Herberto Helder
Herberto Helder de Oliveira foi um poeta português, considerado por alguns o 'maior poeta português da segunda metade do século XX' e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.
1930-11-23 Funchal
2015-03-23 Cascais
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Os Ritmos 11
O cadáver foi trazido para o rés-do-chão através dos corredores sufocados na penumbra.
Era a mãe agora irreconhecível.
Entrava, horizontal, nos braços e ombros dos homens.
Saía e entrava pelas portas, e atravessava os patamares, e recuava para o quintal.
A aragem que passava sobre os ramos das acácias bateu nos cabelos mortos e o sol desenhou as folhas das árvores no rosto morto.
Depois os homens conseguiram meter o caixão naquele quarto.
Ora o caixão estava sobre uma sábia montagem de caixotes soberbamente ocultos por um pano de veludo negro — rico e pesado.
A mãe tinha um vestido preto, do qual explodia o rosto extraordinariamente limpo.
A mãe não era bela.
Ou antes: era muito bela se, vista em certos momentos capitais, daí partisse para uma sua integridade e permanência futuras.
Porque a mãe era evidentemente bela e grande.
E não é difícil encontrar exemplos.
Ela estava junto da janela, e a mão esquerda acariciava o lóbulo da orelha esquerda.
A cabeça inclinada para o lado esquerdo, auxiliando a mão e a orelha — o gesto.
O vento batia nos cabelos.
Tudo vinha pela esquerda — a luz, o vento e o rumor do dia — enquanto o braço direito caía fora da cadeira, dando volume, peso e densidade ao lado direito.
Como uma réplica.
Ora a mãe era bela e tinha-se posto a crescer.
Crescera até demais, depois da ausência no seu quarto de doente e da viagem morta pelos corredores e escadas.
Enchia agora o quarto.
O cabelo docemente desarrumado fazia voar a cabeça.
Levantava voo subtilmente, com o cabelo desordenado.
Os braços indistintos e negros corriam pelo vestido abaixo.
As mãos eram demasiado brancas.
Um pouco gordas?
Muito bem.
Havia círios enormes nos quatro cantos do catafalco e flores brancas espalhadas à volta daquela mãe morta.
Era uma câmara ardente.
Exactamente a câmara ardente daquela mãe que apodreceria, começando devagar a cheirar mal.
Bem.
Eu andava por ali.
Experimentava olhar para a morte da mãe de todos os lados possíveis.
Primeiro, colocava-me junto aos pés, entre os dois círios cujas chamas se dobravam no vento que vinha da porta aberta.
Os pés da mãe avançavam contra o meu peito, por altura quase dos ombros.
Via aquele território negro que as chamas vergadas e ondulantes faziam palpitar.
Ao fundo desse território que ondulava, cheio de cristas e crateras sombrias, estavam as neves mortas do rosto, e depois os cabelos.
E então eu ia para um dos lados do caixão, e o corpo da mãe atravessava o quarto.
Corria, partindo da cabeça, terrivelmente morto.
E era engolido pela áspera luz que irrompia aos pés, onde a porta rasgava um precipício.
Mudava de posição, e a cabeça ficava tão perto de mim que poderia tocá-la com as minhas mãos de criança inábil.
A cara descia pela testa e passava pelos olhos que, debaixo das pálpebras, não se sabia para onde olhariam.
E o nariz ocultava a boca.
E tudo o mais desaparecia branca e abruptamente no seio negro.
Experimentava outros ângulos, de onde era um ombro que crescia, ou o peito, ou era a cabeça despenhando-se sobre mim, ou então era uma perna negra.
Às vezes as flores, os círios, às vezes os cabelos, ou as mãos dobradas, ou o rosto desconhecido, ou às vezes o rosto momentaneamente muito conhecido.
Que sorria e se deslocava, vivo.
O corpo de uma pessoa estranha, invadindo a casa.
Entravam e saíam pessoas, e eu andava por ali, apropriando-me da morte, talvez a fim de ficar com ela para sempre.
A sala esvaziava-se, e as chamas dos círios curvavam e endireitavam-se — e nenhum, nenhum ruído no meio das sombras móveis.
Mãe, disse eu, e nada mudou, e eu era o filho.
Odiava uma coisa indefinida que, num certo futuro, seria uma como que abstracta injustiça.
E que seria depois o desencontro das pessoas, e a permanência delas dentro do desencontro.
Agora, por mais vezes que murmurasse: mãe — nada mais acontecia, e o sol branco rolava pelo quintal, e havia o ruído subtil das folhas das acácias sob o vento, e a corrida fulminante das lagartixas.
