Pablo Neruda
Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.
1904-07-12 Parral, Chile
1973-09-23 Santiago, Chile
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E Não Obstante...
Eu fiz uso
de Rabelais para a vida minha
como dos tomates.
Para mim
foi essencial sua carnívora trombeta,
sua principal algazarra.
E não obstante...
Aquela noite sozinha,
passei na costa dos pobres ricos,
na França lunática do Sul.
Eu vinha terrestre,
com o pó do Sul, a neve vermelha,
o ocaso de todos os caminhos.
Vinha feliz.
Eu despertava
com o colo dourado
da alegria
sob meu braço esquerdo,
com o talo amorado de uma rosa
sob meus novos beijos,
e então
a polícia,
muito correta,
me ofereceu cigarros
e me expulsou da França.
Era depois da primeira noite
de França. Entre sua terra
e meu corpo adormecido
o tempo havia passado
e aquela noite, sem sonhos,
em mim subiu a terra
com estrofes e vinhas.
Tremeu o coração enquanto dormia:
a terra o enchia
de elétrica beleza,
o tingia de verde,
água de França e vinho,
pâmpanos e raízes.
Antigos mortos amados,
açafrão e jasmins,
envolviam-me adormecido,
e eu pelas fragrâncias da terra
naveguei, trespassado,
até que o dia impôs sua espada branca
com gotas de orvalho
e então
veio
quem, senão ela,
a França de hoje,
a polícia,
e embora o navio me esperasse ancorado
para voltar ao Chile,
ali, entre cigarros, me expulsaram
de quase tudo o que amo,
e de nada serviu que eu servisse
a memória
de Charles d’Orléans, limpando diariamente
sua guitarra de luto,
de nada me serviu que Rimbaud viva
clandestino
em minha casa,
desde há muitos anos.
Ai de nada,
ai de nada.
Nem os olhos de Éluard como duas lâmpadas
de fogo azul sobre meus ombros.
Nada serviu.
A polícia
falava de instruções superiores,
e que fique bem claro:
não devo retornar nunca.
Não posso
pôr um só sapato
nesse proibido território.
Devo entender as coisas:
nem de trânsito,
nem voar por cima,
nem cruzar por baixo,
nem sussurrar junto ao mar, às ondas
da Normandia que amo.
Não posso
disfarçar-me de árvore e receber a chuva,
dormir junto aos berros.
Não devo junto a um rio
cantar ou chorar de alegria.
Não posso
comer queijo silvestre
com as alfaces
que ali são como lábios. Não posso
em Saint Louis de la Isla
beber meu vinho branco,
nenhuma,
nenhuma
tarde mais
de minha vida.
Foram completamente claros
e inteiramente obscuros.
Expulsam-me. Está claro.
Por que me expulsam? Obscuro.
Assim, a polícia
tomou em suas mãos
a condecoração que em outro tempo
o conde de Dampierre me deixou na lapela,
olharam-na
como se fosse um alho sujo
ou um toco de cigarro com gosto de sabão.
Eles tinham
instruções
eminentemente superiores,
e assim foi, cavalheiros e senhoras,
como parti da França.
É natural,
não necessito
explicar-me.
Todos sabemos
que a Embaixada
do Far West,
com seus vaqueiros,
cospem nas lâmpadas de cristal em Versailles.
Que com tabaco na boca
Jim Cola Cola
urina as estátuas
de Fontainebleau, as cegas
estátuas de rainhas adormecidas.
Todos sabemos isso, porém,
não quero falar a respeito,
não é meu tema.
Se eu tivesse
vinte anos
e se me houvessem
arrancado
a França da cintura,
este seria um longo
lamento, um comprido pranto.
Eu teria escrito
a morte e as exéquias
da mais olorosa primavera.
Mas, agora,
com tantas cicatrizes
que ainda não conseguiram
matar meu coração,
com a alegria
sem despertar ainda entre meus braços,
com toda a vida adiante,
com a esperança,
com tudo o que vem
quando nós não seremos mais,
com a França que amanhã
despertará também,
porque nunca dormiu,
com todos os jasmins e as vinhas,
as ruas, os caminhos,
e as canções que amo,
e que ninguém muito menos
a polícia
poderão arrancar-me da alma,
posso dizer, senhores
e senhoras,
que amo à doce França,
de onde me expulsaram.
E que continuo
vivendo
como se ali vivesse,
com sua terra e seus heróis,
com seu vinho e seu povo,
e que não despertei oficialmente
daquela única noite
em que todo o aroma
de sua profundeza e sua doçura
subiu em meu sonho para despedir-me.
de Rabelais para a vida minha
como dos tomates.
