Nordeste se reencontra com Ascenso Ferreira

Obras do mais importante poeta modernista da região são relançadas pela Nordestal Editora.
O Nordeste se reencontra com seu maior poeta modernista. "Feliz de quem achou sua maneira de expressão", escreveu certa vez Tristan Tzara, um dos pilotos da vanguarda literária européia na primeira metade do século. A frase cabe como uma luva em Ascenso Ferreira, que Luís da Câmara Cascudo descreveu, na primeira vez que o encontrou, ainda no pátio da Faculdade de Direito do Recife, como um homem "que olha a vida do alto de um metro e noventa e pisa com cem quilos as ruas velhas do Recife".
Mas a descoberta da identidade, muitas vezes, tem um duro preço. Nascido em 1895 em Palmares, interior de Pernambuco, Ascenso - sempre encoberto por seu infalível chapelão - morreu quatro dias antes de completar 70 anos, em 1965, e sua obra se perdeu, a partir daí, no mais terrível silêncio, que mais parecia uma maldição. Seus únicos três livros de poemas - Catimbó, de 1927, Cana Caiana, de 1939, e Xenhenhém, de 1951 - tiveram sua edição comercial mais recente em 1963, sob o selo da José Olympio. Dezoito anos depois, graças à teimosia do crítico e poeta pernambucano Juhareiz Correya, eles foram republicados em primorosa, mas restrita, edição artesanal.
Nos últimos dias de 1995, por fim, 32 anos depois da edição comercial mais recente, os poemas de Ascenso Ferreira foram finalmente relançados em cuidadoso trabalho da Nordestal Editora, dirigida pelo mesmo Correya, em co-edição com a Fundação de Arte de Pernambuco - Fundarte, presidida pelo romancista Raimundo Carrero. Rompe-se, assim, uma tela de mutismo e inoperância que, por anos a fio, cercou a obra do poeta.
Descaso
- O falso argumento, exibido durante todo esse tempo por desmemoriados e preguiçosos, era o de que a família de Ascenso Ferreira proibia a republicação de sua obra. Juhareiz Correya chegou a publicar no Jornal da Cidade, do Recife, no início dos anos 80, um irado artigo em que acusava a família do poeta de amordaçá-lo depois de morto. O próprio Correya ouviu da viúva, alguns dias depois, o mais enfático desmentido. Houve apenas descaso e desprezo.
A nova edição dos poemas modernistas de Ascenso Ferreira, que chegou em janeiro às livrarias do Nordeste em um só volume, reproduz ilustrações de Carybé, Cícero Dias, Joaquim Cardozo e Luís Jardim, entre outros, e é aberta com belos textos introdutórios, que já se tornaram clássicos do gênero, assinados por Manuel Bandeira e Sérgio Milliet. Catimbó, o primeiro dos três livros, é prefaciado por Ritmo Novo, um pequeno ensaio de Mário de Andrade. "Nesse livro, ele eleva ao máximo possível a tendência rapsódica da poesia brasileira", Mário escreve. Cana Caiana tem um texto de apresentação assinado por Luís da Câmara Cascudo. "Ninguém o imitará, mas Ascenso criou, como ninguém fez, sua maneira", escreve Cascudo. Xenhénhém é apresentado por um artigo assinado por Roger Bastide, para quem "aliando a intuição à ciência, Ascenso realizou algo muito difícil: a poesia popular".
Toda essa pompa é mais do que justa. Ascenso Ferreira é, afinal, o mais expressivo nome do movimento modernista no Nordeste. Nem o esquecimento, nem a fama injusta de folclórico e exótico, embaçam o brilho de seus versos. Ascenso se chamava, na verdade, Aníbal Torres. Era magro, desengonçado e escrevia sonetos decadentes que reuniu em um pequeno livro, Eu Voltarei ao Sol da Primavera, obra que merece ser sumariamente esquecida. Seu primeiro soneto, Flor Fenecida, foi publicado em A Notícia, em 1911. Perdeu o pai aos 7 anos, em acidente brutal, ferida de que jamais se recuperou por completo. Aos 13, já trabalhava no comércio e escrevia seus primeiros sonetos, baladas e madrigais, na pior tradição parnasiana. Em 1917, aos 22 anos, em ruptura radical, o poeta muda o nome de registro para Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira, com que se insere em uma linhagem eminentemente matriarcal. Com o Ascenso, ele repete o nome do avô materno, com o Ferreira reverencia o sobrenome da mãe. Engorda, passa dos 100 quilos, ml distribuídos nos 1,89 metro de altura. Sua marca, a partir daí, é o vozeirão forte, mas encantador. Torna-se uma espécie de ator em tempo integral, camuflado pelo nome falso e pelo imenso chapéu de palha, uma espécie nordestina de bufão.
