José Castello

Rio de Janeiro
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Alguns Poemas

Projeto literário é muito coerente e afinado

Pode-se não gostar de suas ficções, por vezes excessivamente cifradas e retorcidas, mas
jamais roubar-lhe a singularidade e a obstinação - ele tem a medida precisa das limitações
do fazer literário

Autran Dourado é um escritor imune às ilusões do tempo, aos apelos da moda e à voracidade dos críticos. Essa atitude solitária não significa, porém, desinteresse pela técnica e pela perfeição. Muito ao contrário. Talvez nenhum outros escritor brasileiro vivo tenha um projeto literário tão coerente e afinado quanto ele. Pode-se não gostar das ficções de Autran Dourado, por vezes excessivamente cifradas e retorcidas, mas jamais roubar-lhe a singularidade e a obstinação.
Há pouco tempo, Autran reescreveu seu primeiro romance, Tempo de Amar, de 1952. O resultado dessa viagem rumo a quarenta e tantos anos atrás, Ópera dos Fantoches, publicado no verão de 1995, é antes de tudo um atestado de que a literatura é, para ele, um ofício interminável, que não pode ser aferido pelas tabelas sensatas, mas inúteis, do tempo lógico.
Ópera dos Fantoches, a reprise moderna de Tempo de Amar, é ainda um romance imperfeito, que desperta ainda mais insatisfação e que, por isso mesmo, não cessa de desafiar seus leitores. Não se pode lê-lo distraidamente; ou o leitor se engaja, ou o deixa de lado. É, como todos os grandes livros, uma obra sem solução. O livro se torna um emblema da confiança que Autran Dourado deposita na imperfeição. O escritor perfeito, à moda dos pesadelos de Borges, é um homem eternamente insatisfeito, que se dedica a escrever uma obra sem fim, que ninguém lerá. A perfeição pertence à ordem do impossível. Transplantada para a realidade, ela se transforma, apenas, em uma muralha de vaidade e um obstáculo.
Autran Dourado, ao contrário, tem a medida precisa das limitações do fazer literário. Sabe que lida com um artifício e que escrever é, em última instância, falsificar. Suas ficções são, antes de tudo, respostas originais a questões técnicas que ele não se cansa de reformular. A cada livro, Autran constrói para si mesmo novos problemas e depois escreve para resolvê-los. Seus personagens, ele já disse isso uma vez, têm seus destinos ligados à solução dessas charadas teóricas. São filhos da técnica e, justamente por isso, conseguem tocar o humano.
Em Autran Dourado, a técnica é a grande protagonista. Com a postura de um vigia incansável, ele chega a comparecer pessoalmente à trama mascarado como João da Fonseca Nogueira, escritor como ele, personagem duplo e perigoso, que circula por livros como O Risco do Bordado, A Serviço Del-Rey e Um Artista Aprendiz. Nogueira, o lugar-tenente de Autran, tem porém a visão desfocada pelo moralismo, o que o distancia irremediavelmente de seu criador, um artista para quem a ficção é um universo sem limites que tem a técnica como única fronteira moral.
A leitura dos livros de Autran Dourado desmente os temores daqueles que julgam que a racionalidade vem apenas matar a imaginação. Seus livros comprovam que só sobre um forro lógico consistente, com suas leis espessas, valores firmes e limites, a imaginação pode de fato imperar. A imaginação pura não pode ser dita. Nenhum livro a comporta. Fosse o contrário, e todas as crianças seriam romancistas.

"in" O Estado de S. Paulo - Caderno 2

Histórias de poesia e pobreza

Amais inquietante história relatada por Paul Auster em A Arte da Fome, coletânea de prefácios, entrevistas e ensaios que acaba de ser traduzida pela José Olympio, não fala de fantasmas, ou de meninos que voam, como os que aparecem em sua Trilogia de Nova York, mas ainda assim é de dar arrepios. Auster, que foi um poeta mediano antes de se transformar em grande ficcionista, a conta em uma entrevista, concedida 11 anos depois da experiência que rememora e agora reproduzida no livro.
