Jacques Brel

Jacques Romain Georges Brel foi um autor de canções, compositor e cantor belga francófono. Esteve ainda ligado ao cinema de língua francesa. Tornou-se internacionalmente conhecido pela música Ne me quitte pas, interpretada e composta por ele.

1929-04-08 Schaerbeek
1978-10-09 Bobigny, France
1912
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Alguns Poemas

O último jantar

Em meu último jantar
Quero ver meus irmãos
Meus cachorros e gatos
E a beira do mar
No meu último jantar
Quero ver meus vizinhos
E os chineses vindo
Como se fossem primos
Também quero tomar
Da missa o vinho
Esse vinho divino
Que eu bebia em Arbois
E quero devorar
Depois da batina
Um frango faisão
Vindo de Perigord
E quero ser levado
Para o alto da colina
Ver as árvores que dormem
De braços cruzados
Depois quero ainda
Jogar pedras pra cima
E gritar Deus está morto
Pela última vez
No meu último jantar
Com meu burrinho quero estar
Com os frangos e gansos
Mulheres e vacas
No meu último jantar
Quero ver as meninas
Das quais fui o mestre
Ou que foram amantes
E quando de barriga cheia
Pronto para o enterro
Vou quebrar meu copo
Pedindo silêncio
Vou cantar aos brados
À morte que vem
Os amores que de tão devassos
Chegam a amedrontar
E quero ser levado
Para o alto da colina
Ver o sol que caminha
A se pôr lentamente
E ainda de pé
Vou insultar os burgueses
Sem remorso e sem medo
Pela última vez.
Após meu último jantar
Quero que a gente vá
Satisfeito e farto
Para algum outro lugar
Após meu último jantar
Quero me sentar
A sós como um rei
Recebendo as vestais
Em meu cachimbo vou queimar
Lembranças da infância
Sonhos inacabados
Restos de esperança
E vou guardar
Para vestir a alma
A ideia de roseira
E um nome de mulher
Depois vou olhar
Para o alto da colina
Que dança que pressente
Que acaba por afundar
E no cheiro das flores
Que em breve sumirá
Sei o medo que terei
Pela última vez
(tradução de Marília Garcia)
:
Le dernier repas
A mon dernier repas
Je veux voir mes frères
Et mes chiens et mes chats
Et le bord de la mer
A mon dernier repas
Je veux voir mes voisins
Et puis quelques Chinois
En guise de cousins
Et je veux qu'on y boive
En plus du vin de messe
De ce vin si joli
Qu'on buvait en Arbois
Je veux qu'on y dévore
Après quelques soutanes
Une poule faisane
Venue du Périgord
Puis je veux qu'on m'emmène
En haut de ma colline
Voir les arbres dormir
En refermant leurs bras
Et puis je veux encore
Lancer des pierres au ciel
En criant Dieu est mort
Une dernière fois
A mon dernier repas
Je veux voir mon âne
Mes poules et mes oies
Mes vaches et mes femmes
A mon dernier repas
Je veux voir ces drôlesses
Dont je fus maître et roi
Ou qui furent mes maîtresses
Quand j'aurai dans la panse
De quoi noyer la terre
Je briserai mon verre
Pour faire le silence
Et chanterai à tue-tête
A la mort qui s'avance
Les paillardes romances
Qui font peur aux nonnettes
Puis je veux qu'on m'emmène
En haut de ma colline
Voir le soir qui chemine
Lentement vers la plaine
Et là debout encore
J'insulterai les bourgeois
Sans crainte et sans remords
Une dernière fois
Après mon dernier repas
Je veux que l'on s'en aille
Qu'on finisse ripaille
Ailleurs que sous mon toit
Après mon dernier repas
Je veux que l'on m'installe
Assis seul comme un roi
Accueillant ses vestales
Dans ma pipe je brûlerai
Mes souvenirs d'enfance
Mes rêves inachevés
Mes restes d'espérance
Et je ne garderai
Pour habiller mon âme
Que l'idée d'un rosier
Et qu'un prénom de femme
Puis je regarderai
Le haut de ma colline
Qui danse qui se devine
Qui finit par sombrer
Et dans l'odeur des fleurs
Qui bientôt s'éteindra
Je sais que j'aurai peur
Une dernière fois.
.
.
.

