Pablo Neruda

Pablo Neruda

Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.

1904-07-12 Parral, Chile
1973-09-23 Santiago, Chile
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Canto VIII - A terra se chama Juan

I
Cristóbal Miranda
(“palero”, Tocopilla)

Te conheci, Cristóbal, nas lanchas
da baía, quando desce
o salitre, para o mar, na queimante
vestimenta de um dia de novembro.

Relembro aquele garbo extático,
os cerros de metal, a água quieta.

E só o homem das lanchas, úmido
de suor, removendo neve.

Neve dos nitratos, derramada
sobre os ombros da dor, caindo
na barriga cega das naves.

Ali, sapadores, heróis de uma aurora
carcomida por ácidos, sujeita
aos destinos da morte, firmes,
recebendo o nitrato caudaloso.

Cristóbal, esta lembrança para ti.

Para os camaradas da sapa,
em cujos peitos entra o ácido
e as emanações assassinas,
inchando como águias machucadas
os corações, até que tomba o homem,
até que role o homem pelas ruas,
para as cruzes quebradas do pampa.

Bem, não digamos mais nada, Cristóbal, agora
este papel que te recorda, a todos,
aos lancheiros da baía, ao homem
enegrecido dos barcos, meus olhos
seguem com vocês nesta jornada
e minha alma é uma pá que se ergue
carregando e descarregando sangue e neve,
junto de vocês, vida do deserto.




II
Jesús Gutiérrez
(“agrarista”)

Em Monterrey morreu meu pai
Genovevo Gutiérrez, se foi
com Zapata.
De noite os cavalos
perto de casa, a fumaça
dos federais, os tiros no vento,
o furacão que sai do milho,
levei o fuzil de lado a lado,
desde as terras de Sonora,
dormíamos de vez em quando, medíamos
rios e bosques, a cavalo,
entre mortos, a defender
a terra do pobre, feijões,
omelete, guitarra, rolávamos
até o limite, éramos pó,
os senhores nos faziam madrugar,
até que de cada pedra
nasciam os nossos fuzis.

Aqui está minha casa, minha terra
pequena, o certificado
firmado por meu general
Cárdenas, os perus,
os patinhos na lagoa,
agora já não se luta,
meu pai ficou em Monterrey
e aqui pendurado na parede
junto à porta a cartucheira,
o fuzil pronto, o cavalo pronto,
pela terra, por nosso pão,
amanhã talvez a galope,
se o meu general me aconselha.




III
Luis Cortés
(de Tocopilla)

Camarada, meu nome é Luis Cortés.

Quando veio a repressão, em Tocopilla
me agarraram.
Me atiraram em Pisagua.

Você, camarada, sabe como é isso.

Muitos caíram doentes, outros
enlouqueceram.
É o pior
campo de concentração de González
Videla.
Vi Ángel Veas morrer,
do coração, uma manhã.
Foi horrível
ver Veas morrer nessa areia assassina,
rodeado de cercas de arame, depois de toda
sua vida generosa.
Quando me senti doente
também do coração, me mudaram
para Garitaya.
Você não conhece, camarada.

É lá no alto, na fronteira com a Bolívia.

Um ponto desolado, a 5000 metros de altura.

Há uma água salobre para beber, mais
salobre que a água do mar, e cheia de pulgões
como vermes rosados que pululam.

Faz frio e parece que o céu em cima
da solidão vai cair sobre nós,
sobre meu coração que já mal se agüenta.

Os próprios carabineiros tiveram pena
e contra a ordem de deixar a gente morrer
sem querer nunca mandar uma maca,
me amarraram a uma mula e descemos as montanhas:
26 horas caminhou a mula, e meu corpo
já não resistia, camarada, entre a cordilheira sem caminhos,
e meu coração doente, e aqui estou eu, olhe
os machucados, não sei até quando vou viver,
mas você sente, não quero pedir nada,
conte você, camarada, o que faz ao povo o desgraçado,
a nós que o levamos à altura em que ri
com um riso de hiena em cima de nossas dores,
conte, você, camarada, conte, conte, pouco importa minha morte,
nem os nossos sofrimentos, pois a nossa luta é grande,
mas que fiquem sabendo destes sofrimentos,
que fiquem sabendo, camarada, não se esqueça.




IV
Olegario Sepúlveda
(sapateiro, Talcahuano)

Olegario Sepúlveda é meu nome.

Sou sapateiro, fiquei
coxo desde o grande terremoto.