Dominado pelo sonho de escrever narrativas de ficção, mas obrigado pelos fatos da vida a se satisfazer com o espaço mais restrito (e, para ele, menos perigoso) da poesia, Auster já tinha se decidido, no fim dos anos 70, a abandonar de vez as fantasias literárias para se dedicar, apenas, a ganhar dinheiro. "Houve momentos em que eu pensei que tivesse chegado ao fim, que eu jamais escreveria outra palavra", rememora. Em dezembro de 1978, porém, um amigo coreógrafo o leva, sem nenhuma intenção particular, ao ensaio aberto de um balé. Auster, deprimido, se deixa arrastar. Sem qualquer expectativa especial em relação ao espetáculo, o escritor é, aos poucos, inundado pelo que vê. Dá-se uma revelação, um desses eventos inexplicáveis em que o acaso se mescla à sensibilidade e, no rasto desse vazamento, o invisível se torna visível.
Ao voltar para casa, ele se tranca no escritório e começa a escrever Espaços Brancos, obra sem gênero preciso onde, por fim, a vocação para a prosa se impõe. Escreve, compulsivamente, até as três da madrugada quando cai, exaurido, em sono profundo. Às oito da manhã, o telefone toca: alguém lhe comunica a morte repentina de seu pai, vítima de um ataque cardíaco. Semanas depois, Auster recebe uma herança que lhe dá, pela primeira vez na vida, a liberdade de escrever o que bem entende, sem se preocupar com as urgências do tempo e as contas do fim do mês.
"Não consigo me sentar e escrever sem pensar nisso", diz. "Afinal, que terrível equação! Pensar que a morte de meu pai salvou minha vida." Não é preciso aqui rastejar até a lama dos clichês edipianos, ou buscar a muleta das interpretações esotéricas. O horror está nos fatos. Auster teria permanecido um poeta medíocre se o acaso, esse deus sinuoso e complicado, não tivesse agido simultaneamente contra ele e a favor dele.
Essa história não me abandona no momento em que vejo Orides Fontela, a autora de Teia, a professora aposentada que vive na miséria, a poeta que a mídia transformou em "caso clínico", inteiramente asfixiada pela manipulação pública de sua pobreza. Não que Orides tenha que, ela também, ser bafejada por um golpe ambíguo da sorte para abandonar a poesia e se dedicar a outro gênero. Os versos são, mesmo, seu destino. Mas, diante da pobreza, todo discurso elevado - e o mais elevado de todos é o cínico - se torna uma malversação. E nem a piedade, nem o cinismo, produzem poesia.
Penso em Orides porque é impossível não dar valor à sua raiva, à sua decepção à sua sede aturdida de respeito que a mídia, cruel, transforma em curiosidade, como se ela fosse uma poeta de cera em um museu de horrores. Nela, também - como em Auster - a necessidade tinha tudo para matar o desejo insensato e se impor como um destino. Paul Auster teve a visita da sorte num momento de azar; Orides Fontela tem o azar de ser sozinha, ser aposentada e ser poeta, atributos que não parecem combinar com os modelos de sucesso em vigor, mas tem a sorte infinita de ser teimosa. E isso a salva. Em Teia, ela sintetiza: "A vida é que nos tem: nada mais temos".
Auster relata em seu livro uma segunda história que, pensando bem, dá uma resposta ríspida à primeira. Já no fim dos anos 80, passando uma temporada em uma velha mansão de Vermont, o escritor consegue, certa tarde, colocar o ponto final no romance A Música do Acaso. Orgulhoso, pleno, ele sai para fumar um charuto no jardim e desfilar seu sentimento de vencedor. Depara, dois passos adiante, com sua filha de dois anos, Sophie, totalmente nua, agachada sobre algumas pedras, concentrada em fazer cocô. A menina o vê e, sem interromper o ritual, grita: "Olha, papai! Olha o que estou fazendo!". Auster é obrigado, ali, a abandonar suas divagações de sucesso e glória para cuidar do asseio da filha. "Não sei se Sophie estava me oferecendo uma forma nada agradável de crítica literária ou se estava simplesmente fazendo uma observação filosófica sobre a igualdade de todos os atos criativos", diz.
Todo o esforço de Auster para ser livre se iguala, em um breve instante, à liberdade gratuita da pequena Sophie. Sou obrigado a pensar, novamente, em Orides Fontela, que não precisa de nossa piedade, nem de nossa repugnância, nem de nossa aprovação, nem de nossos louvores para ser uma poeta feroz. Nós a manipulamos para lá e para cá, enquanto ela, indiferente, continua a escrever.