O meu dia talvez estivesse assegurando pela tradição de todos os dias.
O dia lúdico, com o qual todo o meu ser comunicava, a presença da luz, das nuvens e do vento, e de todas as coisas indestrutíveis do mundo.
Então saí do quarto e avancei pelos corredores cheios de cotovelos e atravessei portas e salas.
Lá fora, o sol e as árvores, mas o tempo terrífico já começara, e eu não sabia.
O mar batia nas rochas, era o que eu ouvia, e havia no ar o cheiro à água salgada.
Ouvia o mar que sempre tinha ouvido, e aspirava os mesmos cheiros, e às vezes, no meio de tudo, chegavam-me vozes perdidas.
Pregões, conversas na rua, risos e o barulho de um motor.
Mas a maneira como via a luz e ouvia as vozes era uma última maneira.
As coisas, as imagens, os seres existiam no ar atravessado pelo vento e pela luz — e era tudo uma última maneira.
E começava a memória, intensa mas purificada.
Voltava sobre os meus próprios passos.
Fiquei parado um momento sob o vento e o sol, no meio da tradição dos meus dias.
Fixo na móvel atmosfera de rumores marítimos, barulhos de motores, vento e vozes e risos.
E já sabia tudo.
Era terrível.
Dirigi-me então para as mesmas portas e corredores.
A câmara ardente estava vazia.
E assim como que seco, comprimido pela súbita pressão de um novo saber, eu olhava para tudo, e compreendia.
Um ser desaparecera, deixando pegadas na terra viva.
Eu mesmo desaparecera.
O irrevogável corpo da mãe sentava-se e levantava-se das cadeiras, debruçava-se às janelas.
Enchia a casa com o seu movimento e a sua força silenciosa.
Tinha um olhar, uma voz, um sorriso ardente e uma inteligência.
O tempo tomara isso ao seu cuidado, daquele modo implacável com que trata essas coisas.
Ali continuaria ela a existência truncada, repetindo-se, acabando a meio, voltando ao princípio.
Mas tudo estava morto, e mais pesado, porque estava morto.
Quanto ao corpo, era uma casca rachada.
Levaram-no.
Atravessava agora a cidade de linhas severamente puras, por entre plátanos e casas brancas.
Os automóveis tocavam os claxons, as crianças gritavam de incompreensível alegria, as montras expunham os belos objectos quotidianos e os cães passavam de um lado para o outro das ruas, rápidos, perseguindo a confusa teoria dos cheiros.
O céu era o mais admirável céu de havia muitos anos.
É possível que alguém cantasse dentro das casas.
E isto era extraordinário.
Sim, sim, cantavam.
Quanto ao corpo, levaram-no.
E o catafalco transformara-se num amontoado de caixotes, cujo primitivo equilíbrio se perdera.
A sua repentina inutilidade escapava a todos os estilos humanos.
Havia outra lei.
Era um espaço de terrível beleza.
Um dos círios caíra no chão, e havia flores esmagadas, e os castiçais tinham sido encostados à parede.
Cheirava a cera queimada.
E existia outro cheiro, subtil, ou somente adivinhado.
Talvez não existisse, talvez não.
Mas infiltrava-se como uma delgadíssima agulha através da substância dos outros cheiros.
Um cheiro a cadáver.
As vidraças das janelas eram de um verde de água profunda.
A luz do dia tornava-se verde, podre.
As minhas mãos, atacadas pela luz fria, pareciam corrompidas por uma doença desconhecida e ignóbil.
Eu estava parado no meio dessa luz, cheio de terror.
E era tempo de subir ao andar de cima.
Porque este quarto deveria afundar-se pela terra dentro.
O primeiro andar desenvolvia-se a partir de um grande quarto assente nos rochedos, sobre o mar.
A luz e o cheiro das águas e o vento batiam nesse quarto, e davam-lhe a força de iniciar a casa.
O andar desenvolvia-se em quartos poderosos cuja vitalidade mal permitia a existência dos corredores.
Os corredores moviam-se subtilmente por entre as possantes massas dos quartos, e eram escuros, e encolhiam-se ao pé das portas grossas.
Avançavam até ao quarto dos livros, branco e simples.
Eu andava pela casa, e havia os móveis, roupas, objectos e cheiros.
E outra coisa indefinível: a energia, ou o espírito, ou o génio da casa.
Um dínamo subjacente.
As cortinas estremeciam.
Minhas irmãs riam no meio das cadeiras, nas escadas, por toda a parte.
A mãe lia, mexia nos objectos.
