Outono de Pedra

O sol posto
em cada pálpebra
um sol posto
os cílios não terão amanhãs?

- Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,

........

João Cabral de Mello Neto

CANTO-II

Pau de arara em marés de asfalto
matolão aposentado na esquina
becos & guetos
aboios perdidos na avenida paulista
abstrato versus concreto
o dia morto rente ao viaduto
lágrimas de ocasos
suicídio das horas
chuvas cerebrais
penumbra ao meio dia
tatuada no olhar.

CANTO-III

No divã
argamassa de cimento
vida quase morte
(o complexo das unhas...)

indelével memória
arredia hipnose

divagações:

naquela terra distante
muitos sonhos se evadiram
levados pela distância
de noites cosmopolitas

sob o império do sol
e barricadas de chuvas
muitas vidas sucumbiram
perante a gota de orvalho

naquela terra distante
na palma da mão sedenta
nos dedos dos meus avós
nos traçaram esse destino:

L
É
G
U
A
S

t
i
r
a
n
a
s

a fio

de caminho e de poeira
e de areia em vez de rio

- a vida sujigada entre os dentes.

CANTO-IV

E no entanto ainda salta
ritmada da garganta
verso/rima: poesia
no mormaço dos alpendres
sob a luz do candeeiro
ou da vela de 100 Watts

e se é lua e mês de abril
o repente é mais vibrante
se exalando no galope
caudaloso e repicado
da viola enamorada
do poeta e cantador:

quando digo das coisas do sertão
este solo que inunda o meu cantar
vem a lua silente me escutar
debruçada em perdida solidão
canto os vícios sublimes da paixão
aflorada no rosto feminino
também canto este povo e seu destino
a incerteza no tempo inconseqüente
refletido por alma, corpo e mente
saga-gênese do homem nordestino

o meu canto é de rima soletrada
dissidente da língua adormecida
na rudez da palavra convergida
nas pupilas do verso represada
é a voz, dessa gente, entresonhada
entoando um galope à beira-mar
vem de longe segredos desvendar
o meu canto é enfim de vida e morte
palmilhado no peito livre e forte
do poeta que sabe improvisar.

CANTO-V

Muros sombrios, limites
fantasmas de coronéis
no subsolo gargalham
choramingam velhas mágoas
na memória do porão

sopra um vento frio e brando
com um cheiro melancólico
condensando nas narinas
pesadelos ancestrais

(muita terra, poucos donos
de tão longe este refrão)

no porão, calada História:

espinho de xiquexique
atravessado na artéria
cravado no calcanhar
medula-farpa da História
transpassado sobre a pele
ressecada pelo sol
de sangue-suor tingida
espichada na caatinga

espectro de rija sombra
consumido no serrote
esculpido pela goiva
no repuxo de aroeira
estaca/roseta/arame
entrecasca do pau-darco
dura imagem pressentida
moldurando o latifúndio

a flor do mandacaru
estampa um sorriso largo
brotado por entre espinhos
na solidão dessas tardes
qual homem sofrido e pasmo
que se contenta com o nada
nessa miséria de morte
no rude rosto de cáctus

a seca consome léguas
retirantes pés ao pó
resumidas nas estradas
do silêncio ruminado
suplicantes romarias
clamando nuvens errantes
em nome de Deus cavalgam
palavras, desilusões

a chuva vem afagar
o sertão com água santa
afaga também os lábios
ressequidos, a garganta
um brilho reluz nos olhos
transbordantes de esperança
de ver o grão desolado
vingar no magro torrão

a terra seca ou molhada
pelo sol mais causticante
ou pela chuva mais densa
é sempre esta mesma terra
ou tão molhada ou tão seca
que não mata a seca-fome
da mente sã e semi-árida
nesta escassez e descaso.

CANTO-VI

Essa História
longa e árdua
vem escrita
vem traçada
pela tinta
vil e trágica
rascunhando
noutras linhas
transcrevendo
noutras páginas
falsas letras
desbotadas
no silêncio
das palavras.

CANTO-VII

Áspero corpo
qual pedra granizo
sôfrega alma
de sonhos marcada
as mãos para o céu
louvando a Deus
os pés sobre o chão
entre o tudo e o nada

a vista acesa
buscando horizontes
ofusca no cinza
dos olhos calados
singrando a vida
embora inerte
atentos momentos
em dias fadados

partido do ontem
sem rumo e sem medo
veredas seguidas
acasos remotos
desertos cortados
de fome e de sede
galgando na pedra
futuro ignoto

rastro incansável
o sol feito abrigo
silhueta sinistra
alçando o infinito
geométrica figura
sangrando o ocaso
tempo infecundo
instante proscrito

o sangue que corre
em veias opacas
vias serenas
oculta segredos
do tardo momento
esculpido na rocha
do efêmero viver
de ânsia e degredo.

CANTO-VIII

O cantador repentista
e peregrino da viola
conhece o rumor dos ventos:

inesquecíveis memórias
marcam homens e destinos
a saga dos nordestinos
entrelaça a mesma História
na parca crença irrisória
este caos mais se afigura
exposta em tosca moldura
na forma: fome e miséria
o tênue pulsar da artéria
esvai-se na desventura

nos três mundos consagrados
divisas separam vidas
opressoras, oprimidas,
limites bem demarcados
em marcos configurados
simbólica ideologia
predomina e contagia
de vício a humana gente
falsa idéia incoerente
de mortal hipocrisia.

poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia

.............

nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome
nomeio a fome

Haroldo de Campos

CANTO-IX

Unhas encravadas
fixadas
fichadas
no esmalte-sangue
do tijolo

subindo no asco da noite
possantes\imponentes\frias
colunas verticais

subindo no asco da noite
frágeis\humildes\tensas
colunas cervicais

andaimeandaime
\andaime

passaporte
para a vida extraida dos músculos
passaporte
para a morte fincada nos calos
antagônicos limites
sobem e descem
nas fibras de aço
nas fibras de nervos

CANTO-X

A colher alimenta
rica estrutura
substâncias imprescindíveis
para crescer
breve
para crescer
firme
para crescer
lorde
para crescer
nobre
para crescer
crescer para
pára crescer

cimento\ferro
pedra
tijolo

pedra\tijolo
ferro
cimento

tijolo
pedra
cimento\ferro

cimento
ferro
tijolo\pedra

homens\fome\homens
vida
poder\mais-valia

a l v e n a r i a

CANTO-XI

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