("in" O Estado de S. Paulo, Caderno 2)

Benedito Nunes ensina o caminho de volta

Crítico paraense defende a radicalidade dos escritores para afirmar grandeza da Amazônia.
Felix Delatour é um professor bretão, circunspecto e quase albino que vive escondido em um sobrado de Manaus. Ele sofre de uma trágica doença que praticamente o imobiliza: o gigantismo. Sobrevive, em seu abafado exílio, ministrando aulas de francês. Em sua sala, despida de qualquer lembrança do passado europeu, há apenas uma mesa de madeira e duas cadeiras de vime. Do lado de fora, com suas ondas de calor e nuvens de mosquitos e sempre indiferente aos requintes da língua, está a Amazônia. Diante de um jovem aluno, Delatour certa vez fez uma importante reflexão sobre seu destino de exilado. "A viagem, além de tornar o ser humano mais silencioso, depura o seu olhar", disse. "A voz do verdadeiro viajante ecoa no rio silencioso do tempo."
Felix Delatour, esse profeta da distância e do silêncio como métodos fundamentais para o conhecimento, é um personagem de Reflexão sobre uma Viagem sem Fim, um conto (leia íntegra na página ao lado) do escritor amazonense Milton Hatoum, recentemente publicado pela Revista da USP.
O conto é dedicado ao eminente crítico literário e filósofo paraense Benedito Nunes, que vive na vizinha Belém do Pará. Como nos contos de Adolfo Bioy Casares, em que os primeiros parágrafos servem apenas para driblar a atenção do leitor, prometendo-lhe o que não lhe dará, é Benedito Nunes - e não Delatour - quem nos interessa aqui.
A dedicatória, que Milton Hatoum firmou com orgulho, não é mera formalidade. Aos 65 anos, freqüentador assíduo do meio intelectual francês e norte-americano, o paraense Benedito Nunes poderia dizer, sem medo de errar, que também para ele as viagens servem para purificar a visão. Professor da Universidade do Pará e prestigiado conferencista e ensaísta, Benedito Nunes faz muitas viagens, mas retorna sempre a Belém, onde nasceu e nunca deixou de viver.
Ao contrário de Delatour, o professor jamais permitiu que os prazeres do exílio o imobilizassem. Para ele, as viagens apontam sempre para o momento de retorno ao porto de origem. É na volta - novos olhos diante de velhas paisagens - que a aventura da viagem atinge seu apogeu.
Com o espírito depurado pelas aventuras intelectuais no Exterior, Benedito Nunes defende, no entanto, uma visão não-regionalista da região amazônica, que a livra das fantasias românticas e das ilusões de inocência virginal. "Não sou uma planta nativa", diz.
Nesta entrevista, Benedito Nunes defende a radicalidade de outros escritores e poetas contemporâneos que, exatamente como ele, conseguiram afirmar a grandeza da Amazônia, sem, no entanto, ceder à força inebriante dos mitos. Admira, por isso, o Márcio Souza de Galvez, o Imperador do Acre, mas já não tem o mesmo entusiasmo por seus romances seguintes. Enaltece as qualidades de escritores e poetas nortistas pouco lidos no sul do País, como Dalcídio Jurandir e Age de Carvalho. E se confessa, fechando o círculo, admirador incondicional do amazonense Milton Hatoum, um ficcionista que, como ele, aprendeu a ver a distância como a forma mais eficaz da proximidade.
Caderno 2 - O senhor é um intelectual extremamente fiel à região amazônica. Não paga um caro preço por essa fidelidade?
Benedito Nunes - Não. Se é isso o que você quer saber, mesmo aqui jamais perco contato com o que se passa no resto do mundo. Tenho sempre me afastado da Amazônia, mas são afastamentos por tempo determinado, com volta fixa e garantida. Minha temporada mais longa no Exterior ocorreu na segunda metade dos anos 60, quando fui leitor em Rennes, na França. Depois, nos anos 80, retornei à França por mais um ano, já como professor. Tenho viajado freqüentemente a Paris e aos Estados Unidos, em particular a Austin, no Texas, para aulas, conferências e debates. Mas faço sempre um movimento de saída e retorno, que é importante porque me confere certo afastamento, sem que os vínculos se quebrem. Não tendo uma radicação extrema ao meio, posso pensar com mais independência e vigor. As viagens me fortalecem.
Caderno 2 - O senhor não se sente isolado em relação ao resto do País? Convites para lecionar em grandes capitais brasileiras, certamente, não lhe faltam.
Nunes - Mas prefiro permanecer aqui. Não me sinto isolado em Belém do Pará simplesmente porque sou um homem que gosta do isolamento. No Pará tenho muitas relações, muitos amigos, é bom dizer. Mas conservo também, é verdade, a distância e a calma que, para mim, são condições fundamentais para o trabalho intelectual. Vivo sim em um certo isolamento que não deve ser confundido, no entanto, com insulamento. Não estou incomunicável e não é uma fuga. A distância geográfica, ao contrário, me proporciona um refúgio, para o qual posso sempre retornar em segurança. Mas não sou uma planta nativa, presa definitivamente à floresta. Talvez por isso eu entenda a região amazônica sem precisar do apoio dos localismos. Prefiro falar, por exemplo, em uma literatura "da Amazônia" e não em literatura "amazônica", denominação que inclui uma perspectiva regionalista. Ao falar em literatura "da Amazônia", estou me referindo apenas a uma origem, uma procedência e nada além disso.
Caderno 2 - Quem são, segundo sua avaliação, os grandes prosadores vivos dessa literatura da Amazônia?
Nunes - Temos de falar, primeiro, de Haroldo Maranhão. Ele se mudou há muitos anos para o Rio, mora atualmente em Juiz de Fora, mas tem uma escrita que é muito paraense. Embora com um círculo de leitores bastante restrito, Haroldo é, há algumas décadas, uma figura-chave para a literatura amazônica. Em 1946, ele foi o inventor do suplemento literário da Folha do Norte, de Belém, um importante jornal que não existe mais, com o qual colaboraram não apenas escritores da região, mas também poetas como Bandeira, Cecília e Drummond. O suplemento durou até meados de 1951, mas, antes disso, surgiu um outro, igualmente importante, editado semanalmente pelo jornal A Província do Pará. Foi nesse caderno que Mário Faustino começou sua carreira de escritor, publicando crônicas no estilo de Rubem Braga.
Caderno 2 - Quais são outros nomes injustamente esquecidos?
Nunes - Penso, por exemplo, em Dalcídio Jurandir, que começou ainda nos anos 40 com um romance chamado Chove nos Campos de Cachoeiro e não parou mais de escrever. Cachoeiro é uma cidade da Ilha do Maranhão, onde Dalcídio nasceu. De lá para cá, seus romances formam um imenso ciclo amazônico que guarda, no entanto, considerável distância das experiências regionalistas. São ficções que apresentam uma interiorização muito grande, cada vez mais densa; são, na verdade, as aventuras de uma experiência interior. Chego a pensar que o conjunto desses romances forma uma espécie de À La Recherche... escrita na Amazônica e que Dalcídio é, um pouco, o nosso Proust. Pois veja o paradoxo: ele sempre foi um escritor publicado no Sul, pela Martins, e só agora está sendo republicado lentamente em Belém, pela Cejup,uma pequena editora que se originou do Centro de Estudos Jurídicos da Universidade do Pará.
Caderno 2 - No Sul e no Sudeste falamos em literatura do Amazonas e pensamos imediatamente em Márcio Souza e seu Galvez, o Imperador do Acre. O que o senhor pensa desse livro?
Nunes - Você fala em Márcio Souza e eu penso em Benedito Monteiro, outro escritor paraense bastante esquecido, autor de dois livros, em particular, de que gosto muito: Verde Vago Mundo e O Minossauro. Ambos são escritores que fazem uma elaboração muito importante das experiências lingüísticas da Amazônia, da diversidade de línguas e perspectivas. São exemplos enfáticos de uma literatura não-regionalista, embora feita com matéria-prima da região. Não faz mais sentido pensar, hoje, em literatura regionalista. O regionalismo tem data certa: nasceu romântico, foi batizado pelo naturalismo e foi crismado em 30, pelos modernistas. Depois, se tornou crônico e, por fim, anacrônico. Os dois golpes de morte<

