Jacques Brel
Jacques Romain Georges Brel foi um autor de canções, compositor e cantor belga francófono. Esteve ainda ligado ao cinema de língua francesa. Tornou-se internacionalmente conhecido pela música Ne me quitte pas, interpretada e composta por ele.
1929-04-08 Schaerbeek
1978-10-09 Bobigny, France
1749
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Alguns Poemas
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Jacques Brel foi um poeta vocal e cantor belga, nascido a 8 de abril de 1929 em Schaerbeek, nos arredores de Bruxelas. Viveu no entanto a maior parte de sua vida em Paris. Umperformer vigoroso e autor de belos textos, dos quais muitos sustentam-se em sua textualidade e funcionam tanto na página como na voz, Jacques Brel é um dos trovadores modernos mais influentes da língua francesa. Suas canções foram traduzidas e gravadas por vários cantores na velha tradição occitana medieval dosjoglars, os intérpretes dos poemas alheios. Entre estes, podemos mencionar David Bowie, John Denver, Marc Almond, Ray Charles, Nina Simone, Frank Sinatra e Kurt Cobain. O poeta-cantor morreu em Paris, de câncer pulmonar, em 1978.
Em seu importantíssimo livroIntroduction à la poésie orale (1983), o estudioso suíço Paul Zumthor (1915 – 1995) recorre frequentemente a Jacques Brel ao tratar da sobrevivência da poesia oral e cantada no mundo contemporâneo ocidental, tentando ouvir além da narrativa por vezes parcial dos historiadores da poesia escrita, que muitas vezes declaram a poesia oral e a poesia cantada "mortas" ou "extintas", mesmo que sob o viés da declaração de que a poesia e a música teriam se separado definitivamente.
Talvez pudéssemos dizer que sobrevive hoje também uma hierarquia marcada por preconceito na avaliação entre o que na poesia medieval formava otrobar leu, otrobar ric e otrobar clus. Mas o interessante é que, no Brasil, o que geralmente desmascara a hierarquia é o fato de que se considera um poema que funcionaapenas na voz inferior a um poema que funcionaapenas na página. Nossa pergunta seria: levando em consideração toda a tradição poética ocidental, lembrando-nos que Safo de Lesbos era uma cantora, assim como Arnaut Daniel, não seria saudável crer que o poema que funcionaapenas na voz e o poema que funcionaapenas na página têm omesmo valor estético, sendo portanto desejável como modelo superior aquele texto que atinge o grau máximo de eficiência ao funcionartanto na página como na voz? O melhor exemplo segue sendo, talvez, a sextina de Arnaut Daniel, que não nos cansamos de lembrar que é umaletra-de-música. E não podemos nos esquecer da definição original de poesia lírica:texto composto para ser cantado. Tudo isso vem aqui dito para justificar a tantos literatos a nossa inclusão entusiasmada de poetas como Jacques Brel em uma revista dedicada à poesiaem todas as suas manifestações.
Os textos de Jacques Brel estão ligados à tradição da poesia medieval francesa. Ao mesmo tempo, em arco sincrônico, poderiam ser colocados ao lado de muita poesia lírica moderna. "Le dernier repas" demonstra clara presença da função poética de Jakobson, e mostra-nos como tantas técnicas literárias têm sua origem no aspecto sonoro da linguagem. Vejamos um trecho:
A mon dernier repas
Je veux voir mes voisins
Et puis quelques Chinois
En guise de cousins
Et je veux qu'on y boive
En plus du vin de messe
De ce vin si joli
Qu'on buvait en Arbois
O texto é fortemente marcado por aliteração, como a partir doV, labiodental fricativa, e oB, bilabial oclusiva. O uso das oclusivas/plosivas em um poema como "Le dernier repas", como em "Amsterdam", tem uma função clara em textos marcados por um ritmo ágil, nervoso e explosivo, levado ao extremo pela própria performance de Jacques Brel.
As rimas surpreendem, tal como preconizava Maiakóvski, como emChinois/Arbois, recorrendo à tática já clássica, desde a poesia medieval, de usar topônimos como Arbois, ou, mais adiante no texto, Périgord, mostrando o desejo e característica da poesia oral de conectar-se contextualmente com uma plateia local, antes dos delírios românticos de uma "poesia universal", que para isso precisou abrir mão de certas técnicas enriquecedoras da poesia, já que na busca por uma "lírica pura" que resistisse à ação do tempo histórico, os campos e vales já não podiam ter nome, nem os pássaros pertencer a espécie alguma... era o "Vale" e o "Pássaro", onde o concreto cede cada vez mais lugar ao simbólico, o que pode ter levado o poeta a perder contacto com seus leitores. O crítico italiano Alfonso Berardinelli discute esta questão com brilhantismo em um ensaio que lida com a tensão entre localismo e universalismo na poesia moderna.
