Tempo

1.
Canto porque em mim
brotam quarenta mundos.

Quero cantar.

2.
Cantar os hímens rotos?
os amigos mortos?
Cantar o suor do rosto? a
dor nos rins?
o imposto de renda? a conta
da luz?

Não, não cantarei
as dores que não sofri.
Cheguei, irmãos, para
cantar os cantos
que sei.

3.
Sei do tédio, sei da mágoa, sei
de algum remorso esparso;
sei da difícil amada,
sei de meus olhos, meus braços.
Mas por demais me cant(s)ei:
agora busco outros cantos.

4.
Não cantarei os Andes de Neruda,
não cantarei Espanha de Picasso,
África de Cesaire, Pernambuco
de João Cabral de Melo Neto.

Nem China, vasto amor de Mao,
nem Itabira.
(Em boas mãos prossigam)
Cantar os tempos presentes
— estes áridos tempos —
eu cantarei.

5.
Vietnã, teu nome
jazerá escrito a ferro e pétalas.
Nós venceremos, Vietnã.
Congo, não foi em vão
o grito de Patrice.
Nós venceremos, Congo.
San Domingos Havana Bogotá
Buenos Aires Brasília:
nós venceremos!

Venceremos porque na pele
sentimos — demais — vergastas.
Duras vergastas na carne,
na sombra que se projeta.

Duras vergastas na cara.

6.
E após meu canto, escutarei apenas
— como se escuta passar o vento —
o amor brotando das palmas
de nossas mãos.

Escutemos!!

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