Nordeste se reencontra com Ascenso Ferreira

Obras do mais importante poeta modernista da região são relançadas pela Nordestal Editora.
O Nordeste se reencontra com seu maior poeta modernista. "Feliz de quem achou sua maneira de expressão", escreveu certa vez Tristan Tzara, um dos pilotos da vanguarda literária européia na primeira metade do século. A frase cabe como uma luva em Ascenso Ferreira, que Luís da Câmara Cascudo descreveu, na primeira vez que o encontrou, ainda no pátio da Faculdade de Direito do Recife, como um homem "que olha a vida do alto de um metro e noventa e pisa com cem quilos as ruas velhas do Recife".
Mas a descoberta da identidade, muitas vezes, tem um duro preço. Nascido em 1895 em Palmares, interior de Pernambuco, Ascenso - sempre encoberto por seu infalível chapelão - morreu quatro dias antes de completar 70 anos, em 1965, e sua obra se perdeu, a partir daí, no mais terrível silêncio, que mais parecia uma maldição. Seus únicos três livros de poemas - Catimbó, de 1927, Cana Caiana, de 1939, e Xenhenhém, de 1951 - tiveram sua edição comercial mais recente em 1963, sob o selo da José Olympio. Dezoito anos depois, graças à teimosia do crítico e poeta pernambucano Juhareiz Correya, eles foram republicados em primorosa, mas restrita, edição artesanal.
Nos últimos dias de 1995, por fim, 32 anos depois da edição comercial mais recente, os poemas de Ascenso Ferreira foram finalmente relançados em cuidadoso trabalho da Nordestal Editora, dirigida pelo mesmo Correya, em co-edição com a Fundação de Arte de Pernambuco - Fundarte, presidida pelo romancista Raimundo Carrero. Rompe-se, assim, uma tela de mutismo e inoperância que, por anos a fio, cercou a obra do poeta.
Descaso
- O falso argumento, exibido durante todo esse tempo por desmemoriados e preguiçosos, era o de que a família de Ascenso Ferreira proibia a republicação de sua obra. Juhareiz Correya chegou a publicar no Jornal da Cidade, do Recife, no início dos anos 80, um irado artigo em que acusava a família do poeta de amordaçá-lo depois de morto. O próprio Correya ouviu da viúva, alguns dias depois, o mais enfático desmentido. Houve apenas descaso e desprezo.
A nova edição dos poemas modernistas de Ascenso Ferreira, que chegou em janeiro às livrarias do Nordeste em um só volume, reproduz ilustrações de Carybé, Cícero Dias, Joaquim Cardozo e Luís Jardim, entre outros, e é aberta com belos textos introdutórios, que já se tornaram clássicos do gênero, assinados por Manuel Bandeira e Sérgio Milliet. Catimbó, o primeiro dos três livros, é prefaciado por Ritmo Novo, um pequeno ensaio de Mário de Andrade. "Nesse livro, ele eleva ao máximo possível a tendência rapsódica da poesia brasileira", Mário escreve. Cana Caiana tem um texto de apresentação assinado por Luís da Câmara Cascudo. "Ninguém o imitará, mas Ascenso criou, como ninguém fez, sua maneira", escreve Cascudo. Xenhénhém é apresentado por um artigo assinado por Roger Bastide, para quem "aliando a intuição à ciência, Ascenso realizou algo muito difícil: a poesia popular".
Toda essa pompa é mais do que justa. Ascenso Ferreira é, afinal, o mais expressivo nome do movimento modernista no Nordeste. Nem o esquecimento, nem a fama injusta de folclórico e exótico, embaçam o brilho de seus versos. Ascenso se chamava, na verdade, Aníbal Torres. Era magro, desengonçado e escrevia sonetos decadentes que reuniu em um pequeno livro, Eu Voltarei ao Sol da Primavera, obra que merece ser sumariamente esquecida. Seu primeiro soneto, Flor Fenecida, foi publicado em A Notícia, em 1911. Perdeu o pai aos 7 anos, em acidente brutal, ferida de que jamais se recuperou por completo. Aos 13, já trabalhava no comércio e escrevia seus primeiros sonetos, baladas e madrigais, na pior tradição parnasiana. Em 1917, aos 22 anos, em ruptura radical, o poeta muda o nome de registro para Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira, com que se insere em uma linhagem eminentemente matriarcal. Com o Ascenso, ele repete o nome do avô materno, com o Ferreira reverencia o sobrenome da mãe. Engorda, passa dos 100 quilos, ml distribuídos nos 1,89 metro de altura. Sua marca, a partir daí, é o vozeirão forte, mas encantador. Torna-se uma espécie de ator em tempo integral, camuflado pelo nome falso e pelo imenso chapéu de palha, uma espécie nordestina de bufão.
No ano-símbolo de 1922, Ascenso se torna amigo de Joaquim Cardozo, Gilberto Freire e Luís da Câmara Cascudo. A princípio, apesar das amizades, o poeta é uma das vozes a se erguer contra o modernismo de 1922, que chega ao Nordeste pelas mãos de Joaquim Inojosa. Mas logo se aproxima da Revista do Norte, porta-voz dos modernistas na região, e em 1926, publica seu primeiro poema modernista, Lusco Fusco, que, no primeiro livro da nova fase, Catimbó, datado de 1927, aparece com o título de Boca da Noite. No ano seguinte, reforçando os laços modernistas, Ascenso se torna amigo de Mário de Andrade. Em 1929, faz sua primeira viagem ao sul do País e realiza um recital consagrador no Teatro dos Brinquedos, em São Paulo. Intelectuais influentes como Cassiano Ricardo, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade se aproximam, então, do poeta.
Em 1945, Ascenso abandona a mulher, com quem se casara em 1921, para viver em companhia de uma adolescente, Maria de Lurdes Medeiros, abrindo um novo divisor de águas em sua vida. A essa altura, ele já é um fenômeno de cuja presença todos desejam privar. Em 1951, o poeta faz sua quarta viagem ao Sudeste para o lançamento de seus poemas reunidos em edição de luxo. Em 1955, quando participa ativamente da campanha de Juscelino Kubitschek para a presidência da República, a dupla identidade de Ascenso Ferreira já está inteiramente à mostra. Apesar da experiência modernista e de toda a consagração que mereceu, ele ainda é visto, essencialmente, como um "poeta foclórico", pecha preconceituosa de que jamais se livrará.
Colorido
- Ascenso Ferreira é um rapsodo de perfil clássico, uma cópia solar e primitiva dos cantadores ambulantes que perambulavam pela Grécia antiga. O folclore é, a rigor, coisa bem diferente. Seus poemas ganham colorido e ritmo especiais quando lidos, em particular por ele mesmo, tanto que chegou a gravá-los em disco. Ascenso foi, de fato, o primeiro poeta brasileiro a registrar, de própria voz, seus versos.
Manuel Bandeira, em análise precisa, escreveu certa vez: "Quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas." São poemas sobre os mangues, o massapê e a caatinga, destilados no ritmo dos reisados, dos maracatus e das vaquejadas. Apesar da presença impregnada do mundo nordestino, não se pode incorrer no erro de classificar Ascenso Ferreira como um poeta regionalista. "Ele não fez reportagens de fatos étnicos, nem lambiscou o exotismo dos costumes bárbaros do Brasil", escreveu Sérgio Milliet, em momento de absoluta lucidez.
Também Manuel Bandeira soube detectar, com precisão, essa ponte que Ascenso ergueu entre o natural e o artificial. "Costuma se falar de verso metrificado e verso livre, como se algum abismo os separasse", escreveu Bandeira. "Ascenso é o melhor exemplo com que se possa provar que não existe tal abismo." É de Bandeira, ainda, a sentença: "Ascenso continuou a ser deliciosamente provinciano, sem nenhum ranço regionalista." É bom recordar, aqui, de Roger astide quando esse diz, em ensaio sobre a obra de Ascenso, que a poesia popular, enquanto expressão estética do povo, a rigor não existe. "O povo não faz poesia popular, ou faz uma cópia má da poesia dos burgueses", escreve. Ascenso é uma prova disso.
Paradoxo
- Há, apesar de tudo, muito paradoxo nessa admiração. A afeição que Manuel Bandeira e Mário de Andrade nutriram por Ascenso Ferreira esteve quase sempre pontuada por um tipo disfarçado - e envergonhado - de desprezo. Essa atitude ambígua que o sul civilizado nutriu em relação ao grande rapsodo nordestino de

