Alexei Bueno

Alexei Bueno

Alexei Bueno é um poeta, editor e ensaísta brasileiro. Colabora em diversos órgãos de imprensa no Brasil e no exterior, é membro do PEN Clube do Brasil, e foi, de 1999 a 2002, Diretor do Instituto ...

1963-04-26 Rio de Janeiro
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Prémios e Movimentos

Jabuti 2004

Alguns Poemas

OrÆ MaritimÆ

Este é o tempo das barcaças.
O mar sempre resta! O mar
É a massa de modelar
Do vento fazer desgraças.

Ah! que profunda alegria!
Vontade de comer ervas!
Pastar! Nova fantasia!
Erguer as salas das servas!

Sim! Pastar! Grama molhada
Onde brilha verde o sol!
Cuspir ostras de um farol
Numa barba almirantada!

Adeus! Irei pelos campos
Mordendo a grama com ardor
No meio dos pirilampos
Qual Nabucodonosor.

Destroçarei com meus dentes
As ovelhas desgarradas
E os pastores nas estradas
Me caçarão descontentes.

Mas sem me achar. Pois ao mar
já terei saltado então
Soltando gritos pelo ar
Como um pássaro poltrão.

Até que chegue a um navio
E urrando cheio de rum
Mate a todos, um por um,
Até deixá-lo vazio.

Então me dirijo a um porto,
Contrato a ralé da escória
E em capitão meio torto
Me sagro cheio de glória!

Pelos mares e oceanos
Baleia Bêbada é o barco!
O terror prepara o charco
Do pântano dos meus planos!

Mil cascos são abordados!
Embebedam-se os bebês!
Os varões viram varados!
E as damas lutam com seis!

Junto o ouro, o ouro, o ouro!
Os homens andam na prancha
E a minha pele se mancha
Das cores do meu tesouro!

O sol é dourado! O sol
É uma moeda afinal
Que ofusca, e que no arrebol
Tomba em seu cofre de sal!

A luz! A luz é a vida!
Mas a sinistra caterva
Só quer beber, e me enerva
Dançando entenebrecida.

Pulando do alto dos mastros
Como macacos no azul
E vomitando nos astros
Ondas de prata e paul.

Bebem, bebem noite e dia,
Vagalhões de vinho e gim
E só lhes surge no fim
Uma nenhuma alegria.

Enquanto a escutar o baque
De cada grogue que rola
Fazendo as contas do saque
Minha alma se enche de cola.

Imóvel, noites a fio,
Escriturando o tesouro
Enquanto como um besouro
Voa zunindo o navio.

Mas não! Não foi para isto
Que fugi de toda a terra!
Estranha estátua de Cristo
Largada nos chãos da guerra!

Não! Surge o sol. É a aurora!
Com um grito, armado de um pau,
Vou surrando toda a nau
Jogando os homens pra fora!

Pela borda! Urra! É a alegria!
Todos caem! Lá na água
Os tubarões neste dia
Não sentirão qualquer mágoa!

Jogo o resto deles! Lanço
Um lampião no paiol!
Tudo explode! Rumo ao sol
Como um foguete eu avanço!

Vou voando, enquanto chove
Minha gorda arca roubada
Sobre o mar que se comove,
Como uma chuva dourada!

Subo. Subo. O sol se amplia.
Desmaio. Acordo caindo
No continente, e ele rindo
Abre a bocarra sadia.

Vou tombar bem numa igreja!
Os fiéis, sem compreender,
Rezando, temem que eu seja
Um anjo, e choram, por crer!

Surro todos eles. Corro
Para o campo. Atrás de mim
Ferozes, com o seu mastim,
Vêm já os pastores de gorro.

Depois os donos do barco,
E os parentes dos saqueados,
E os outros, de amor bem parco,
Surgem por todos os lados!

Querem todos me pegar!
Vêm correndo! Chegam perto!
Mas como um monstro desperto
Eu paro e grito a babar!

Vôo em cima deles! Chuto
Suas cabeças sem nada!
Quebro, espanco, e como um bruto
Fujo da terra empestada!

Fujo, idiota e feliz,
Para o sol, o sol, o sol,
Que ri como um grande atol
De dentes de ouro e de giz!

Fujo, correndo, a alma fora,
Sorrindo, o eleito do dia,
Até chegar aonde mora
A eterna e interna alegria!

