Tatiana Faia
Tatiana Faia, é uma escritora e poeta portuguesa que em 2019 recebeu o Prémio de Literatura PEN na categoria Poesia.
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o que eu sei da filha de agamémnon
para lá de tudo isto o teu entendimento
um campo de feno exposto no interior da lente
antes do golpe da luz
quando a precisão de um momento te invade
e se vira exposto sobre si próprio
como papel de prata na violência do vento
e altos edifícios de pedra selam as saídas
de ruas interiores por onde carros circulam
a baixa velocidade
o que eu me lembro não é
o que nenhum poeta da antiguidade
pudesse ter deixado escrito
em versos a que sopro nenhum
imprimiria o ritmo da fala
onde ela assomasse de carne e osso
não uma criatura literária
mas a urgência de um corpo livre do seu enredo
o que eu me lembro dela
é um dia de parada quando o suor
me colava a camisa ao corpo
e a segui por entre a multidão
para lá dos guardas e das linhas de gente
reunidas para ver soldados desfilar
o que me lembro
é entender que pode ser um erro gracioso
a conclusão mais lógica de um passo
e reparar que forma nenhuma
traria de volta o momento antes da manhã romper
quando o rosto encontra o seu duplo
na superfície vítrea de um lago
claro que nada disto teve nada
de uma quietude campestre
a limpidez de uma manhã mitológica
cortada pela seta de um deus em degredo
segui-a e perdi-a e tornei a encontrá-la ainda
em ruas paralelas onde os cafés ficam vazios
a meio da tarde por causa do estado de sítio da rotina
e há secretos motivos cultivados atrás
de portas que se fecham subitamente
mas não aprendi nada do mundo dela
nem poderia precisar a extensão do seu segredo
peão e estratega
o que ficou comigo muito tempo depois
foi essa longa caminhada de muitas centenas de metros
por ruas cheias de gente
o cabelo preso que lhe caía pelas costas
o que lhe ia chamar eu antes que soubesse o que fosse
pó, ouro, o corte de papel na memória de um fantasma
inevitável, real mesmo antes
da manhã se derramar com a luz
na impessoalidade de um quarto estranho
depois de uma noite de insónia
Oxford, 3 de Setembro de 2017
Leopardo e Abstracção, Fresca, 2020
um campo de feno exposto no interior da lente
antes do golpe da luz
quando a precisão de um momento te invade
e se vira exposto sobre si próprio
como papel de prata na violência do vento
e altos edifícios de pedra selam as saídas
de ruas interiores por onde carros circulam
a baixa velocidade
o que eu me lembro não é
o que nenhum poeta da antiguidade
pudesse ter deixado escrito
em versos a que sopro nenhum
imprimiria o ritmo da fala
onde ela assomasse de carne e osso
não uma criatura literária
mas a urgência de um corpo livre do seu enredo
o que eu me lembro dela
é um dia de parada quando o suor
me colava a camisa ao corpo
e a segui por entre a multidão
para lá dos guardas e das linhas de gente
reunidas para ver soldados desfilar
o que me lembro
é entender que pode ser um erro gracioso
a conclusão mais lógica de um passo
e reparar que forma nenhuma
traria de volta o momento antes da manhã romper
quando o rosto encontra o seu duplo
na superfície vítrea de um lago
claro que nada disto teve nada
de uma quietude campestre
a limpidez de uma manhã mitológica
cortada pela seta de um deus em degredo
segui-a e perdi-a e tornei a encontrá-la ainda
em ruas paralelas onde os cafés ficam vazios
a meio da tarde por causa do estado de sítio da rotina
e há secretos motivos cultivados atrás
de portas que se fecham subitamente
mas não aprendi nada do mundo dela
nem poderia precisar a extensão do seu segredo
peão e estratega
o que ficou comigo muito tempo depois
foi essa longa caminhada de muitas centenas de metros
por ruas cheias de gente
o cabelo preso que lhe caía pelas costas
o que lhe ia chamar eu antes que soubesse o que fosse
pó, ouro, o corte de papel na memória de um fantasma
inevitável, real mesmo antes
da manhã se derramar com a luz
na impessoalidade de um quarto estranho
depois de uma noite de insónia
Oxford, 3 de Setembro de 2017
Leopardo e Abstracção, Fresca, 2020
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