Flora Süssekind analisa críticos e autores

Para ela, as avaliações da produção cultural carecem de perspectiva histórica.
Nem tudo está perdido na crítica literária brasileira. Quem desejar um pouco de esperança deve ler, logo, os vigorosos ensaios da carioca Flora Süssekind, uma das mais brilhantes críticasde literatura da nova geração. Flora é uma intelectual incansável. No ano passado, publicou pela editora Sette Letras o ensaio Até Segunda Ordem Não Me Risque Nada, sobre os cadernos, os rascunhos e a poesia de Ana Cristina César.
Trabalhou também, com o rigor de sempre, na preparação da reedição das Memórias do Sobrinho de Meu Tio, de Joaquim Manuel de Macedo, editada pela Companhia das Letras, que faz parte de um amplo projeto de pesquisa sobre a época romântica brasileira. Flora retornou, também, à militância literária na imprensa, ao se tornar comentarista de livros do suplemento Idéias, do Jornal do Brasil. Concluiu, por fim, um livro de ensaios sobre o romantismo brasileiro, que tem o título provisório de Cenas de Fundação e, ainda sem editora definida, pretende publicá-lo ao longo deste ano.
as a agenda de Flora já está cheia até o final de 1996. Para começar, seu ensaio O Cinematógrafo de Letras, publicado em 1987 pela Companhia das Letras, está sendo traduzido para o inglês e tem edição programada para este ano pela Universidade de Stanford, EUA. Em abril, ela deve ser uma das conferencistas, em solenidade na Universidade de Berkeley, na alifórnia, de uma importante homenagem ao professor e crítico paulista Antonio Candido.
Como pesquisadora contratada do setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, Flora Süssekind está preparando, em parceria com Júlio Castañon Guimarães, a reedição dos Romances da Semana, do mesmo Macedo. Flora é, apesar de prestígio intelectual precoce e da vida acadêmica agitada, uma mulher serena e tímida, que seleciona os amigos com muito rigor e odeia o excesso de exposição. "Gosto mesmo é daquela mesa no setor de filologia na Casa de Rui, do chá de jasmim com o Júlio, de ler todos os jornais possíveis, para falar mal ou bem com três ou quatro pessoas", diz. "Não preciso de muito mais que isso."
Flora Süssekind é uma pesquisadora de posições sempre substantivas, baseadas em amplo lastro cultural e em uma preocupação extrema com o rigor. Por isso vale sempre a pena ouvi-la. Nessa entrevista, ela nos fala do jornalismo cultural brasileiro, da produção literária contemporânea e sobre o destino de nossa crítica, que ela representa com tanto vigor.
Estado - Que avaliação você faz do jornalismo cultural brasileiro de hoje?
Flora Süssekind - Não só nas seções dedicadas a livros e espetáculos, mas nos jornais brasileiros como um todo, o gênero dominante hoje é a coluna social. É um gênero modelar em todas as áreas, diferenciando-se apenas os personagens e os temas enfocados. Essa situação vem se anunciando desde o período militar, quando as colunas ganharam força como lugares em que se plantavam, anonimamente, notas e em que "informantes", como os de polícia, se tornaram muitas vezes mais importantes que os repórteres. Não é à toa que, nos anos 70, essas seções serviram, muitas vezes, de porta-vozes oficiosos para os meios militares. Sua popularização se associa, também, a uma preocupante ligação da atividade jornalística ao marketing e a um evidente empobrecimento cultural das classes médias, um público consumidor, mas não leitor, porque é incapaz de se concentrar em textos mais longos ou mais analíticos. A diagramação, por vezes, até mesmo transforma os segundos cadernos em simples extensões das colunas sociais, em geral asmesmas de jornal para jornal, e com fotos apenas ilustrativas. O mais grave é que só o que parece passível de venda imediata, de marketing, se torna noticiável. A cultura é vista como objeto de divulgação, não de reflexão. Daí não ser de estranhar a rarefação, talvez mesmo a impossibilidade, de algo sequer próximo da crítica cultural.
Estado - E o que se entende aí por cultura?
Flora - Os melhores suplementos culturais da imprensa brasileira - o Suplemento Dominical, do Jornal do Brasil, o Cultura, do Estado, nos anos 50, e o Folhetim, da Folha de S. Paulo, na virada dos anos 70 - tinham uma visão globalizante da produção cultural, procuravam colocar em relação articulistas de áreas diferentes e atividades culturais diversas. Isso é o contrário do que se vê hoje, com um dia para os discos, outro para o cinema, outro para livros, cada coisa numa prateleira própria, intransitiva. Outro dado curioso é que só o que está para ser lançado ou em cartaz pode ser tematizado. Ou então, o que acaba de morrer, fazer cem anos, ou coisa assim. Não se enxerga sequer o passado recente. Daí ser impossível comparar, detectar tendências ou reviravoltas. Tudo é ou boom ou crise. Sem perspectiva histórica não se consegue enxergar o que realmente singulariza o presente. Nesse sentido, seria fundamental reler uma seção como a Poesia Experiência, do Mário Faustino, nos anos 50. Com seu interesse simultneo em reavaliar a tradição literária e comprender a contemporaneidade, em meio a uma diagramação fantástica, fragmentária, sem hierarquizações na página, multiplicando a perspectiva de leitura.
Estado - Por que os críticos literários brasileiros, hoje, evitam um confronto direto com a produção contemporânea? Não são eles, em certa medida, responsáveis pela crise do jornalismo literário e pela separação entre crítica e leitor?
Flora - É, de fato, dificílima a análise do que nos é contemporâneo. Somos todos, artistas e críticos, parte de um mesmo período de tempo, convivemos com as tensões que o compõem e respondemos a elas sem que se possa prever o que resultará dessas respostas. Um grande crítico, no entanto, se define pela capacidade de compreensão do seu tempo. Lembre-se, nesse sentido, a avaliação do surrealismo, ou do trabalho de Brecht, por Walter Benjamin. Lembre-se a importância da leitura de Antonio Candido de seus contemporâneos João Cabral, Graciliano Ramos ou do memorialismo de Pedro Nava. Ou a crítica, via carta, da poesia de Drummond por Mário de Andrade. Ou a compreensão, de cara, por Augusto de Campos, da importância de Caetano Veloso, ou por Haroldo de Campos, do trabalho de Gerald Thomas.
Estado - O refúgio na universidade não significa uma opção pela torre de marfim? Por que a dificuldade da crítica em assinar avaliações objetivas, dizer com clareza "isso é bom", ou "não é bom"?
Flora - Às vezes o diálogo com o contemporâneo não é assim tão direto. E é por meio da análise de um outro período que se fala do próprio tempo. Um pouco como fez Paulo Leminski em Catatau, ao tratar do exílio interno por meio da figura de Descartes perdido no Brasil holandês, ou Silviano Santiago no romance Em Liberdade, tematizando Cláudio Manuel da Costa e Graciliano Ramos, mas também, indiretamente, o Brasil do período da distensão política. Ou, pensando em termos de crítica literária, quando Antonio Candido escreveu sobre Sílvio Romero, por exemplo, estava também redefinindo, para sua geração, o exercício da crítica literária. Quando Luís Costa Lima estuda a "mimesis", parece repensar igualmente os critérios de avaliação estética numa cultura dependente como a latino-americana. Quando Roberto Schwarz estuda o século 19, também procura dialogar com a prosa brasileira atual e direcioná-la para um realismo crítico como o que define no final do seu segundo livro sobre Machado de Assis. Silviano Santiago, uando estuda Mário de Andrade, parece procurar definir também o próprio perfil intelectual. E Walnice Nogueira Galvão, em No Calor da Hora, empreende não só um estudo sobre Canudos, mas uma genealogia da notícia, das exclusões, do processo contraditório de construção de um acontecimento, fundamental para a discussão da escrita histórica no Brasil.
Estado - O que define a literatura brasileira dos anos 90?
Flora - Um aspecto que me parece marcar a literatura bra