Para mim
foi essencial sua carnívora trombeta,
sua principal algazarra.
E não obstante...
Aquela noite sozinha,
passei na costa dos pobres ricos,
na França lunática do Sul.
Eu vinha terrestre,
com o pó do Sul, a neve vermelha,
o ocaso de todos os caminhos.
Vinha feliz.
Eu despertava
com o colo dourado
da alegria
sob meu braço esquerdo,
com o talo amorado de uma rosa
sob meus novos beijos,
e então
a polícia,
muito correta,
me ofereceu cigarros
e me expulsou da França.
Era depois da primeira noite
de França. Entre sua terra
e meu corpo adormecido
o tempo havia passado
e aquela noite, sem sonhos,
em mim subiu a terra
com estrofes e vinhas.
Tremeu o coração enquanto dormia:
a terra o enchia
de elétrica beleza,
o tingia de verde,
água de França e vinho,
pâmpanos e raízes.
Antigos mortos amados,
açafrão e jasmins,
envolviam-me adormecido,
e eu pelas fragrâncias da terra
naveguei, trespassado,
até que o dia impôs sua espada branca
com gotas de orvalho
e então
veio
quem, senão ela,
a França de hoje,
a polícia,
e embora o navio me esperasse ancorado
para voltar ao Chile,
ali, entre cigarros, me expulsaram
de quase tudo o que amo,
e de nada serviu que eu servisse
a memória
de Charles d’Orléans, limpando diariamente
sua guitarra de luto,
de nada me serviu que Rimbaud viva
clandestino
em minha casa,
desde há muitos anos.
Ai de nada,
ai de nada.
Nem os olhos de Éluard como duas lâmpadas
de fogo azul sobre meus ombros.
Nada serviu.
A polícia
falava de instruções superiores,
e que fique bem claro:
não devo retornar nunca.
Não posso
pôr um só sapato
nesse proibido território.
Devo entender as coisas:
nem de trânsito,
nem voar por cima,
nem cruzar por baixo,
nem sussurrar junto ao mar, às ondas
da Normandia que amo.
Não posso
disfarçar-me de árvore e receber a chuva,
dormir junto aos berros.
Não devo junto a um rio
cantar ou chorar de alegria.
Não posso
comer queijo silvestre
com as alfaces
que ali são como lábios. Não posso
em Saint Louis de la Isla
beber meu vinho branco,
nenhuma,
nenhuma
tarde mais
de minha vida.
Foram completamente claros
e inteiramente obscuros.
Expulsam-me. Está claro.
Por que me expulsam? Obscuro.
Assim, a polícia
tomou em suas mãos
a condecoração que em outro tempo
o conde de Dampierre me deixou na lapela,
olharam-na
como se fosse um alho sujo
ou um toco de cigarro com gosto de sabão.
Eles tinham
instruções
eminentemente superiores,
e assim foi, cavalheiros e senhoras,
como parti da França.
É natural,
não necessito
explicar-me.
Todos sabemos
que a Embaixada
do Far West,
com seus vaqueiros,
cospem nas lâmpadas de cristal em Versailles.
Que com tabaco na boca
Jim Cola Cola
urina as estátuas
de Fontainebleau, as cegas
estátuas de rainhas adormecidas.
Todos sabemos isso, porém,
não quero falar a respeito,
não é meu tema.
Se eu tivesse
vinte anos
e se me houvessem
arrancado
a França da cintura,
este seria um longo
lamento, um comprido pranto.
Eu teria escrito
a morte e as exéquias
da mais olorosa primavera.
Mas, agora,
com tantas cicatrizes
que ainda não conseguiram
matar meu coração,
com a alegria
sem despertar ainda entre meus braços,
com toda a vida adiante,
com a esperança,
com tudo o que vem
quando nós não seremos mais,
com a França que amanhã
despertará também,
porque nunca dormiu,
com todos os jasmins e as vinhas,
as ruas, os caminhos,
e as canções que amo,
e que ninguém muito menos
a polícia
poderão arrancar-me da alma,
posso dizer, senhores
e senhoras,
que amo à doce França,
de onde me expulsaram.
E que continuo
vivendo
como se ali vivesse,
com sua terra e seus heróis,
com seu vinho e seu povo,
e que não despertei oficialmente
daquela única noite
em que todo o aroma
de sua profundeza e sua doçura
subiu em meu sonho para despedir-me.
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