Sobre o cortiço um pedaço de morro
e o mundo em cima de minha perna.

Lá gritei dois dias,
mas minha boca ficou cheia de terra,
gritei mais mansamente
até que adormeci para morrer.

Foi um grande silêncio o terremoto,
o terror dos morros,
as lavadeiras choravam,
uma montanha de pó
enterrou as palavras.

Aqui está me vendo com esta sola
defronte do mar, o único limpo,
as ondas nem eram pra chegar
azuis na minha porta.

Talcahuano, tuas grades sujas,
teus corredores de pobreza,
nos morros água podre,
madeira quebrada, covas negras
onde o chileno mata e morre.

(Ó dores do fio aberto
da miséria, lepra do mundo,
arrabalde dos mortos, gangrena
acusadora e venenosa!
Haveis vindo do sombrio
Pacífico, à noite, ao porto?
Haveis tocado entre as pústulas
a mão do menino, a rosa
salpicada de sangue e urina?
Haveis erguido os olhos
para os degraus retorcidos?
Haveis visto a mendiga
com um arame na lixeira
tremer, levantar os joelhos
e olhar lá do fundo onde
já não restam lágrimas nem ódio?)
Sou sapateiro em Talcahuano.

Sepúlveda, na frente do dique Grande.

Quando quiser, meu senhor, pobre
nunca fecha a porta.




V Arturo Carrión
(navegante, Iquique)

junho, 1948.
Querida Rosaura, aqui
estou eu, em Iquique, preso, me mande uma camisa
e fumo.
Não sei
até quando vai durar este baile.

Quando embarquei no Glenfoster
pensei em você, escrevi de Cádiz,
ali fuzilaram à vontade, e aí foi mais
triste em Atenas, naquela manhã
no cárcere mataram com tiro
duzentos e setenta e três moços:
o sangue corria até fora do muro,
vimos saírem os oficiais
gregos com os chefes norte-americanos, vinham rindo:
eles gostam do sangue do povo,
mas tinha um espécie de fumo preto
na cidade, estava escondido o choro, a dor, o luto,
comprei pra você uma carteira de cartões de visita, lá
conheci um patrício de Chiloé,
tem um pequeno restaurante, me disse
as coisas andam ruíns, há ódio:
mas ficou melhor na Hungria,
os camponeses têm terra,
distribuem livros, em Nova York
encontrei tua carta, mas todos
se juntam, pau e pau no pobre,
está vendo só, eu, marinheiro velho
e porque sou do sindicato,
já na coberta
me pegaram, me perguntaram
besteiras, me deixaram preso,
polícia em toda parte.

lágrimas também no pampa:
até quando estas coisas
vão continuar, perguntam todos, hoje é um
e outro pau para o pobre,
dizem que em Pisagua há dois mil,
eu pergunto o que está acontecendo no mundo,
mas não se tem direito de perguntar
assim, diz a polícía: não esqueça o fumo, fale com o Rojas
se ele não está preso, não chores,
o mundo já tem lágrimas
demais, outra coisa é que faz falta
e aqui digo até breve pra você, um
abraço e um beijo do esposo amoroso
Arturo Carrión Cornejo, cárcere de Iquiyue.




VI
Abraham Jesús Brito
(poeta popular)

Jesús Brito é seu nome, Jesús Parreira ou povo,
e foi-se fazendo água pelos olhos,
e pelas mãos se foi fazendo raízes.

até que o plantaram de novo onde esteve
antes de ser, antes que brotasse
do território, entre as pedras pobres.


E foi entre mina e marinheiro uma ave
nodosa, um patriarcal seleiro
da cortiça suave da pátria terrível:
quanto mais fria, mais luz a encontrava:
quanto mais duro o solo, mais lua lhe saía:
quanto mais fome, mais cantava.


E todo o mundo ferroviário abria
com sua chave e sua lira sarmentosa,
e pela espuma da pátria caminhava
cheio de pacotinhos estrelados,
ele, a árvore do cobre, ia regando
cada pequeno trevo acontecido,
o espantoso crime, o incêndio,
e o ramo dos rios tutelares.


Sua voz era a dos gritos roucos
perdidos na noite dos raptos,
ele levava sinos torrenciais
recolhidos à noite em seu chapéu,
e recolhia em seu casaco esfarrapado
as transbordantes lágrimas do povo.