Em busca de algo, o futuro,
Que ri porque vai viver
E já boceja a se erguer
Enquanto me olha do escuro

Chegando lá, e escarrando
No que houve antes, e assim
Gargalhando, e vos rasgando,
Vida e versos. Logo: Fim!

O Bordado Cruel

Quando era noite, atrás daquela porta,
junto a uma vela duas velhas riam
Matando aos poucos uma aranha torta.

E a alegria que elas dividiam
Poucos tiveram já no mundo um dia,
Mas os que a achavam sempre a bendiziam.

Cheia de medo, a criatura fria
Dançava horrível rente de uma chama
Que lentamente o corpo lhe roía,

E as velhas rindo a observar da cama
Iam falando sobre de que modo
Com dor mais lenta um corpo vil se inflama.

Espécie estranha de um vivente lodo,
Sendo corcunda e só com sete pernas
A aranha uivava por seu corpo todo

Que se expandia em inchações externas
Causando às velhas, com o vermelho horrendo
Do seu ardor, as sensações mais ternas...

Emocionadas, com as mãos tremendo,
Vieram então com um bando de alfinetes
Que em cada pata foram se prendendo,

E a aranha presa de mil cacoetes
Foi só os espinhos de uma prata ardente
Que a recobria em infernais coletes.

E nesta arte foram indo em frente,
Depois agulhas, e um perfume ardido,
E ao fim de tudo uma tesoura ingente,

Até que o fogo e o animal vencido
Murcharam juntos sobre a mesa irada
Em mil pedaços de um negror transido,

E ambas as velhas, conhecendo o nada,
Com face imensa devoraram tudo
Que lhes restava da fatal jornada.

Enquanto, a olhá-las, um retrato mudo
De seu marido ia chorando as dores
Que o recobriam no ancestral escudo,

E todo o chão ia se abrindo em flores
E uma criança, que ninguém notara,
Pela janela olhava sem temores

E ia crescendo, e de uma forma rara,
Enquanto as velhas, enxugando as portas,
Varriam tétricas, na noite clara,

Todo o amargor das profecias mortas!

Transmutação

Transmutação

Nascemos carne. E a cada dia

Nos vamos transformando em sonho.

Há sempre um patamar tristonho

Na escada em que antes não havia.

Há sempre um quarto em que vivemos

E nunca vimos. Sempre há um morto

Que bate à porta. Há sempre um porto

Que jamais houve e de onde viemos.

Há uma manhã cinza na feira

Que não se acaba há muitos anos.

Há uma mulher, nua entre panos,

Que não é nossa a vida inteira.

O tempo espera, inalterado

Como um licor, que nós subamos

Por ele abaixo, nós que vamos

Descendo-o acima em passo ousado.

Atrás há a aurora. À frente o nada.

No meio a confusão das luas.

Ah! quem voltasse às mesmas ruas

Em senso inverso, até a entrada.

Quem desse as costas à saída

Certa e voraz, e, dessa sorte,

Fosse afastando-se da morte

Até a primeira hora da vida

E seu mistério, e se encarnasse

Nos seus eus idos, e fugisse

Por si acima, até que ouvisse

O choro antigo, e ainda o passasse.

Nascemos carne, e ao sonho vamos.

Somos o fio que desfaz

Toda a tapeçaria, mas

Quem é que o puxa, nem sonhamos.

Vamos fazendo-nos de ar

De crianças rijas que já fomos,

Vamos como explodindo em gomos

De ser, um fruto a se espalhar.

Nossos amigos são de vento

Cada vez mais. As nossas casas

Grãos que o sol doura. Soam asas

No nosso cofre mais sedento.

Para isso apenas nos gerastes,

Para ser sonho, mães de sonho.

Há sempre um pássaro medonho

Nos nomeando entre umas hastes.

Há sempre um baile de sumidos

Na íntima praça inexistente.

Há um branco sol sempre presente

Na noite em que vamos perdidos.

Há um rosto cruel que nos exorta.

E escadas. E a manhã na feira

Que vai durando a vida inteira.

Há o patamar. E um beijo. E a porta.