Não vá embora

Não vá embora
A gente apaga tudo
Tudo que passou
Pode se apagar
Apagar o tempo
O mal entendido
E o tempo perdido
E agora
Apagar as horas
Que matam
Numa salva de porquês
A felicidade
Não vá embora
Eu vou te dar
Uma chuva de pérolas
Vinda de países
Onde não há chuva
Vou cavar a terra
Até depois da morte
Para seu corpo cobrir
Com luz e com ouro
Vou criar um reino
Onde o amor será rei
Onde o amor será lei
E você a rainha
Não vá embora
Não vá embora
Eu vou criar para te dar
Palavras sem sentido
Que você compreenderá
E vou te contar
Daqueles amantes ali
Que duas vezes viram
Seus corações incendiar
E vou te contar
A história de um rei
Morto por não ter
Podido te encontrar
Não vá embora
Quantas vezes um vulcão já velho
De onde mais nada podia sair
Se reacendeu
Há também terras gastas
Que dão mais trigo
Do que na colheita
E quando a tarde cai
Para que o céu vire fogo
Vermelho e negro
Nunca se juntam
Não vá embora
Eu não vou mais chorar
Eu não vou mais falar
Vou ficar parado vendo
Você dançar ali
E sorrir
E vou te ouvir
Cantar e depois rir
Deixa que eu me torne
A sombra da sua sombra
A sombra da sua mão
A sombra do seu cão
(tradução de Marília Garcia)
:
Ne me quitte pas
Jacques Brel
Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s’oublier
Qui s’enfuit déjà
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le cœur du bonheur
Ne me quitte pas
Moi je t’offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu’après ma mort
Pour couvrir ton corps
D’or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l’amour sera roi
Où l’amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je t’inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants-là
Qui ont vu deux fois
Leurs cœurs s’embraser
Je te raconterai
L’histoire de ce roi
Mort de n’avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas
On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l’ancien volcan
Qu’on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu’un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu’un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s’épousent-ils pas
Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je n’vais plus pleurer
Je n’vais plus parler
Je me cacherai là
A te regarder
Danser et sourire
Et à t’écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L’ombre de ton ombre
L’ombre de ta main
L’ombre de ton chien.
Jacques Brel foi um poeta vocal e cantor belga, nascido a 8 de abril de 1929 em Schaerbeek, nos arredores de Bruxelas. Viveu no entanto a maior parte de sua vida em Paris. Umperformer vigoroso e autor de belos textos, dos quais muitos sustentam-se em sua textualidade e funcionam tanto na página como na voz, Jacques Brel é um dos trovadores modernos mais influentes da língua francesa. Suas canções foram traduzidas e gravadas por vários cantores na velha tradição occitana medieval dosjoglars, os intérpretes dos poemas alheios. Entre estes, podemos mencionar David Bowie, John Denver, Marc Almond, Ray Charles, Nina Simone, Frank Sinatra e Kurt Cobain. O poeta-cantor morreu em Paris, de câncer pulmonar, em 1978.
 
Em seu importantíssimo livroIntroduction à la poésie orale (1983), o estudioso suíço Paul Zumthor (1915 – 1995) recorre frequentemente a Jacques Brel ao tratar da sobrevivência da poesia oral e cantada no mundo contemporâneo ocidental, tentando ouvir além da narrativa por vezes parcial dos historiadores da poesia escrita, que muitas vezes declaram a poesia oral e a poesia cantada "mortas" ou "extintas", mesmo que sob o viés da declaração de que a poesia e a música teriam se separado definitivamente.
 
