solidão com lábios de madeira.
Amei cada matéria, cada gota
de púrpura ou de metal, água e espiga
e entrei em espessas camadas resguardadas
por espaço e areia tremulante
até cantar com a boca destruída,
como um morto, nas uvas da terra.
Argila, barro, vinho, me cobriram,
enlouqueci tocando os quadris
da pele cuja flor foi sustida
como um incêndio sob a minha garganta,
e pela pedra passearam os meus sentidos
invadindo fechadas cicatrizes.
Como mudei sem ser, desconhecendo
o meu ofício antes de ser,
a metalurgia
que estava destinada à minha dureza,
às serranias olfateadas
pelas cavalgaduras no inverno?
Tudo se fez ternura e mananciais
e servi somente para noturno.
XVI
A bondade combatente
Mas não tive a bondade morta nas ruas.
Rechacei o seu aqueduto purulento
e não toquei o seu mar contaminado.
Extraí o bem como um metal, cavando
além dos olhos que mordiam,
e entre as cicatrizes foi crescendo
meu coração nascido nas espadas.
Não saí desbocado, descarregando
terra ou punhal entre os homens.
Não era
meu ofício o da ferida ou o veneno.
Não sujeitei o inerme em ataduras
que lhe atravessassem chicotes gelados,
não fui à praça procurar inimigos
espreitando com a mão mascarada:
não fiz mais que crescer com as minhas raízes,
e o chão que estendeu o meu arvoredo
decifrou os vermes que jaziam.
Veio morder-me Segunda-feira e lhe dei algumas folhas
Veio insultar-me Terça-feira e fiquei dormindo.
Chegou logo Quarta-feira com dentes iracundos.
Eu a deixei passar construindo raízes.
E quando Quinta-feira veio com uma venenosa
lança negra de urtigas e de escamas
eu a esperei em meio à minha poesia
e em plena lua lhe parti um cacho de uva.
Venham aqui estrelar-se nesta espada.
Venham se desfazer em meus domínios.
Venham em amarelos regimentos,
ou na congregação dos sulfurosos.
Morderão sombra e sangue de sinos
sob as sete léguas do meu canto.
XVII
Reúne-se o aço (1945)
Vi o mal e o mau, mas não em seus covis.
É uma história de fadas a maldade com caverna.
Aos pobres depois de terem tombado
em farrapos, à mina desgraçada,
povoaram-no com bruxas o caminho.
Encontrei a maldade sentada nos tribunais:
no Senado a encontrei vestida
e penteada, torcendo os debates
e as idéias para os próprios bolsos.
O mal e o mau
acabavam de sair do banho: estavam
encadernados em satisfações,
e eram perfeitos na suavidade
de seu falso decoro.
Vi o mal, e para
desterrar esta pústula vivi
com outros, acrescentando vidas,
fazendo-me secreta cifra, metal sem nome,
invencível unidade de povo e pó.
O orgulhoso estava feramente
combatendo em seu armário de marfim
e passou a maldade em meteoro
dizendo: “É admirável
a sua solitária retidão.
Deixai-o”.
O impetuoso tirou o seu alfabeto
e montado em sua espada se deteve
a perorar na rua deserta.
Passou o mal e lhe disse: “Que valente!”
e se foi ao clube para comentar a façanha.
Mas quando fui pedra e argamassa,
torre e aço, sílaba associada:
quando apertei a mão de meu povo
e fui ao combate com o mar inteiro;
quando deixei a minha solidão e pus
o meu orgulho no museu, a minha vaidade no
desvão das carruagens desengonçadas,
quando me fiz partido com outros homens, quando
se organizou o metal da pureza,
então veio o mal e disse: “Duro
com eles, no cárcere, morram!”
Mas já era tarde, e o movimento
do homem, meu partido,
é a invencível primavera, dura
sob a terra, quando foi esperança
e fruto geral para mais tarde.
XVIII
O vinho
Vinho da primavera.
.
.
Vinho do outono, dai-me
meus companheiros, uma mesa em que caiam
folhas equinociais, e o grande rio do mundo
que empalideça um pouco movendo o seu som
longe de nossos cantos.
Sou um bom companheiro.
Não entraste nesta casa para que te arrancasses
um pedaço do ser.
Talvez quando te vás
leves algo meu, castanhas, rosas ou
uma segurança de raízes ou navios
que quis compartilhar contigo, companheiro.
Canta comigo até que as taças
se derramem deixando púrpura desprendida
sobre a mesa.
Esse mel vem à tua boca
da terra, de seus obscuros racimos.