Manoel de Barros busca o sentido da vida

Poeta diz ter solidão, mas acha que é opulência da alma e a traz, em sua obra, como amargor e sol
Manoel de Barros ficou perto de cinco meses com um longo questionário que lhe enviei pouco antes do carnaval deste ano. "Vou responder devagar e do meu jeito", ele me advertiu na época. Aceitei suas condições. Não imaginei, porém, que necessitasse de tanto tempo. Barros seguiu, em parte, as instruções de seus novos editores, da Record, que preferiam ver uma grande entrevista publicada no Estado apenas na época do lançamento do Livro sobre Nada. Mas não foi só essa preferência que o fez deixar o questionário de lado por um período tão longo. O poeta é um homem de hábitos lentos, que gosta de meditar muito antes de agir e não está acostumado a trair seu temperamento interiorano. Finalmente, no dia 12, ele despachou de Campo Grande, pelo correio, suas respostas a algumas perguntas que formulei. Assim começa um breve bilhete anexo: "Aí está o que pude; peço desculpas pela demora." Manoel de Barros respondeu por escrito, em organizadas folhas brancas do tipo ofício, datilografadas com esmero. Corrigiu os erros com a esferográfica, numerou metodicamente as questões e grampeou as páginas.
É um homem, sempre, cheio de cuidados. Antes de aceitar o convite da editora Record para se transferir - "proposta irrecusável por todos os motivos, até mesmo os financeiros", limita-se a dizer -, o poeta consultou José Elias Salomão, o proprietário da Civilização Brasileira. "Falei com ele e tudo bem; ficamos em paz todos", relata. A morte recente do editor Ênio Silveira, por certo, influenciou nessa decisão. Manoel de Barros se sentia tão ligado a Ênio que, enqunto ele estava vivo e mesmo com as condições precárias que a editora Civilização Brasileira atravessou na última década, não ousou mudar de casa. Os laços de amizade e a fidelidade pesaram mais que os interesses pessoais. Cada um de seus últimos livros editados por Ênio Silveira, mal ou bem (e, considerando que são livros de poemas, esses números são ótimos) vendeu, de todo modo, perto de 10 mil exemplares. "Acho que, na Record, esse número deve crescer por causa da estrutura de marketing da editora", diz. Apesar desse otimismo, Manoel de Barros continua a ser um homem basicamente melancólico e pessimista. "Acho que no futuro o homem vai pedir pelo amor de Deus para conhecer uma árvore, um passarinho, um cavalo", diz. "Tenho medo que a ciência acabe com os cavalos, com a luz natural, com as fontes do ser." A seguir, as questões que ele decidiu responder.
Estado - Em que medida Mato Grosso do Sul está presente em sua poesia? Qual é sua relação com o regionalismo?
Manoel de Barros - Há sempre um lastro de ancestralidades que nos situa no espaço. Mas não importa muito onde o artista tenha nascido. O que marca um estilo literário é a maneira de mexer com as palavras. Poesia é um fenômeno de linguagem. De minha parte, confesso que fujo do regionalismo que não dê em arte, que só quer fazer registro. Não gosto de descrever lugares, bichos, coisas da natureza. Gosto de inventar. Quem descreve não é dono do assunto; quem inventa é. Não tenho compromisso com as verdades consagradas. O que desejo é me constar por meio de um trabalho estético. Se de tudo resultar um cheiro de coisa do chão, é bom. Pode até ser que seja regionalismo. Porém, há de ser mais transfigurismo pela palavra.
Estado - Você se sente isolado em Campo Grande?
Barros - Isolado não me sinto, juro. Às vezes me isolo, me tranco na minha toca para escrever, para ler, para imaginar. Parece que, no fechado, o imaginário se solta melhor. O que sinto mesmo é incompletude: essa falta de explicação para o sentido da vida. O que tenho é solidão. Mas solidão é opulência da alma. Tudo isso parece que destila amargor e sol na minha poesia.
Estado - As viagens marcaram sua poesia? Penso em um poeta como Vinícius de Moraes que, em cada cidade que viveu, parece ter sido um homem diferente.
Barros - Alguns anos da minha vida ambulei por lugares decadentes. Havia um certo fascínio em mim por cidades mortas, casas abandonadas, vestígios de civilizações. Um fascínio por ruínas habitadas por sapos e borboletas. Eu gostava de ver alguma germinação da inércia sobre ervinhas doentes, paredes leprentas, coissa desprezadas. As fontes de minha poesia, estou certo, vêm de errâncias desurbanas. Agora, o caso do Vinícius é outro. Ele é um poeta inumerável. Ele vem das grandes paixões, das grandes complexidades, das perplexidades humanas. Ele era 300, ele era 350, como diria o nosso Mário de Andrade. Manoel de Barros só é um bugre perturbado.
Estado - Existe essa entidade chamada poesia brasileira ou existem apenas poetas nascidos no Brasil?
Barros - Penso que existe sim uma poesia brasileira. Uma poesia que expresa a nossa alma e o nosso quintal. Porém, a linguagem, o tratamento que o poeta imprima à sua matéria pode fazer dele um poeta universal. Assim, as nossas particularidades podem ser universais por meio das palavras. Temos poetas do mundo nascidos no Brasil.
Estado - Como foi sua relação com o editor Ênio Silveira, recém- falecido?
Barros - Do Ênio fui amigo e companheiro desde o primeiro dia que conversamos. Uma das criaturas mais puras, mais honestas, mais idealistas que conheci. Um ser de escol - como se diz. Trocamos cartas por muitos anos. Trocamos amizades. Mandava a ele os meus originais e ficava quieto, esperando. De repente, me mandava as provas. Fazia questão de escrever as orelhas. Tenho cinco livros lançados por ele.
Estado - Como é hoje sua rotina de poeta?
Barros - Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo "lugar de ser inútil". Exploro há 60 anos esses mistéros. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro século para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler Vozes da Origem. Gosto de coissa que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem." Está no livro Vozes da Origem, da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento.
Estado - Seu último livro publicado se chama O livro das Ignorãças (Civilização Brasileira, 1983). A citação de abertura é eloqüente: "As coisas que não existem são mais bonitas." Qual é o papel da ignorância na atividade poética?
Barros - Gosto de ver o que não aparece. Um que não era o adivinha de Tebas, o Tirésias, um que era apenas o Pote-Cru, andejo de beira de rios, criado em grotas de preá, me disse um dia: "Eu tenho vaticínios de lugares." Pote-Cru, ele tinha percepções sensoriais largas, como os adivinhos, os videntes, os bruxos, os urgos, os demiurgos, os curandeiros, os magos. Essa gente toda usa muito a ignorância para nos conhecer. Como é que eles podem dizer: "Vi a tarde se encolher no olho de um pássaro?" Entretanto, se encolhe! Como é que eles podem dizer: "Os carrapichos não pregam no vento." E, entretanto, não pregam. Essas descobertas vêm da ignorância.
Estado - Você vive em uma região brasileira em que a natureza, mal ou bem, ainda resiste. Há futuro para a natureza?
Barros - No grande futuro, não sei o que seja, acho que o homem vai pedir pelo amor de Deus para conhecer uma árvore, um passarinho, um cavalo. Tenho medo que a ciência acabe com os cavalos, com a luz natural, com as fontes do ser. Aquela liberdade que o homem tem de se sentir livre para o silêncio das árvores não vai ter mais. O idioma não vai servir mais para celebrar. O ser não vai mais comungar com as coisas. A imaginação não vai mais desabrochar, porque os nossos desejos e fantasias serão realizados. O mundo vai ter outro cheiro. Salvo não seja.