Ia pelos ramais arenosos,
pelo espaço afundado do salitre,
pelos ásperos montes litorâneos
construindo o romance prego a prego,
e telha a telha levantando o verso:
deixando nele a mancha das mãos
e as goteiras da ortografia.


Brito, pelas paredes capitais,
entre o rumor dos cafés,
andavas como uma árvore peregrina
procurando terra com os pés profundos,
até que foste te fazendo raízes,
pedra e torrão e mineração escura.


Brito, a tua majestade foi batida
como um tambor de majestoso couro
e era uma monarquia à intempérie
a tua altivez de arvoredo e povo.


Árvore errante, agora as tuas raízes
cantam debaixo da terra, e em silêncio.

Um pouco mais profundo és agora.

Agora tens terra e tens tempo.




VII
Antonino Bernales
(pescador, Colômbia)

No rio Magdalena anda como a lua,
lento pelo planeta de folhas verdes,
uma ave vermelha ulula, zumbe o som
de velhas asas negras, as margens
têm o transcorrer de águas e águas.

Tudo ê o rio, toda vida é rio,
e Antonino Bernales era rio.

Pescador, carpinteiro, voga, agulha
de rede, prego para as tábuas,
martelo e canto, tudo era Antonino
enquanto o Magdalena como a lua lenta
arrastava o caudal das vidas do rio.

Mais alto em Bogotá, chamas, incêndio,
sangue, se diz, não é bem claro,
Gaytán morreu.
Entre as folhas
como um chacal o riso de Laureano
açula as fogueiras, um tremor
de povo como um calafrio
percorre o Magdalena.

É Antonino Bernales o culpado.

Não se mexeu de sua pequena choça.

Passou dormindo aqueles dias.

Mas os advogados o intimam,
Enrique Santos deseja sangue.

Unem-se todos debaixo dos fraques.

Antonino Bernales tombou
assassinado na vingança,
caiu abrindo os braços no rio,
voltou ao rio como à água mãe.

O Magdalena leva ao mar seu corpo
e do mar a outros rios, a outras águas
e a outros mares e a outros pequenos rios
girando em redor da terra.

Outra vez
entra no Magdalena, são as margens
que ele ama, abre os braços de água vermelha,
passa entre sombras, entre luz espessa,
e outra vez segue o seu caminho de água.

Antonino Bernales, ninguém pode
distinguir-te na torrente, eu sim, eu te recordo
e ouço arrastar teu nome que não pode
morrer, e que envolve a terra,
nome apenas, entre os nomes, povo.




VIII
Margarita Naranjo
(Salitreira María Elena, Antofagasta)

Estou morta.
Sou de María Elena.

Vivi a vida toda no pampa.

Demos o sangue para a companhia
norte-americana, meus pais antes, meus irmãos.

Sem greve nenhuma, sem nada, nos cercaram.

Era de noite, veio todo o Exército,
iam de casa em casa acordando a gente,
levando todos para o campo de concentração.

Eu esperava que nós não fôssemos.

Meu marido trabalhou tanto para a companhia,
e para o presidente, foi o mais esforçado,
conseguindo os votos aqui, é tão querido,
ninguém tem nada pra dizer dele, ele luta
por seus ideais, é puro e honrado
como poucos.
Aí chegaram à nossa porta,
mandados pelo Coronel Urízar,
e o pegaram ainda se vestindo e a empurrões
o lançaram no caminhão que partiu na noite,
para Pisagua, para a escuridão.
Então
achei que já não podia mais respirar, parecia
que a terra me faltava debaixo dos pés,
é tanta traição, tanta injustiça,
que me subiu à garganta algo como um soluço
que não me deixou mais viver.
Me trouxeram comida
as companheiras, e eu lhes disse: “Não comerei até que ele volte”.

Três dias depois falaram com o Sr.
Urízar,
que deu grandes gargalhadas, mandaram
telegramas e telegramas que o tirano em Santiago
não respondeu.
E eu fui dormindo e morrendo,
sem comer, apertei os dentes para não receber
nem mesmo sopa ou água.
Não voltou, não voltou,
e pouco a pouco fiquei morta, e me enterraram:
aqui, no cemitério do escritório salitreiro,
havia naquela tarde um vento de areia,
choravam os velhos e as mulheres cantavam
as canções que tantas vezes cantei com elas.

Se eu pudesse, teria espiado para ver se lá estava
Antonio, meu marido, mas não estava, não estava,
não o deixaram vir nem a minha morte: agora
aqui estou morta, no cemitério do pampa
só tenho a solidão ao redor de mim, que já não existo,
que já não existirei sem ele, nunca mais, sem ele.