Talvez pudéssemos dizer que sobrevive hoje também uma hierarquia marcada por preconceito na avaliação entre o que na poesia medieval formava otrobar leu, otrobar ric e otrobar clus. Mas o interessante é que, no Brasil, o que geralmente desmascara a hierarquia é o fato de que se considera um poema que funcionaapenas na voz inferior a um poema que funcionaapenas na página. Nossa pergunta seria: levando em consideração toda a tradição poética ocidental, lembrando-nos que Safo de Lesbos era uma cantora, assim como Arnaut Daniel, não seria saudável crer que o poema que funcionaapenas na voz e o poema que funcionaapenas na página têm omesmo valor estético, sendo portanto desejável como modelo superior aquele texto que atinge o grau máximo de eficiência ao funcionartanto na página como na voz? O melhor exemplo segue sendo, talvez, a sextina de Arnaut Daniel, que não nos cansamos de lembrar que é umaletra-de-música. E não podemos nos esquecer da definição original de poesia lírica:texto composto para ser cantado. Tudo isso vem aqui dito para justificar a tantos literatos a nossa inclusão entusiasmada de poetas como Jacques Brel em uma revista dedicada à poesiaem todas as suas manifestações.
 
Os textos de Jacques Brel estão ligados à tradição da poesia medieval francesa. Ao mesmo tempo, em arco sincrônico, poderiam ser colocados ao lado de muita poesia lírica moderna. "Le dernier repas" demonstra clara presença da função poética de Jakobson, e mostra-nos como tantas técnicas literárias têm sua origem no aspecto sonoro da linguagem. Vejamos um trecho:
 
A mon dernier repas
Je veux voir mes voisins
Et puis quelques Chinois
En guise de cousins
Et je veux qu'on y boive
En plus du vin de messe
De ce vin si joli
Qu'on buvait en Arbois
 
O texto é fortemente marcado por aliteração, como a partir doV, labiodental fricativa, e oB, bilabial oclusiva. O uso das oclusivas/plosivas em um poema como "Le dernier repas", como em "Amsterdam", tem uma função clara em textos marcados por um ritmo ágil, nervoso e explosivo, levado ao extremo pela própria performance de Jacques Brel.
 
As rimas surpreendem, tal como preconizava Maiakóvski, como emChinois/Arbois, recorrendo à tática já clássica, desde a poesia medieval, de usar topônimos como Arbois, ou, mais adiante no texto, Périgord, mostrando o desejo e característica da poesia oral de conectar-se contextualmente com uma plateia local, antes dos delírios românticos de uma "poesia universal", que para isso precisou abrir mão de certas técnicas enriquecedoras da poesia, já que na busca por uma "lírica pura" que resistisse à ação do tempo histórico, os campos e vales já não podiam ter nome, nem os pássaros pertencer a espécie alguma... era o "Vale" e o "Pássaro", onde o concreto cede cada vez mais lugar ao simbólico, o que pode ter levado o poeta a perder contacto com seus leitores. O crítico italiano Alfonso Berardinelli discute esta questão com brilhantismo em um ensaio que lida com a tensão entre localismo e universalismo na poesia moderna.
 
Na tradução de Marília Garcia, ler Brel é como ser transportado a um mundo em que a poesia brasileira moderna contasse com um hipotético e obscuro contemporâneo de Manuel Bandeira e Oswald de Andrade:
 
 
No meu último jantar
Quero ver meus vizinhos
e os chineses vindo
como se fossem primos
Também quero tomar
Da missa o vinho
Esse vinho divino
que eu bebia em Arbois
 
(excerto de "O último jantar", tradução de Marília Garcia)
 
 
Para Paul Zumthor, um poeta como Jacques Brel fornecia um exemplo perfeito para sua discussão sobre certos aspectos poéticos que acabam desprestigiados na hegemonia do escrito e literário, chamando nossa atenção não apenas para ovoco doverbivocovisual, mas transformando também nossa concepção do visual, que passa a ser não apenas a do signo na página, mas a daperformance do poeta ao vivo, seu gestual, sua presença de palco, até mesmo suas roupas. O poeta completo passa a ser aquele que escreve textos densos e concretos, mas também flexíveis e tesos para permitirem a sua performance oral. Nesta mentalidade crítica, o demasiadorígido passa a ser tão negativo quanto o demasiadofrouxo. O desejável passa a ser oteso, talvez mais do que o denso ou mesmo o concreto.
 