Tudo estava ligado.
Minhas primas encostavam-se aos móveis, e também riam, com as grandes e pesadas cabeleiras tombadas para trás.
A luz acumulava-se nas suas gargantas, e era dolorosamente belo.
Que é que estão a fazer?
Nós, nós? que fazemos? ah, rimos — ora aí está: rimos.
Raparigas, raparigas.
Sim, rimos.
E riam.
Eu compreendia tudo, e despira a roupa para meter-me nu na terra mole, e comera terra, e andara à roda até cair para o lado.
As pessoas calaram-se.
Primeiro foram tirados os reposteiros e as cortinas, depois desapareceram alguns móveis.
Eu passava de um quarto para outro.
O quarto da frente ficou aberto durante muitos dias.
O sol queimava as paredes.
Espalmei a mão contra a parede.
Era uma mão alheia, cruelmente viva.
Tinha uma forma ardente e parecia feita de madeira nova, embebida profundamente de seiva.
Afastei-a da parede, e as eminências da palma e os dedos haviam ficado bem marcados, e cercavam o pó intacto que passava a representar a concha da mão.
Resposta fantástica de uma pequena mão viva.
Uma coisa quente destinada a um qualquer futuro.
Os quartos ficavam cada vez mais vazios.
Os meus pés desenhavam pistas múltiplas que se corrigiam sobre incompletas pistas anteriores.
Destruíam-se, e fechavam-se em círculos.
A luz vinha pelas janelas abertas, e os quartos eram dolorosamente grandes, e eu compreendia tudo.
(Ouço o meu nome como se viesse de uma região sombria, e através dele escorresse alguma coisa fugidia e densa — mercúrio.
Abro os olhos e vejo a vidraça fria e viva de uma janela sem cortinas, a parede erguida de um quarto, uma velha mala aberta no chão.
Estou numa cidade qualquer, num quarto de hotel.
Ninguém me chamou, não há ninguém.
Que vozes são estas, vozes inexistentes que me chamam?
Que mundo perdido, mas insistente, fabrica vozes para me surpreender, em quartos de pensões, no meio de uma outra busca, outra viagem?
Eu sou um movimento.
Surjo do abismo.
Inclino para o guarda-fatos a minha cara, o espelho põe-me diante de um novo objecto de ciência.
É uma cara espantosa, de louco, uma cabeça primitiva de pássaro inclinado para o seu próprio canto, o seu silêncio.
Uma cabeça queimada.)
Era a mãe agora irreconhecível.
Entrava, horizontal, nos braços e ombros dos homens.
Saía e entrava pelas portas, e atravessava os patamares, e recuava para o quintal.
A aragem que passava sobre os ramos das acácias bateu nos cabelos mortos e o sol desenhou as folhas das árvores no rosto morto.
Depois os homens conseguiram meter o caixão naquele quarto.
Ora o caixão estava sobre uma sábia montagem de caixotes soberbamente ocultos por um pano de veludo negro — rico e pesado.
A mãe tinha um vestido preto, do qual explodia o rosto extraordinariamente limpo.
A mãe não era bela.
Ou antes: era muito bela se, vista em certos momentos capitais, daí partisse para uma sua integridade e permanência futuras.
Porque a mãe era evidentemente bela e grande.
E não é difícil encontrar exemplos.
Ela estava junto da janela, e a mão esquerda acariciava o lóbulo da orelha esquerda.
A cabeça inclinada para o lado esquerdo, auxiliando a mão e a orelha — o gesto.
O vento batia nos cabelos.
Tudo vinha pela esquerda — a luz, o vento e o rumor do dia — enquanto o braço direito caía fora da cadeira, dando volume, peso e densidade ao lado direito.
Como uma réplica.
Ora a mãe era bela e tinha-se posto a crescer.
Crescera até demais, depois da ausência no seu quarto de doente e da viagem morta pelos corredores e escadas.
Enchia agora o quarto.
O cabelo docemente desarrumado fazia voar a cabeça.
Levantava voo subtilmente, com o cabelo desordenado.
Os braços indistintos e negros corriam pelo vestido abaixo.
As mãos eram demasiado brancas.
Um pouco gordas?
Muito bem.
Havia círios enormes nos quatro cantos do catafalco e flores brancas espalhadas à volta daquela mãe morta.
Era uma câmara ardente.
Exactamente a câmara ardente daquela mãe que apodreceria, começando devagar a cheirar mal.
Bem.
Eu andava por ali.
Experimentava olhar para a morte da mãe de todos os lados possíveis.
