Tatiana Faia
Tatiana Faia, é uma escritora e poeta portuguesa que em 2019 recebeu o Prémio de Literatura PEN na categoria Poesia.
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ALGUNS POEMAS PORTÁTEIS
1.
entrando e saindo de livrarias de arte
tenho-me julgado civilizada
este engano deve-se a uma educação
encontros de poetas e artistas
à rejeição do melodrama enquanto
forma de arte inapropriada
a ter perdido tempo com alguns profetas do deserto
longas horas passadas em bibliotecas
a minha civilização deve-se tanto
a noções cosmopolitas
quanto à solidão de carruagens vazias
de comboios nocturnos assobiando
através de túneis o maquinista
mais uma solidão sublinhada
na luz da carruagem da frente
e também nenhum agulheiro poderá mudar
o sentido das linhas das palmas das mãos
a minha civilização deve-se a enredos
pensados em cidades estrangeiras
a encontros entre homens e mulheres
numa rota de colisão febril
fermentada no sangue
à solidão de horas passadas a ler em escritórios
muito depois de estes terem ficado vazios
e as portas principais se fecharem e um guarda solitário
se sentar com uma lanterna e um jornal
tenho sido civilizada por razões que não são naturais
com o tipo de hesitação com que um homem
aperta o nó de uma gravata pára um momento
considera a escuridão azul e chata do fato
a luz do rosto no vazio do espelho
2.
entrando e saindo de livrarias de arte
tenho-me comportado de certas maneiras
que podem não soar perfeitamente razoáveis
e tenho estado presente em reuniões marcadas
com livros com que me encontrei antes
como a bíblia ilustrada de chagall
um livro cujas páginas finais
são pontuadas de atmosferas vermelhas
paisagens vermelhas, as mãos de deus vermelhas
paisagens onde se alojam como âncoras danças pagãs
mas não é provável que os nossos finais
aconteçam em vermelho
eles serão azuis, azuis escuros, amarelos
como a sorte nos sorri
nada menos do que o céu estrelado
nas costas de eugène boch no quadro de van gogh
não é provável que os nossos finais
aconteçam em vermelho
porque vivemos rodeados de coisas
que constantemente começam e acabam
e que só se manifestam por meio de meias medidas
coisas que numa altura ou noutra acreditámos
que eram sagradas — e o que quero dizer com isto
é —, dignas de um cuidado especial
coisas que se manifestam por exemplo
em amantes que adormecem
agarrados um ao outro como conchas
em cidades onde as noites são demasiado longas
onde o inverno dura o ano inteiro
ou no cabelo vermelho da tua mulher
recordado por ti muito tempo depois
no trabalho de certos entardeceres
em ruas movimentadas de escritórios
e gente e carros ou na ordem da cor
e do cheiro das romãs na solidão
de uma tarde a chegar ao fim
no teu pequeno apartamento suburbano
um sopro ligando-se a outro sopro
atando as imagens que constituem
o registo do que pode bem ter sido a tua vida
ou nem isso porque é preciso perguntar
a mim própria o que é que pretendo lamentar
aqui ou melhor o que pretendo lamentar
ao certo com este poema
3.
um estudioso de munch
depois do roubo de «o grito»
criticou noutros historiadores da arte
a preocupação em restaurar o quadro
que não tinha voltado intacto
das mãos dos ladrões
este estudioso defendia
que munch não ia querer saber de restaurar o quadro
nódoas negras e escoriações
eram apenas a marca de mais uma viagem
e munch ficaria contente em manter o quadro como estava
o estudioso pensava que munch não ia querer saber
porque o pintor amava coisas baratas
e pintava as suas obras com materiais baratos
e mantinha os seus cães perto da sua arte
4.
vivo numa cidade onde a polícia se ocupa
sobretudo de vigiar pedintes
e se à noite passearmos pelas artérias principais
as cenas que se repetem são as de homens em farrapos
sozinhos com os seus cães
cobrindo as cabeças com as mãos
enquanto as carrinhas da polícia passam lentamente
eles mantêm o seu silêncio
e eu lembro-me que foi adrienne rich quem escreveu
que eu vivo num país onde os poetas não são presos
por serem poetas
são presos por serem negros, mulheres, pobres
revejo versões desta cena todas as noites
quando regresso a casa depois do trabalho
e conheço-a bem porque tenho vivido
o mesmo dia durante os últimos sete meses
e presto atenção espero pela carrinha da polícia
a dumka nos meus ouvidos não me permite negar
que o mundo é uma bola de vidro
que a estabilidade de cada peça depende
de a rotação total do globo
não ultrapassar uma certa velocidade
e penso que sou responsável sobretudo
por estas horas em que me cruzo com gente na rua
em que paro de ser um agente
ao serviço de uma corporação cujo deus
é previsivelmente de um verde monótono e jamais
cometeria o erro de um grande final vermelho
eu estou viva quieta e sou responsável
por escrever estas palavras
a caneta contra o papel
o frio na cara
o som de um violoncelo nos ouvidos
que segredo pode ser encontrado na quietude?