Ode IX

Só superando encontramos alguma alegria,
Escravos dialéticos de um delírio de opostos,
Só esmagando, só conquistando, nunca por nós mesmos repletos,
Só penetrando nos muros. E quantas cidades tomadas,
Mesmo portão gargalhando e estirando uma língua de fogo,
Gritam vermelhas e ardem nas nossa íris exaustas.

Só pisando subimos,
Só derrotando vencemos,
Só conformando o outro a nós o amor nos alcança,
E tudo isso com sermos, seguramente sermos o outro
Até que nada nos reste de escapatória ou abrigo.

Não somos, não seremos nunca
Como Dionisos, ébrio conquistando a Índia
Entre tambores e tirsos, aclamado das ninfas, dos sátiros,
Um ramo de vinha é o seu chicote, um nariz vermelho a sua espada,
E os conquistados o aplaudem e beijam e vêm engrossar o triunfo
Que Pã conduz na vanguarda, tocando na flauta.

...Mas onde estará ele agora, em que escarpa, em que umbrosa
Solidão de enluarados galhos, rirá ainda o pai da alegria?
Nenhum devoto liba em suas aras, os ecos somente
Veneram-no ainda. De que rirá, que verá que nós nunca veremos,
O desterrado senhor de um plácido pacto entre os homens,
Enquanto nós por aqui, às seis horas da tarde,
Em meio às latas de lixo, descemos em bando às entranhas da terra?

Fulminante é qualquer nossa glória, pisando os caídos,
Que outra alegria além desta e da arte, da prece e do amor nos foi dada?

( — Ouçam, nenhum navio aparecerá.
Que ficará de nós? E no entanto matamos,
Sem pena, sem pranto, por sermos por último a festa dos peixes.)

Pois vejam como ele caminha,
Vejam como ele avança,
O filho de Filipe, o descendente de Hércules, deiforme e invicto,
Vejam como ele marcha
Sobre Darios vencidos e humilhadíssimas púrpuras,
E abraça as muralhas, e salta os desertos, e aplaina as montanhas,
Novo Aquiles sem flecha de Páris que o acerte, humanismo deus
Musculoso e potente em beleza triunfante.

Se nos fosse dado ser isso,
Um Alexandre cada um, varrendo a Terra,
Plena nos seria a vida. Mas a bonança é a nossa inimiga,
A calmaria, não a tempestade, é que nos espera ao varar o oceano,
Nos desfiladeiros minúsculos, com o único perigo do nada,
é que nós marcharemos,
Ainda que borbulhe em nós o canto do deus, e Amor Vencedor,
Durante ou após nosso olhar, pisoteie a disputa dos vermes.

( — E mesmo que venha o navio
Que seremos além de uma sombra na história dos astros?)

E ele continua
Até a Bactriana, a Índia novamente
Sem tirsos, sem vinha, dançando despido, tomado
Da ígnea plenitude de um deus,
Como nós nunca fomos, até que um mosquito,
Invulnerável, divino, o aferroe e destrua
na corrupta cidade de inúmeras portas.

(O esquecimento é a nossa lepra, e assim, no dia final
Um dos quinze falou, um navio passara sem vê-los:
— Gravemos numa tábua nossos nomes, tudo o que sofremos,
E a preguemos no mastro. Assim talvez os homens conheçam
O que nós passamos, nós, os da Medusa. —
Todos os conheceram. Mas um pintor tosquiado,
Unicamente, o soube.)

Não, não é esta a vitória,
Antes com Roxane na beira do rio
Qual Dionisos sábio consolando Ariadne
Na vermelha Naxos.

Não é essa a vitória. Não escutes, bêbado
Com a miragem cósmica, o conselho de Krishna
Ao indeciso Arjuna,
Pois se tudo é guerra,
E o tempo a guerra é infindável, sejamos o vento
Que sussurra entre as armas, sejamos a terra
Que os sequiosos exércitos sonham e que é de ninguém,
E o silêncio imóvel
Entre dois estampidos, que a ambos devora!

Sejamos
No fragor de estandartes, a ave que os roça,
Na orgia do fogo,
A chuva infantil que inesperada desce,
No borbulhar das almas o sono viscoso
Dos caracóis no lodo,
No estampado em pânico das pegadas fugindo
Do chão que as convida
A relva que o cobre.

Pois nosso é o poder e a glória, e do que lacerarmos
No nosso corpo, o que existe, cairá nosso sangue na terra.

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