António Ramos Rosa
António Victor Ramos Rosa, foi um poeta, português, tradutor e desenhador. Ramos Rosa estudou em Faro, não tendo acabado o ensino secundário por questões de saúde.
1924-10-17 Faro
2013-09-23 Lisboa
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Através da Memória
a Jorge de Sena
Apenas sei que o Verão em mim cantou
Um breve tempo, e já não canta mais.
EDNA St. VINCENT MILLAY*
Não é apenas o dom
extremo da delicada atenção,
a generosa paciência,
esse toque subtil que se desfere,
após o gosto cheio da palavra redonda,
na zona branca da perfeição.
A página
ali esperava.
Mas quanto antes
na azáfama alheia e neutra
duma viagem de eléctrico,
numa paragem,
num cinema,
numas escadas toscas, solitárias,
num gosto de café, nesse amargo especial
do cigarro, que é um convite, um sinal,
ela, a forma esplêndida,
com a miragem dum espelho,
com a auréola duma árvore brilhante,
nua como uma espada,
brilhara,
na mente fatigada, mas logo límpida,
sinal brusco, e, no entanto, liso,
a forma preciosa.
Não.
Não fora apenas esse dom inato,
nem essa pureza rápida da inspiração,
nem esse acalento sossegado à noite,
esse cerrar de lábios,
esse branco vazio,
esse tumultuar de palavras prontas
a passar pelo crivo.
Não.
Mas já no tempo, nesse longo ciciar
de folhas durando na memória,
de dicionários rotos e tristes,
mas que é gostoso desfolhar na impaciência,
já nessa amorosa e repetida paciência
com que se inclinara ao longo de crepúsculos
em que meninos atiravam pedras longe,
sim, sobretudo nos crepúsculos,
nessa limpa mágoa que nos vem de árvores ao frio
e dos seus braços magros,
já, já se adivinhara esse respirar de sílabas
fluindo em graça pura,
não plumas,
mas sílabas certas e claras,
sílabas onde o destino bate
com a grave leveza de quem dança
de noite, entre as estrelas.
Já
essa saudade calma
alguma vez pousara
na fronte do poeta;
já esse Verão uma tarde
depusera
seu pó alegre e estático
como um pólen
nas suas mãos suaves.
Mas nunca
ele cantara assim.
* Estes versos são extraídos de uma tradução do soneto «What lips my lips have kissed», da autoria de Jorge de Sena, inserta na página «Cultura e Arte», de O Comércio do Porto, de 12 de Agosto de 1958. O poema «Através da Memória» foi publicado na página «Artes e Letras» do Diário de Notícias, em homenagem a Jorge de Sena por essa tradução. A expressão «saudade calma», empregada neste poema, é também extraída da referida tradução.
Apenas sei que o Verão em mim cantou
Um breve tempo, e já não canta mais.
EDNA St. VINCENT MILLAY*
Não é apenas o dom
extremo da delicada atenção,
a generosa paciência,
esse toque subtil que se desfere,
após o gosto cheio da palavra redonda,
na zona branca da perfeição.
A página
ali esperava.
Mas quanto antes
na azáfama alheia e neutra
duma viagem de eléctrico,
numa paragem,
num cinema,
numas escadas toscas, solitárias,
num gosto de café, nesse amargo especial
do cigarro, que é um convite, um sinal,
ela, a forma esplêndida,
com a miragem dum espelho,
com a auréola duma árvore brilhante,
nua como uma espada,
brilhara,
na mente fatigada, mas logo límpida,
sinal brusco, e, no entanto, liso,
a forma preciosa.
Não.
Não fora apenas esse dom inato,
nem essa pureza rápida da inspiração,
nem esse acalento sossegado à noite,
esse cerrar de lábios,
esse branco vazio,
esse tumultuar de palavras prontas
a passar pelo crivo.
Não.
Mas já no tempo, nesse longo ciciar
de folhas durando na memória,
de dicionários rotos e tristes,
mas que é gostoso desfolhar na impaciência,
já nessa amorosa e repetida paciência
com que se inclinara ao longo de crepúsculos
em que meninos atiravam pedras longe,
sim, sobretudo nos crepúsculos,
nessa limpa mágoa que nos vem de árvores ao frio
e dos seus braços magros,
já, já se adivinhara esse respirar de sílabas
fluindo em graça pura,
não plumas,
mas sílabas certas e claras,
sílabas onde o destino bate
com a grave leveza de quem dança
de noite, entre as estrelas.
Já
essa saudade calma
alguma vez pousara
na fronte do poeta;
já esse Verão uma tarde
depusera
seu pó alegre e estático
como um pólen
nas suas mãos suaves.
Mas nunca
ele cantara assim.
* Estes versos são extraídos de uma tradução do soneto «What lips my lips have kissed», da autoria de Jorge de Sena, inserta na página «Cultura e Arte», de O Comércio do Porto, de 12 de Agosto de 1958. O poema «Através da Memória» foi publicado na página «Artes e Letras» do Diário de Notícias, em homenagem a Jorge de Sena por essa tradução. A expressão «saudade calma», empregada neste poema, é também extraída da referida tradução.
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