Quantos me faltam, sombras do canto,
companheiros
que amei oferecendo a face, tirando de minha vida
a incomparável ciência varonil que professo,
a amizade, arvoredo de rugosa ternura.
Dá-me a mão, encontra-te comigo,
simples, não busques nada em minhas palavras,
a não ser a emanação duma planta nua.
Por que me pedes mais que a um operário? Já sabes
que a golpes fui forjando minha enterrada forja,
e que não quero falar a não ser como ê minha língua.
Sai a procurar doutores se não te agrada o vento.
Nós cantaremos com o vinho áspero
da terra: golpearemos as taças do outono,
e a guitarra ou o silêncio irão trazendo
linhas de amor, linguagem de rios que não existem,
estrofes adoradas que não têm sentido.
XIX
Os frutos da terra
Como sobe a terra pelo milho, buscando
leitosa luz, cabelos, marfim endurecido,
a primorosa rede da espiga madura
e todo o reino de ouro que se vai debulhando?
Quero comer cebolas, traze-me do mercado
uma, um globo pleno de neve cristalina,
que transformou a terra em cera e equilíbrio
como uma bailarina detida em seu vôo.
Dá-me umas codornizes de caça, cheirando
a musgo da selva, um pescado vestido
como um rei, destilando profundidade molhada
sobre a fonte,
abrindo pálidos olhos de ouro
sob o multiplicado mamilo dos limões.
Vamo-nos, e sob a castanheira a fogueira
deixará o seu tesouro branco sob as brasas,
e um cordeiro com toda a sua oferenda irá dourando
a sua linhagem até ser âmbar para a tua boca.
Dá-me todas as coisas da terra, torcazes
recém-tombadas, ébrias de cachos selvagens,
doces enguias que ao morrer, fluviais,
alongaram as suas pétalas diminutas,
e uma bandeja de ácidos ouriços
darão o seu alaranjado submarino
ao fresco firmamento das alfaces.
E antes que a lebre marinada
encha de aroma o ar do almoço
como silvestre fuga de sabores,
para as ostras do sul, recém-abertas,
em seus estojos de esplendor salgado,
vai o meu beijo empapado nas substâncias
da terra que amo e que percorro
com todos os caminhos do meu sangue.
XX
A grande alegria
A sombra que indaguei já não me pertence.
Eu tenho a alegria duradoura do mastro,
a herança dos bosques, o vento do caminho
e um dia decidido sob a luz terrestre.
Não escrevo para que outros livros me aprisionem,
nem para encarniçados aprendizes de lírio,
mas para singelos habitantes que pedem
água e lua, elementos da ordem imutável,
escolas, pão e vinho, guitarras e ferramentas.
Escrevo para o povo ainda que ele não possa
ler a minha poesia com seus olhos rurais.
Virá o instante em que uma linha, a aragem
que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,
então o labrego levantará os olhos,
o mineiro sorrirá quebrando pedras,
o caldeireiro limpará a fronte,
o pescador verá melhor o brilho
dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,
o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio
do aroma do sabão, olhará meus poemas,
e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.
Isso é bastante, essa é a coroa que quero.
Quero que à saída da fábrica e das minas
esteja a minha poesia aderida à terra,
ao ar, à vitória do homem maltratado.
Quero que um jovem ache na dureza
que construí, com lentidão e com metais,
como uma caixa, abrindo-a, cara a cara, a vida,
e afundando a alma toque as rajadas que fizeram
minha alegria, nas alturas tempestuosas.
XXI
A morte
Renasci muitas vezes, desde o fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com as minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre o meu corpo, destinado a ser terra.
Não comprei uma parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.
Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo de estudá-la,
enquanto os espancavam os que têm
o céu dividido e arrumado.
Tenho pronta a minha morte, como uma roupa
que me espera, da cor que amo,
da extensão que procurei inutilmente,
da profundidade que necessito.
Quando o amor gastou a sua matéria evidente
e a luta debulha os seus martelos
em outras mãos de acrescentada força,
vem a morte para apagar os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.
XXII
A vida
Que outro se preocupe com os ossários.
.
.
O mundo
tem uma cor nua de maçã: os rios
arrastam um caudal de medalhas silvestres
e em todas as partes vive Rosalía, a doce,
e Juan, o companheiro.
.
.
Ásperas pedras fazem
o castelo, e o barro mais suave que as uvas
com os restos do trigo fez minha casa.