No ano-símbolo de 1922, Ascenso se torna amigo de Joaquim Cardozo, Gilberto Freire e Luís da Câmara Cascudo. A princípio, apesar das amizades, o poeta é uma das vozes a se erguer contra o modernismo de 1922, que chega ao Nordeste pelas mãos de Joaquim Inojosa. Mas logo se aproxima da Revista do Norte, porta-voz dos modernistas na região, e em 1926, publica seu primeiro poema modernista, Lusco Fusco, que, no primeiro livro da nova fase, Catimbó, datado de 1927, aparece com o título de Boca da Noite. No ano seguinte, reforçando os laços modernistas, Ascenso se torna amigo de Mário de Andrade. Em 1929, faz sua primeira viagem ao sul do País e realiza um recital consagrador no Teatro dos Brinquedos, em São Paulo. Intelectuais influentes como Cassiano Ricardo, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade se aproximam, então, do poeta.
Em 1945, Ascenso abandona a mulher, com quem se casara em 1921, para viver em companhia de uma adolescente, Maria de Lurdes Medeiros, abrindo um novo divisor de águas em sua vida. A essa altura, ele já é um fenômeno de cuja presença todos desejam privar. Em 1951, o poeta faz sua quarta viagem ao Sudeste para o lançamento de seus poemas reunidos em edição de luxo. Em 1955, quando participa ativamente da campanha de Juscelino Kubitschek para a presidência da República, a dupla identidade de Ascenso Ferreira já está inteiramente à mostra. Apesar da experiência modernista e de toda a consagração que mereceu, ele ainda é visto, essencialmente, como um "poeta foclórico", pecha preconceituosa de que jamais se livrará.
Colorido
- Ascenso Ferreira é um rapsodo de perfil clássico, uma cópia solar e primitiva dos cantadores ambulantes que perambulavam pela Grécia antiga. O folclore é, a rigor, coisa bem diferente. Seus poemas ganham colorido e ritmo especiais quando lidos, em particular por ele mesmo, tanto que chegou a gravá-los em disco. Ascenso foi, de fato, o primeiro poeta brasileiro a registrar, de própria voz, seus versos.
Manuel Bandeira, em análise precisa, escreveu certa vez: "Quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas." São poemas sobre os mangues, o massapê e a caatinga, destilados no ritmo dos reisados, dos maracatus e das vaquejadas. Apesar da presença impregnada do mundo nordestino, não se pode incorrer no erro de classificar Ascenso Ferreira como um poeta regionalista. "Ele não fez reportagens de fatos étnicos, nem lambiscou o exotismo dos costumes bárbaros do Brasil", escreveu Sérgio Milliet, em momento de absoluta lucidez.
Também Manuel Bandeira soube detectar, com precisão, essa ponte que Ascenso ergueu entre o natural e o artificial. "Costuma se falar de verso metrificado e verso livre, como se algum abismo os separasse", escreveu Bandeira. "Ascenso é o melhor exemplo com que se possa provar que não existe tal abismo." É de Bandeira, ainda, a sentença: "Ascenso continuou a ser deliciosamente provinciano, sem nenhum ranço regionalista." É bom recordar, aqui, de Roger astide quando esse diz, em ensaio sobre a obra de Ascenso, que a poesia popular, enquanto expressão estética do povo, a rigor não existe. "O povo não faz poesia popular, ou faz uma cópia má da poesia dos burgueses", escreve. Ascenso é uma prova disso.
Paradoxo
- Há, apesar de tudo, muito paradoxo nessa admiração. A afeição que Manuel Bandeira e Mário de Andrade nutriram por Ascenso Ferreira esteve quase sempre pontuada por um tipo disfarçado - e envergonhado - de desprezo. Essa atitude ambígua que o sul civilizado nutriu em relação ao grande rapsodo nordestino de
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