IX
José Cruz Achachalla
(mineiro, Bolívia)

Sim, senhor, José Cruz Achachalla,
da serra de Granito, no sul de Oruro.

Pois lá deve viver ainda
minha mãe Rosalía:
trabalha para uns senhores,
pois é, lavando roupa.

A gente passava fome, capitão,
e com uma varinha batiam
em minha mãe todos os dias.

Por isso virei mineiro.

Fugi pelas grandes serras,
uma folhinha de coca, senhor,
uns ramos na cabeça
e andar, andar, andar.
Os abutres
me perseguiam lá do céu,
e eu pensava: são melhores
que os senhores brancos de Oruro,
e assim andei até o território
das minas.

Já faz
quarenta anos, eu era então
um menino faminto.
Os mineiros
me receberam.
Fui aprendiz
nas galerias escuras,
unha por unha contra a terra,
apanhei o estanho escondido.

Não sei aonde nem pra quê
saem os lingotes prateados:
vivemos mal, as casas em ruínas,
e a fome, outra vez, senhor,
e quando
a gente se juntava, capitão,
para mais um peso de salário,
o vento vermelho, o pau, o fogo,
a polícia nos batia,
e aqui estou, pois é, capitão,
despedido do serviço,
me diga pra onde eu vou,
ninguém me conhece em Oruro,
estou velho como as pedras,
já não posso cruzar os montes,
que posso fazer por esses caminhos,
aqui mesmo agora eu fico,
podem me enterrar no estanho,
pois só o estanho me conhece.

José Cruz Achachalla, sim,
não continues a bater pernas,
até aqui chegaste, até aqui,
Achachalla, até aqui chegaste.




X
Eufrosino Ramírez
(Casa Verde, Chuquicamata)

Tínhamos de tomar as pranchas quentes
de cobre com as mãos, e entregá-las
à pá mecânica.
Saíam quase ardendo,
pesavam mais que o mundo, íamos extenuados
transportando as lâminas do mineral, às vezes
uma delas caía sobre um pé e o quebrava,
sobre uma mão que virava um coto.

Vieram os gringos e disseram: “Trabalhem
mais depressa e podem ir pra casa”.

A duras penas, pra sair mais cedo,
fizemos o trabalho.
Mas eles voltaram:
“Agora trabalhem menos, ganhem menos”.

Foi a greve na Casa Verde, dez semanas,
greve, e quando voltamos ao trabalho,
com um pretexto: onde está a tua ferramenta?
me atiraram na rua.
Olhe o senhor estas mãos,
é um calo só que o cobre fez,
escute meu coração, não parece
que dá pulos?, é o cobre que machuca,
e mal posso andar de um lugar pra outro,
procurando, faminto, serviço que não encontro:
parece que me enxergam agachado, levando
as folhas invisíveis do cobre que me mata.




XI
Juan Figueroa
(Casa do Iodo, María Elena, Antofagasta)

O senhor é Neruda? Entre, camarada.

É, da Casa do Iodo, já não existem
outros vivendo.
Eu me agüento.

Sei que não estou mais vivo, que me espera
a terra do pampa.
São quatro horas
por dia, na Casa do Iodo.

Chega por uns tubos, sai como uma massa,
como uma goma roxa.
Nós a passamos
de bateia em bateia, nós a envolvemos
como um recém-nascido.
Enquanto isso,
o ácido nos corrói, nos consome,
entrando pelos olhos, pela boca,
pela pele, pelas unhas.

Da Casa do Iodo ninguém sai
cantando, companheiro.
E se pedimos
mais uns pesos de salário
para os filhos sem sapatos,
dizem: “Moscou vai mandar”, camarada,
e declaram estado de sítio, e nos cercam,
como se a gente fosse uns animais e nos batem,
eles são assim, camarada, estes filhos da puta!
Aqui estou eu, já sou o último:
onde está Sánchez? onde está Rodríguez?
Podres debaixo do pó de Polvillo.

Afinal a morte deu a eles o que pedíamos:
seus rostos estão com máscaras de iodo.




XII
O mestre Huerta
(da mina A Desprezada, Antofagasta)

Quando o senhor for ao norte,
vá até a mina A Desprezada,
pergunte lá pelo mestre Huerta.

De longe não vai o senhor ver nada,
só os areais cinzentos.