É claro que, ao tratarmos da poesia textual-verbal, até que ponto podemos falar sobre oestritamente vocal ou oestritamente visual? Mesmo a poesia fonética de Hugo Ball apresenta uma forma de textualidade. Apenas experiências radicais e específicas, como a poesia-respiração de Gil J. Wolman e Henri Chopin, ou a poesia visual de Joan Brossa, por exemplo, abrem mão por completo do textual-verbal. O que temos talvez seja então a tensão verbal que oscila entre vocal e escrito, sonoro e visual. Em seu livroEros The Bittersweet (1986), a poeta canadense Anne Carson argumenta que a nossa sensibilidade lírica nasce com Arquíloco (680 - 645 a. C.) e a alfabetização dos poetas, defendendo que a passagem de uma cultura oral a uma cultura letrada teria consequências sobre a poesia não apenas em suas técnicas de registro, mas até mesmo permitindo a evolução de nossa noção de sujeito. Não há respostas fáceis para esta discussão.
 
A escolha de um poema lírico/canção como "Ne me quitte pas" pode surpreender alguns, já que um texto como esse pode parecer para alguns envelhecido, transcrito/cantado em demasia, esvaziado. Mas o talento poético de Jacques Brel está presente neste texto também, que ainda me parece ter grande força lírica em passagens como "Laisse-moi devenir / L’ombre de ton ombre / L’ombre de ta main / L’ombre de ton chien", ou, na tradução de Marília Garcia, "Deixa que eu me torne / A sombra da sua sombra / A sombra da sua mão / A sombra do seu cão", em uma gradação que busca mimetizar o desejo de penitência do amante. Parece-me de tanta qualidade quanto os textos daquele outro maravilhoso e tão vocal (ainda que não cantor) poeta moderno francês, outro Jacques, outro poeta do delírio e devastação amorosos, Jacques Prévert (1900 – 1977). Penso, por exemplo, naquele texto deslumbrante de Prévert que é "Rue de Seine", com a mímica oral daquela amante desesperada que só consegue repetir "Pierre dis-moi la vérité / Pierre dis-moi la vérité / je veux tout savoir / dis-moi la vérité", a tal ponto que, ainda que a personagem principal do poema seja o homem que recebe esta enxurrada de desespero com pontos de interrogação, Prévert talvez tenha legado à Eternidade ainda melhor delineado o sujeito daquela mulher, que seguirá repetindo pelos séculos dos séculos: "diz-me a verdade Pedro / diz-me a verdade Pedro / eu quero saber tudo / diz-me a verdade". Creio que os mesmos séculos seguirão escutando o desespero penitente de Brel a repetir: "E agora / Apagar as horas / Que matam / Com uma salva de porquês / Toda felicidade / Não vá embora / Não vá embora / Não vá embora". Como disse Pound,only emotion endures.
 
Assim como podemos ainda hoje nos emocionar com os poemas de um Martim Codax, creio que a poesia de Jacques Brel seguirá na tradição oral francesa por muito tempo. O autor dotrobar leu é tão importante para a sobrevivência da poesia quanto o autor dotrobar ric e dotrobar clus. Um mundo em que todos queiram compor ou honrar apenas otrobar clus (muitos sem sequer o talento para tal empreitada) acaba engessado e sem público para a poesia, ou torna-se um mundo em que a poesia escrita acaba rígida demais e a poesia cantada demasiado frouxa. A nosso ver, a poesia de Jacques Brel, leve e eficiente, com textos inteligentes e sensíveis, busca um equilíbrio que nos parece saudável. E emocionante.
 
 
--- Marília Garcia e Ricardo Domeneck.
 
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