que temos existido exaustos
do lado de fora de paisagens previsíveis
quando a minha cara deixa de poder ser reconhecível
e reparo que nos últimos meses
a minha letra mudou
munch pintou «o grito» depois
de um ataque de pânico numa ponte em paris
um ataque sofrido na companhia de amigos
ele dizia que «o grito»
não representava um homem a gritar
mas um homem a tentar conter
como as barreiras fazem com os rios
o grito de tudo o que o rodeia
Um Quarto em Atenas, Tinta da China, 2018
entrando e saindo de livrarias de arte
tenho-me julgado civilizada
este engano deve-se a uma educação
encontros de poetas e artistas
à rejeição do melodrama enquanto
forma de arte inapropriada
a ter perdido tempo com alguns profetas do deserto
longas horas passadas em bibliotecas
a minha civilização deve-se tanto
a noções cosmopolitas
quanto à solidão de carruagens vazias
de comboios nocturnos assobiando
através de túneis o maquinista
mais uma solidão sublinhada
na luz da carruagem da frente
e também nenhum agulheiro poderá mudar
o sentido das linhas das palmas das mãos
a minha civilização deve-se a enredos
pensados em cidades estrangeiras
a encontros entre homens e mulheres
numa rota de colisão febril
fermentada no sangue
à solidão de horas passadas a ler em escritórios
muito depois de estes terem ficado vazios
e as portas principais se fecharem e um guarda solitário
se sentar com uma lanterna e um jornal
tenho sido civilizada por razões que não são naturais
com o tipo de hesitação com que um homem
aperta o nó de uma gravata pára um momento
considera a escuridão azul e chata do fato
a luz do rosto no vazio do espelho
2.
entrando e saindo de livrarias de arte
tenho-me comportado de certas maneiras
que podem não soar perfeitamente razoáveis
e tenho estado presente em reuniões marcadas
com livros com que me encontrei antes
como a bíblia ilustrada de chagall
um livro cujas páginas finais
são pontuadas de atmosferas vermelhas
paisagens vermelhas, as mãos de deus vermelhas
paisagens onde se alojam como âncoras danças pagãs
mas não é provável que os nossos finais
aconteçam em vermelho
eles serão azuis, azuis escuros, amarelos
como a sorte nos sorri
nada menos do que o céu estrelado
nas costas de eugène boch no quadro de van gogh
não é provável que os nossos finais
aconteçam em vermelho
porque vivemos rodeados de coisas
que constantemente começam e acabam
e que só se manifestam por meio de meias medidas
coisas que numa altura ou noutra acreditámos
que eram sagradas — e o que quero dizer com isto
é —, dignas de um cuidado especial
coisas que se manifestam por exemplo
em amantes que adormecem
agarrados um ao outro como conchas
em cidades onde as noites são demasiado longas
onde o inverno dura o ano inteiro
ou no cabelo vermelho da tua mulher
recordado por ti muito tempo depois
no trabalho de certos entardeceres
em ruas movimentadas de escritórios
e gente e carros ou na ordem da cor
e do cheiro das romãs na solidão
de uma tarde a chegar ao fim
no teu pequeno apartamento suburbano
um sopro ligando-se a outro sopro
atando as imagens que constituem
o registo do que pode bem ter sido a tua vida
ou nem isso porque é preciso perguntar
a mim própria o que é que pretendo lamentar
aqui ou melhor o que pretendo lamentar
ao certo com este poema
3.
um estudioso de munch
depois do roubo de «o grito»
criticou noutros historiadores da arte
a preocupação em restaurar o quadro
que não tinha voltado intacto
das mãos dos ladrões
este estudioso defendia
que munch não ia querer saber de restaurar o quadro
nódoas negras e escoriações
eram apenas a marca de mais uma viagem
e munch ficaria contente em manter o quadro como estava
o estudioso pensava que munch não ia querer saber
porque o pintor amava coisas baratas
e pintava as suas obras com materiais baratos
e mantinha os seus cães perto da sua arte
4.
vivo numa cidade onde a polícia se ocupa
sobretudo de vigiar pedintes
e se à noite passearmos pelas artérias principais
as cenas que se repetem são as de homens em farrapos
sozinhos com os seus cães
cobrindo as cabeças com as mãos
enquanto as carrinhas da polícia passam lentamente
eles mantêm o seu silêncio
e eu lembro-me que foi adrienne rich quem escreveu
que eu vivo num país onde os poetas não são presos
por serem poetas
são presos por serem negros, mulheres, pobres
revejo versões desta cena todas as noites
quando regresso a casa depois do trabalho
e conheço-a bem porque tenho vivido
o mesmo dia durante os últimos sete meses
e presto atenção espero pela carrinha da polícia
a dumka nos meus ouvidos não me permite negar
que o mundo é uma bola de vidro
que a estabilidade de cada peça depende
de a rotação total do globo
não ultrapassar uma certa velocidade
e penso que sou responsável sobretudo
por estas horas em que me cruzo com gente na rua
em que paro de ser um agente
ao serviço de uma corporação cujo deus
é previsivelmente de um verde monótono e jamais
cometeria o erro de um grande final vermelho
eu estou viva quieta e sou responsável
por escrever estas palavras
a caneta contra o papel
o frio na cara
o som de um violoncelo nos ouvidos
que segredo pode ser encontrado na quietude?
que temos existido exaustos
do lado de fora de paisagens previsíveis
quando a minha cara deixa de poder ser reconhecível
e reparo que nos últimos meses
a minha letra mudou
munch pintou «o grito» depois
de um ataque de pânico numa ponte em paris
um ataque sofrido na companhia de amigos
ele dizia que «o grito»
não representava um homem a gritar
mas um homem a tentar conter
como as barreiras fazem com os rios
o grito de tudo o que o rodeia
Um Quarto em Atenas, Tinta da China, 2018
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