Depois, verá as estruturas,
o corrimão, os desmontes.

Os cansaços, os sofrimentos
a gente não vê, estão debaixo da terra
mexendo, partindo seres,
ou então descansam, estendidos,
se transformando, silenciosos.

Era “picano” o mestre Huerta.

Media um metro e noventa e cinco.

Os picanos são os que abrem
o terreno até o desnível,
quando o veio se rebaixa.

Quinhentos metros abaixo,
com água até a cintura,
o picano, pica, pica, vai furando.

Só pode sair do inferno
cada quarenta e oito horas,
até que as perfuradoras
na rocha, na escuridão,
no barro, deixam a polpa
por onde a mina caminha.

O mestre Huerta, grande picano,
parecia que enchia a picada
com as suas costas.
Entrava
cantando como um capitão.

Saía gretado, amarelo,
encurvado, ressecado, e seus olhos
olhavam como olho de morto.

Depois se arrastou pela mina.

Já não podia descer à galeria.

O antimônio lhe comeu as tripas.

Emagreceu de dar medo.

Mas nem podia andar.

Tinha as pernas picadas
como por pontas, e como era
tão alto, parecia
um fantasma faminto
pedindo sem pedir, o senhor sabe.

Ainda não tinha trinta anos.

Pergunte onde está enterrado.

Ninguém sabe dizer,
porque a areia e o vento derrubam
e enterram as cruzes, mais tarde.

Ainda não tinha trinta anos.

É em cima, na Desprezada,
onde trabalhou o mestre Huerta.




XIII
Amador Cea
(de Coronel, Chile, 1949)

Como tinham detido meu pai
e entrou o presidente que elegemos
e disse que éramos livres, eu pedi que soltassem o meu velho.

Me levaram e me bateram um dia inteiro.

Não conheço ninguém no quartel.
Não sei, não posso
nem me lembrar das caras deles.
Era a polícia.

Quando perdia o sentido, me atiravam
água no corpo e continuavam batendo.

Numa tarde, antes de sair, me levaram
arrastado a um banheiro,
me enfiaram a cabeça dentro dum vaso
de WC cheio de excrementos.
Ia me afogando.

“Agora, vai pedir liberdade ao presidente,
que te manda este presente”, me diziam.

Me sinto arrebentado, me quebraram esta costela.

Mas por dentro estou como antes, camarada.

A gente eles só quebram matando.




XIV Benilda Varela
(Concepción, Cidade Universitária, Chile, 1949)

Arrumei a comida das criancinhas e saí.

Quis entrar em Lota para ver meu marido.


Como se sabe, mandam a polícia
e ninguém pode entrar sem sua licença.

Minha cara não agradou.
Eram ordens
de González Videla, antes de começar
a dizer seus discursos, para que nossa gente
tenha medo.
Foi assim: me agarraram,
me despiram, me atiraram ao chão com pancadas.

Perdi o sentido.
Acordei no chão
nua, com um lençol molhado sobre
o meu corpo em sangue.
Reconheci um verdugo:
chama-se Víctor Molina esse bandido.

Mal abri os olhos, continuaram me batendo
com pedaços de borracha.
Estou toda roxa
de sangue, e nem posso me mexer.

Eram cinco, e os cinco me espancavam
como um saco.
Durou seis horas isso.

Só não morri para dizer a vocês, camaradas:
temos de lutar muito mais, até que desapareçam
esses verdugos da face da terra.

Que os povos conheçam seus discursos
Na ONU sobre a “liberdade”,
enquanto os bandidos matam de pancadas as mulheres
nos porões, sem ninguém ficar sabendo.

Aqui não aconteceu nada, vão dizer, e Dom Enrique
Molina nos vai falar do triunfo do “espírito”.

Mas isto não vai acontecer pra sempre.

Um fantasma percorre o mundo, e podem começar de novo
a espancar nos porões: vão pagar por seus crimes, não demora.




XV
Calero, trabalhador dos bananais
(Costa Rica, 1940)

Não te conheço.
Nas páginas de Fallas li a tua vida,
gigante obscuro, menino batido, esfarrapado e errante.

Dessas páginas voam o teu riso e as tuas canções
entre os bananais, no barro sombrio, a chuva e o suor.

Que vida a dos nossos, que alegrias ceifadas,
que forças destruídas pela comida ignóbil,
que cantos derrubados pela moradia em pedaços,
que poderes do homem desfeitos pelo homem!
Porém mudaremos a terra.
Não irá a tua sombra alegre
de charco em charco até a morte desnuda.