Vastas terras, amor, sinos lentos,
combates reservados à aurora,
cabeleiras de amor que me esperaram,
depósitos adormecidos de turquesa:
casas, caminhos, ondas que constroem
uma estátua varrida pelos sonhos,
padarias na madrugada,
relógios educados na areia,
papoulas do trigo circulante,
e estas mãos escuras que amassaram
os materiais de minha própria vida:
para viver acendem-se as laranjas
sobre a multidão dos destinos!
Que os coveiros escarvem as matérias
aziagas: que levantem
os fragmentos sem luz da cinza,
e falem do idioma do verme.
Diante de mim só tenho sementes,
desenvolvimentos radiantes e doçura.
XXIII
Testamento (I)
Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
a minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que lá repousem os maltratados filhos
da minha pátria, saqueada por machados e traidores,
desbaratada em seu sangue sagrado,
consumida em vulcânicos farrapos.
Quero que ao limpo amor que percorresse
o meu domínio, descansem os cansados,
se sentem a minha mesa os obscuros,
durmam sobre a minha cama os feridos.
Irmão, esta é a minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que ergui lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som na minha janela
como num crescente caracol
e logo estabeleceu as suas latitudes
em minha desordenada geologia.
Vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.
XXIV
Testamento (II)
Deixo meus velhos livros, recolhidos
pelos rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no rouco tear interrompido
as significações de amanhã.
Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos c mineiros
haja dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão desengonçado, o filamento
que enredou as nossas ávidas planícies.
Toquem eles o inferno, este passado
que esmagou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.
Sobre os ossos de caciques, longe
de nossa herança traída, em pleno
ar de povos que caminham sós,
eles vão para povoar o estatuto
dum longo sofrimento vitorioso.
Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiães, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakóvski vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.
XXV
Disposições
Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
diante do mar que conheço, de cada área rugosa
de pedras e ondas que meus olhos perdidos
não tornarão a ver.
Cada dia do oceano
meu trouxe, névoa ou puros precipícios de turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha face.
Cada passagem enlutada de cormorão, o vôo
de grandes aves grises que amavam o inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode o frio,
e ainda mais, a terra que um escondido herbário
secreto, filho de brumas e sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa agarradas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado da minha alegria, sabem
que lá quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra.
.
.
Quero ser arrastado
abaixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos caudais subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.
Abri junto a mim o vazio da que amo, e um dia”
deixai-a que outra vez me acompanhe na terra.
XXVI
Vou viver (1949)
Não vou morrer.
Saio agora
neste dia cheio de vulcões
para a multidão, para a vida.
Aqui deixo arrumadas estas coisas
hoje que os pistoleiros passeiam
com a “cultura ocidental” nos braços,
com as mãos que matam na Espanha
e as forcas que oscilam em Atenas
e a desonra que governa o Chile
e paro de contar.
Aqui fico
com palavras e povos e caminhos
que me esperam de novo, e que batem
com mãos consteladas em minha porta.
XXVII
A meu partido
Me deste a fraternidade para o que não conheço.
Me acrescentaste a força de todos os que vivem.
Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento.
Me deste a liberdade que não tem o solitário.
Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo.
Me deste a retidão que necessita a árvore.
Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens.
Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos.
Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos.
Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha.
Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético.
Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.
XXVIII
Aqui termino (1949)
Este livro termina aqui.
Nasceu
da ira como uma brasa, como os territórios
de bosques incendiados, e desejo
que continue como uma árvore vermelha
propagando a sua clara queimadura.
Mas não somente cólera em seus ramos
encontraste: não somente as suas raízes
procuraram a dor mas também a força,
e força sou de pedra pensativa,
alegria de mãos congregadas.
Por fim, sou livre dentro dos seres.
Entre os seres, como o ar vivo,
e da solidão acurralada
saio para a multidão dos combates,
livre porque em minha mão vai a tua mão,
conquistando alegrias indomáveis.
Livro comum de um homem, pão aberto
é esta geografia do meu canto,
e uma comunidade de lavradores
algum dia recolherá o seu fogo
e semeará as suas chamas e suas folhas
outra vez na nave da terra.
E nascerá de novo esta palavra,
talvez em outro tempo sem dores,
sem as impuras fibras que aderiram
negras vegetações em meu canto,
e outra vez nas alturas estará ardendo
meu coração queimante e estrelado.
Assim termina este livro, aqui deixo
meu Canto geral escrito
na perseguição, cantando sob
as asas clandestinas de minha pátria.
Hoje, 5 de fevereiro, neste ano
de 1949, no Chile, em “Godomar
de Chena”, alguns meses antes
dos quarenta e cinco anos de minha idade.
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