Bruno Tolentino faz versos contra a hipocrisia

O poeta que acaba de ganhar o Prêmio Cruz e Souza lança mais dois livros, um deles em SP
Opoeta Bruno Tolentino acaba de ser contemplado com o Prêmio Cruz e Souza, conferido pela Secretaria de Cultura de Santa Catarina. A premiação vem no momento em que o escritor se prepara para o lançamento de dois livros: Os Deuses de Hoje (editora Record), reunião de 30 anos de poesia política, e Os Sapos de Ontem (editora Diadorim), dossiê de uma polêmica com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos (leia texto ao lado), somado a uma coletânea de poemas satíricos.
Os Sapos de Ontem terá sessão de autógrafos em São Paulo hoje, a partir das 18 horas, no Espaço Átrio República (Rua Marquês de Itu, 64, 258-3823). Os Deuses de Hoje será lançado no Rio, na segunda-feira, às 20 horas, na Livraria do Museu da República, no Palácio do Catete.
O livro premiado com o Cruz e Souza é o inédito Balada do Cárcere de Dartmoor. Tolentino o escreveu entre 1985 e 1987, período em que cumpriu pena na sinistra prisão inglesa construída no século 18, sob a acusação de consumir cocaína. A prisão não passou de um artifício usado pela polícia inglesa, que pretendeu, sem sucesso, levar o poeta a confessar alguns dos nomes dos grandes chefões do tráfico de drogas na Inglaterra.
O livro é um acerto de contas com esse período que, apesar de todo o mal-entendido e o imenso sofrimento que causou, Tolentino classifica como "muito rico". "Sempre que relato as condições nas quais escrevi esse poema, tenho de ouvir do repórter o comentário: `Não se preocupe, porque não vou publicar", diz, indignado. O poeta prossegue: "As pessoas fazem uma espécie de restrição mental ao episódio, porque partem da premissa falsa de que, se você é poeta, você é impecável."
Silêncio intelectual
- Bruno Tolentino se diz cansado da hipocrisia com que o episódio de sua prisão é silenciado no meio intelectual brasileiro. Há uma semana, ao receber a informação de que fora escolhido como o vencedor do Cruz e Souza, teve de ouvir a ressalva: "Mas, não se preocupe: sobre a sua prisão, não falaremos nada."
A narração do poema é atribuída ao detento 212, um certo Ambrose, na verdade o mais interessante dos muitos presos que Tolentino alfabetizou durante sua temporada atrás das grades. Acusado do assassinato da mulher e cumprindo pena por mais de uma década, Ambrose, mais tarde, dedicou-se a estudar o próprio caso e hoje, já em regime de prisão aberta, transformou-se em um respeitado psicólogo.
Tolentino pretende publicar Balada do Cárcere de Dartmoor em 1996. Antes disso, quer acrescentar ao vasto poema uma série de documentos sobre o processo que o levou à prisão e ainda escrever um relato mais factual sobre o homem que inspirou seu personagem Ambrose.
O poeta também é autor de As Horas de Katharina, editado no ano passado pela Companhia das Letras e que recebeu este ano o Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Depois de viver mais de 20 anos na Europa, entre Itália, França e Inglaterra, onde se tornou amigo de escritores como Giuseppe Ungaretti, W. H. Auden e Samuel Beckett, Tolentino retornou ao Brasil temporariamente em 1985, com o projeto de lançar uma coletânea de poemas brasileiros, que se chamaria A Terra Provisória.
No período em que esteve na Europa, escreveu seus poemas em inglês e francês e eles lhe renderam dois livros: Le Vrai le Vain, publicado em Paris, e About the Hunt, editado em Londres, além de elogios entusiasmados de personalidades como Jean Starobinsky e Yves Bonnefoy. O poeta acabou voltando para a Europa e o projeto de A Terra Provisória não se realizou.
Ao retornar de vez ao Brasil, em 1993, os amigos o presentearam com um livro organizado a partir dos muitos poemas escritos em português que o poeta lhes enviou por carta, ao longo da temporada européia. Eles compõem, agora, O Baile Negro, primeira parte de Os Deuses de Hoje.
Entre eles se destaca o poema-título, na verdade o grande lamento de Tolentino pelo golpe militar de 1964. O baile, no caso é uma metáfora da tortura. Nessa primeira parte, pode ser encontrado também o magnífico A Garça e o Equilibrista, longa meditação sobre a existência humana, escrita depois do retorno de Tolentino à fé cristã. A segunda parte, Torres e Deuses, tem como centro a figura de Alberto Torres, que assina uma das epígrafes: "Este estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos." Torres e Deuses reúne poemas que tratam dos temas da identidade, da nacionalidade e do exílio.
A terceira e última seção, Na Terra Provisória, traz um poema eminentemente confessional como A Torre Cabocla. "Eu, o poeta Bruno Tolentino/ porque nunca me dei com tiranos/ nem com títeres, vivi ao léu,/ perambulei anos e anos/ em território alheio...", começa. Nesse exílio, Tolentino foi em busca de suas referências, como William B. Yeats e Rainer Maria Rilke. "Reconheço o que fiz/ como mais ou menos feliz,/ mas fui feliz fazendo-o, o que basta/ a pedreiros da minha casta." Os Deuses de Hoje tem homenagens acaloradas a Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e José Guilherme Merquior. "Fernando Pessoa/ dizia que fora/ como a erva daninha/ que não arrancaram;/ a mim me podaram/ bem cedo, e a tesoura", escreve na bela Cantilena do Eco. E, pouco depois, prossegue: "Manuel Bandeira/ uma vez me disse/ que não desistisse/ de ouvir o silêncio,/ professor de estilo."
Compromisso
- Nesses versos, tomados entre os melhores, estão dois dos principais temas de Tolentino: a castração e a meditação. Os Deuses de Hoje reúne, na verdade, os poemas políticos que Tolentino escreveu ao longo de 30 anos. No livro, Bruno Tolentino escreve como um poeta histórico, enraizado em seu tempo e comprometido irremediavelmente com o presente e sua cauda de circunstâncias. Seu modelo é William B. Yeats. "É meu único livro em que, de verdade, falo de mim, sou sempre Eu que estou presente."
Estão nesse livro quase todos os poemas que, ao longo de 30 anos, Tolentino produziu na esfera do Eu. O premiado As Horas de Katharina, ao contrário, reúne versos escritos sob a premência do pensamento e da abstração. Os poemas de fundo mais filosófico que Tolentino escreveu ao longo da mesma época aparecerão em As Epifanias, livro no qual as relações de amizade com Giuseppe Ungaretti e Saint John Perse estarão mais nítidas e que já tem mais de 8 mil versos prontos.
Em 1992, Tolentino mostrou um esboço das Epifanias a Antônio Cândido, que desaconselhou a publicação do livro: "Publicar esse livro agora, no Brasil, é como tentar aterrissar um Boeing em um campo de futebol", argumentou o escritor. Apesar da ressalva do mestre, Bruno Tolentino considera que As Epifanias será seu livro-súmula. Trabalha ainda em O Mundo Como Idéia, coletânea em que reúne os poemas mais radicalmente filosóficos, poesia sobre a poesia, sobre os temas transcendentais e sobre a morte. "Será um livro sobre o perigo das ideologias", o poeta define.