Primeiro, colocava-me junto aos pés, entre os dois círios cujas chamas se dobravam no vento que vinha da porta aberta.
Os pés da mãe avançavam contra o meu peito, por altura quase dos ombros.
Via aquele território negro que as chamas vergadas e ondulantes faziam palpitar.
Ao fundo desse território que ondulava, cheio de cristas e crateras sombrias, estavam as neves mortas do rosto, e depois os cabelos.
E então eu ia para um dos lados do caixão, e o corpo da mãe atravessava o quarto.
Corria, partindo da cabeça, terrivelmente morto.
E era engolido pela áspera luz que irrompia aos pés, onde a porta rasgava um precipício.
Mudava de posição, e a cabeça ficava tão perto de mim que poderia tocá-la com as minhas mãos de criança inábil.
A cara descia pela testa e passava pelos olhos que, debaixo das pálpebras, não se sabia para onde olhariam.
E o nariz ocultava a boca.
E tudo o mais desaparecia branca e abruptamente no seio negro.
Experimentava outros ângulos, de onde era um ombro que crescia, ou o peito, ou era a cabeça despenhando-se sobre mim, ou então era uma perna negra.
Às vezes as flores, os círios, às vezes os cabelos, ou as mãos dobradas, ou o rosto desconhecido, ou às vezes o rosto momentaneamente muito conhecido.
Que sorria e se deslocava, vivo.
O corpo de uma pessoa estranha, invadindo a casa.
Entravam e saíam pessoas, e eu andava por ali, apropriando-me da morte, talvez a fim de ficar com ela para sempre.
A sala esvaziava-se, e as chamas dos círios curvavam e endireitavam-se — e nenhum, nenhum ruído no meio das sombras móveis.
Mãe, disse eu, e nada mudou, e eu era o filho.
Odiava uma coisa indefinida que, num certo futuro, seria uma como que abstracta injustiça.
E que seria depois o desencontro das pessoas, e a permanência delas dentro do desencontro.
Agora, por mais vezes que murmurasse: mãe — nada mais acontecia, e o sol branco rolava pelo quintal, e havia o ruído subtil das folhas das acácias sob o vento, e a corrida fulminante das lagartixas.
O meu dia talvez estivesse assegurando pela tradição de todos os dias.
O dia lúdico, com o qual todo o meu ser comunicava, a presença da luz, das nuvens e do vento, e de todas as coisas indestrutíveis do mundo.
Então saí do quarto e avancei pelos corredores cheios de cotovelos e atravessei portas e salas.
Lá fora, o sol e as árvores, mas o tempo terrífico já começara, e eu não sabia.
O mar batia nas rochas, era o que eu ouvia, e havia no ar o cheiro à água salgada.
Ouvia o mar que sempre tinha ouvido, e aspirava os mesmos cheiros, e às vezes, no meio de tudo, chegavam-me vozes perdidas.
Pregões, conversas na rua, risos e o barulho de um motor.
Mas a maneira como via a luz e ouvia as vozes era uma última maneira.
As coisas, as imagens, os seres existiam no ar atravessado pelo vento e pela luz — e era tudo uma última maneira.
E começava a memória, intensa mas purificada.
Voltava sobre os meus próprios passos.
Fiquei parado um momento sob o vento e o sol, no meio da tradição dos meus dias.
Fixo na móvel atmosfera de rumores marítimos, barulhos de motores, vento e vozes e risos.
E já sabia tudo.
Era terrível.
Dirigi-me então para as mesmas portas e corredores.
A câmara ardente estava vazia.
E assim como que seco, comprimido pela súbita pressão de um novo saber, eu olhava para tudo, e compreendia.
Um ser desaparecera, deixando pegadas na terra viva.
Eu mesmo desaparecera.
O irrevogável corpo da mãe sentava-se e levantava-se das cadeiras, debruçava-se às janelas.
Enchia a casa com o seu movimento e a sua força silenciosa.
Tinha um olhar, uma voz, um sorriso ardente e uma inteligência.
O tempo tomara isso ao seu cuidado, daquele modo implacável com que trata essas coisas.
Ali continuaria ela a existência truncada, repetindo-se, acabando a meio, voltando ao princípio.
Mas tudo estava morto, e mais pesado, porque estava morto.
Quanto ao corpo, era uma casca rachada.
Levaram-no.
Atravessava agora a cidade de linhas severamente puras, por entre plátanos e casas brancas.
Os automóveis tocavam os claxons, as crianças gritavam de incompreensível alegria, as montras expunham os belos objectos quotidianos e os cães passavam de um lado para o outro das ruas, rápidos, perseguindo a confusa teoria dos cheiros.