Na tradução de Marília Garcia, ler Brel é como ser transportado a um mundo em que a poesia brasileira moderna contasse com um hipotético e obscuro contemporâneo de Manuel Bandeira e Oswald de Andrade:
No meu último jantar
Quero ver meus vizinhos
e os chineses vindo
como se fossem primos
Também quero tomar
Da missa o vinho
Esse vinho divino
que eu bebia em Arbois
(excerto de "O último jantar", tradução de Marília Garcia)
Para Paul Zumthor, um poeta como Jacques Brel fornecia um exemplo perfeito para sua discussão sobre certos aspectos poéticos que acabam desprestigiados na hegemonia do escrito e literário, chamando nossa atenção não apenas para ovoco doverbivocovisual, mas transformando também nossa concepção do visual, que passa a ser não apenas a do signo na página, mas a daperformance do poeta ao vivo, seu gestual, sua presença de palco, até mesmo suas roupas. O poeta completo passa a ser aquele que escreve textos densos e concretos, mas também flexíveis e tesos para permitirem a sua performance oral. Nesta mentalidade crítica, o demasiadorígido passa a ser tão negativo quanto o demasiadofrouxo. O desejável passa a ser oteso, talvez mais do que o denso ou mesmo o concreto.
É claro que, ao tratarmos da poesia textual-verbal, até que ponto podemos falar sobre oestritamente vocal ou oestritamente visual? Mesmo a poesia fonética de Hugo Ball apresenta uma forma de textualidade. Apenas experiências radicais e específicas, como a poesia-respiração de Gil J. Wolman e Henri Chopin, ou a poesia visual de Joan Brossa, por exemplo, abrem mão por completo do textual-verbal. O que temos talvez seja então a tensão verbal que oscila entre vocal e escrito, sonoro e visual. Em seu livroEros The Bittersweet (1986), a poeta canadense Anne Carson argumenta que a nossa sensibilidade lírica nasce com Arquíloco (680 - 645 a. C.) e a alfabetização dos poetas, defendendo que a passagem de uma cultura oral a uma cultura letrada teria consequências sobre a poesia não apenas em suas técnicas de registro, mas até mesmo permitindo a evolução de nossa noção de sujeito. Não há respostas fáceis para esta discussão.
A escolha de um poema lírico/canção como "Ne me quitte pas" pode surpreender alguns, já que um texto como esse pode parecer para alguns envelhecido, transcrito/cantado em demasia, esvaziado. Mas o talento poético de Jacques Brel está presente neste texto também, que ainda me parece ter grande força lírica em passagens como "Laisse-moi devenir / L’ombre de ton ombre / L’ombre de ta main / L’ombre de ton chien", ou, na tradução de Marília Garcia, "Deixa que eu me torne / A sombra da sua sombra / A sombra da sua mão / A sombra do seu cão", em uma gradação que busca mimetizar o desejo de penitência do amante. Parece-me de tanta qualidade quanto os textos daquele outro maravilhoso e tão vocal (ainda que não cantor) poeta moderno francês, outro Jacques, outro poeta do delírio e devastação amorosos, Jacques Prévert (1900 – 1977). Penso, por exemplo, naquele texto deslumbrante de Prévert que é "Rue de Seine", com a mímica oral daquela amante desesperada que só consegue repetir "Pierre dis-moi la vérité / Pierre dis-moi la vérité / je veux tout savoir / dis-moi la vérité", a tal ponto que, ainda que a personagem principal do poema seja o homem que recebe esta enxurrada de desespero com pontos de interrogação, Prévert talvez tenha legado à Eternidade ainda melhor delineado o sujeito daquela mulher, que seguirá repetindo pelos séculos dos séculos: "diz-me a verdade Pedro / diz-me a verdade Pedro / eu quero saber tudo / diz-me a verdade". Creio que os mesmos séculos seguirão escutando o desespero penitente de Brel a repetir: "E agora / Apagar as horas / Que matam / Com uma salva de porquês / Toda felicidade / Não vá embora / Não vá embora / Não vá embora". Como disse Pound,only emotion endures.
Assim como podemos ainda hoje nos emocionar com os poemas de um Martim Codax, creio que a poesia de Jacques Brel seguirá na tradição oral francesa por muito tempo. O autor dotrobar leu é tão importante para a sobrevivência da poesia quanto o autor dotrobar ric e dotrobar clus. Um mundo em que todos queiram compor ou honrar apenas otrobar clus (muitos sem sequer o talento para tal empreitada) acaba engessado e sem público para a poesia, ou torna-se um mundo em que a poesia escrita acaba rígida demais e a poesia cantada demasiado frouxa. A nosso ver, a poesia de Jacques Brel, leve e eficiente, com textos inteligentes e sensíveis, busca um equilíbrio que nos parece saudável. E emocionante.
--- Marília Garcia e Ricardo Domeneck.