(in O Estado de São Paulo, caderno 2)

Depois da inútil excitação

Não quero polemizar com Caetano Veloso. Não tenho cacife para isso e, além do mais, correria o risco de ferir a mim mesmo. Desde muito cedo, Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa ocupam postos de honra em minha mitologia pessoal. Não é confortável polemizar com mitos. Gil é zen, Gal é doce e silenciosa, sobra Caetano que, de vez em quando, gosta de dar um bote.
Algo me diz que Caetano Veloso é o mais importante poeta brasileiro desse fim de século. É que ainda não temos clareza para ver. Mas o crítico literário Wilson Martins não merece as palavras desastradas que Caetano, em entrevistas recentes, lhe destinou. Não sou amigo de Wilson Martins, com quem estive uma única vez em um encontro profissional. Ele me pareceu um homem tímido, que fala baixo e raramente sorri, e que desarma na origem qualquer tentativa de envolvimento. Sinto- me, portanto, livre para escrever.
Wilson Martins leu e não gostou de Estorvo, o romance de Chico Buarque. Coerente, escreveu a respeito e exibiu sua coleção de argumentos. Caetano leu a crítica de Wilson Martins e não gostou do que leu. Até aqui, nada demais: ambos exerceram seus direitos de ler e de não gostar. É assim que as idéias circulam e se alimentam.
Não li Estorvo. Não li também, a célebre História da Inteligência Brasileira, de Wilson Martins. Tenho a esperança tola de que minhas carências literárias se transformem, agora, em uma vantagem. Outro dia, ouvi Mauro Rasi dizer que já passou da época em que se sentia obrigado a "ler" tudo. Foi a partir daí que pôde escutar melhor a própria voz - e escrever peças formidáveis como Pérola. Enquanto puder ouvir minha voz com mitidez já estarei bem contente.
Sou, como quase todo mundo, um admirador de Chico Buarque. Leio, e quase sempre gosto das colunas literárias que Wilson Martins assina na imprensa. Continuo a admirar ambos, apesar de Wilson não ter gostado do romance de Chico. Bem, eu sou um homem comum e isso me resguarda, posso ter a chance de não me envolver no que não é meu.
Já gostei de polêmicas, que me pareciam exercícios esplêndidos para dinamizar o mundo, mas de uns tempos para cá elas passaram a me desinteressar. Agora, quando me defronto com uma controvérsia pública, prefiro me apegar a uma sentença escrita, certa vez, por Hélio Pellegrino. Enfiado à força em uma polêmica entre Eduardo Mascarenhas e José Guilherme Merchior a respeito da validade científica da psicanálise, e decidido a não se envolver, Hélio escreveu no Jornal do Brasil um célebre artigo cuja força maior estava no título: "Comigo não, violão". Não era preciso uma só linha a mais.
Polêmicas são bichos vorazes, que sugam tudo à sua volta. São máquinas de extorsão intelectual. Se lhes damos ouvidos, nem percebemos e já fomos enfiados em uma posição. Pellegrino entendeu que a grande saída, meio inerte, e que os crédulos podem atribuir ao comodismo, está na independência. Está em desprezar as saídas e dar preferências às portas de entrada.
Reconheço nos polemistas, apesar disso, uma grande fibra. Sempre me espanto quando vejo um homem como Bruno Tolentino a bramir solitário suas idéias contra a vileza reinante. Precisamos, eu acho, de homens ferozes e indignados que agitem a mornidão dos hipócritas. Mas o cntrário da mornidão é o desprezo malévolo. Tolentino, quando polemiza, e apesar de seu estilo impetuoso, ampara-se sempre em sólidos argumentos. Podemos concordar, ou discordar, mas ficamos obrigados a ouvi-lo.
Caetano, que é um poeta ágil e refinado, se deixa tomar às vezes por uma desnecessária ânsia de exposição. Nessas horas, despreza os argumentos e apenas rosna. É isso o mais decepcionante: que alguém tão sábio, tão desperto, precise se amparar no vazio das sentenças categóricas.
Eu me pergunto, no fim das contas, de que servem essas manifestações de ira. Me parece que elas não servem para nada. Temos, por algum tempo, o sentimento reconfortante de uma grande agitação, como se enfim o mundo estivesse andando. Mas, e depois, o que sobra além da inútil excitação?
É uma pena que o principal - um debate em torno da produção literária contemporânea, tendo Estrvo como âncora - nos tenha escapado. Diante das vozes peremptórias, o livro ficou esquecido.
Ainda vou ler Estorvo. Vou continuar também a ouvir as canções irrepreensíveis de Caetano Veloso e a ler as críticas severas de Wilson Martins. Polêmicas não me impressionam mais. A vida não é um duelo de espadas.
Vale, aqui, lembrar de Leila Diniz. Diante da pergunta "do que você se arrepende", ela não vacilou. "Não me arrependo de nada do que fiz. Só me arrependo do que não fiz."

(in O Estado de São Paulo, Caderno 2, 20.05.96)

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