O céu era o mais admirável céu de havia muitos anos.
É possível que alguém cantasse dentro das casas.
E isto era extraordinário.
Sim, sim, cantavam.
Quanto ao corpo, levaram-no.
E o catafalco transformara-se num amontoado de caixotes, cujo primitivo equilíbrio se perdera.
A sua repentina inutilidade escapava a todos os estilos humanos.
Havia outra lei.
Era um espaço de terrível beleza.
Um dos círios caíra no chão, e havia flores esmagadas, e os castiçais tinham sido encostados à parede.
Cheirava a cera queimada.
E existia outro cheiro, subtil, ou somente adivinhado.
Talvez não existisse, talvez não.
Mas infiltrava-se como uma delgadíssima agulha através da substância dos outros cheiros.
Um cheiro a cadáver.
As vidraças das janelas eram de um verde de água profunda.
A luz do dia tornava-se verde, podre.
As minhas mãos, atacadas pela luz fria, pareciam corrompidas por uma doença desconhecida e ignóbil.
Eu estava parado no meio dessa luz, cheio de terror.
E era tempo de subir ao andar de cima.
Porque este quarto deveria afundar-se pela terra dentro.
O primeiro andar desenvolvia-se a partir de um grande quarto assente nos rochedos, sobre o mar.
A luz e o cheiro das águas e o vento batiam nesse quarto, e davam-lhe a força de iniciar a casa.
O andar desenvolvia-se em quartos poderosos cuja vitalidade mal permitia a existência dos corredores.
Os corredores moviam-se subtilmente por entre as possantes massas dos quartos, e eram escuros, e encolhiam-se ao pé das portas grossas.
Avançavam até ao quarto dos livros, branco e simples.
Eu andava pela casa, e havia os móveis, roupas, objectos e cheiros.
E outra coisa indefinível: a energia, ou o espírito, ou o génio da casa.
Um dínamo subjacente.
As cortinas estremeciam.
Minhas irmãs riam no meio das cadeiras, nas escadas, por toda a parte.
A mãe lia, mexia nos objectos.
Tudo estava ligado.
Minhas primas encostavam-se aos móveis, e também riam, com as grandes e pesadas cabeleiras tombadas para trás.
A luz acumulava-se nas suas gargantas, e era dolorosamente belo.
Que é que estão a fazer?
Nós, nós? que fazemos? ah, rimos — ora aí está: rimos.
Raparigas, raparigas.
Sim, rimos.
E riam.
Eu compreendia tudo, e despira a roupa para meter-me nu na terra mole, e comera terra, e andara à roda até cair para o lado.
As pessoas calaram-se.
Primeiro foram tirados os reposteiros e as cortinas, depois desapareceram alguns móveis.
Eu passava de um quarto para outro.
O quarto da frente ficou aberto durante muitos dias.
O sol queimava as paredes.
Espalmei a mão contra a parede.
Era uma mão alheia, cruelmente viva.
Tinha uma forma ardente e parecia feita de madeira nova, embebida profundamente de seiva.
Afastei-a da parede, e as eminências da palma e os dedos haviam ficado bem marcados, e cercavam o pó intacto que passava a representar a concha da mão.
Resposta fantástica de uma pequena mão viva.
Uma coisa quente destinada a um qualquer futuro.
Os quartos ficavam cada vez mais vazios.
Os meus pés desenhavam pistas múltiplas que se corrigiam sobre incompletas pistas anteriores.
Destruíam-se, e fechavam-se em círculos.
A luz vinha pelas janelas abertas, e os quartos eram dolorosamente grandes, e eu compreendia tudo.
(Ouço o meu nome como se viesse de uma região sombria, e através dele escorresse alguma coisa fugidia e densa — mercúrio.
Abro os olhos e vejo a vidraça fria e viva de uma janela sem cortinas, a parede erguida de um quarto, uma velha mala aberta no chão.
Estou numa cidade qualquer, num quarto de hotel.
Ninguém me chamou, não há ninguém.
Que vozes são estas, vozes inexistentes que me chamam?
Que mundo perdido, mas insistente, fabrica vozes para me surpreender, em quartos de pensões, no meio de uma outra busca, outra viagem?
Eu sou um movimento.
Surjo do abismo.
Inclino para o guarda-fatos a minha cara, o espelho põe-me diante de um novo objecto de ciência.
É uma cara espantosa, de louco, uma cabeça primitiva de pássaro inclinado para o seu próprio canto, o seu silêncio.
Uma cabeça queimada.)
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