Mudaremos, juntando tua mão com a minha,
a noite que te cobre com a sua abóbada verde.

(As mãos dos mortos que tombaram
com estas e outras mãos que constroem
estão seladas como as alturas andinas
com a profundidade de seu ferro enterrado.
)

Mudaremos a vida para que a tua linhagem
sobreviva e construa sua luz organizada.




XVI
Catástrofe em Sewell

Sánchez, Reyes, Ramírez, Núnez, Alvarez.

Estes nomes são como o cimento do Chile.

O povo é o cimento da pátria.

Se os deixais morrer, a pátria vai caindo,
vai sangrando-se até ficar vazia.

O campo nos disse: cada minuto
há um ferido, e cada hora um morto.

Cada minuto e cada hora
o nosso sangue cai, o Chile morre.

Hoje é o fumo do incêndio, ontem foi o gás grisu,
anteontem o despenhadeiro, amanhã o mar ou o frio,
a máquina ou a fome, a imprevisão ou o ácido.

Mas lá onde morre o marinheiro,
mas lá onde morrem os pampeiros,
mas lá em Sewell onde se perderam,
está todo o cuidado, as máquinas, as vidraças,
os ferros, os papéis,
menos o homem, a mulher ou o menino.

Não é o gás: é a cobiça que mata em Sewell.

Essa torneira fechada de Sewell para que não caísse
nem uma gota d'água para o pobre café dos mineiros,
aí está o crime, o fogo não é culpado.

Por todas as partes se fecham as torneiras ao povo
para que não se distribua a água da vida.

Mas a fome e o frio e o fogo que devora
a nossa raça, a flor, os cimentos do Chile,
os farrapos, a casa miserável,
isso não se raciona, sempre há bastante
para que cada minuto haja um ferido
e cada hora um morto.

Não temos nós deuses que nos socorram.

As pobres mães vestidas de preto
terão rezado depois de choradas todas as suas lágrimas.


Nós não rezamos.

Stálin disse: “Nosso melhor tesouro
é o homem”,
os cimentos, o povo.

Stálin ergue, limpa, constrói, fortifica,
preserva, olha, protege, alimenta,
porém também castiga.

E isto é que desejava dizer-vos, camaradas:
faz falta o castigo.

Não pode ser esse desmoronamento humano,
esta sangria da pátria amada,
este sangue que cai do coração do povo
cada minuto, esta morte
de cada hora.

Eu me chamo como eles, como os que morreram.

Eu também sou Ramírez, Munoz, Pérez, Fernández.

Me chamo Álvarez, Núnez, Tapia, López, Contreras.

Sou parente de todos os que morrem, sou povo
e por todo este sangue que tomba estou de luto.

Compatriotas, irmãos mortos, de Sewell, mortos
do Chile, operários, irmãos, camaradas,
hoje que estais silenciosos, vamos conversar.

E que vosso martírio nos ajude
a construir uma pátria severa
que saiba florescer e castigar.




XVII
A terra se chama Juan

Atrás dos libertadores estava Juan
trabalhando, pescando e combatendo,
em seu trabalho de carpintaria ou em sua mina molhada.

Suas mãos araram a terra e mediram
os caminhos.

Seus ossos estão em todos os lugares.

Mas vive.
Regressou da terra.
Nasceu.

Nasceu de novo como uma planta eterna.

Toda a noite impura tratou de submergi-lo
e hoje afirma na aurora seus lábios indomáveis.

Amarraram-no, e é agora decidido soldado.

Feriram-no, e conserva sua saúde de maçã.

Cortaram-lhe as mãos, e hoje fere com elas.

Enterraram-no, e vem cantando conosco.

Juan, é tua a porta e o caminho.

A terra
é tua, povo, a verdade nasceu
contigo, de teu sangue.

Não puderam exterminar-te.
Tuas raízes,
árvore de humanidade,
árvore de eternidade,
hoje estão defendidas com aço,
hoje estão defendidas com tua própria grandeza
na pátria soviética, blindada
contra as mordeduras do lobo agonizante.

Povo, do sofrimento nasceu a ordem.


Da ordem a tua bandeira de vitória nasceu.


Levanta-a com todas as mãos que tombaram,
Defenda-a com todas as mãos que se juntam:
E que avance até a luta final, até a estrela
A unidade de teus rostos invencíveis.
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