Matilde Campilho

Matilde Campilho

Matilde Campilho é uma escritora portuguesa.

Lisboa
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O Amor Faz-Me Fome

Tropecei numa ementa de vendas de comida ready-made
E por uma dessas fatalidades que vêm encadernadas
em vouchers de correio ou publicidade não endereçada
Fui reparar que agora tu e a tua miúda fazem
cafés da manhã para entregar ao domicílio
Perdão queria dizer pequenos-almoços
deixemos o café e as manhãs para outras dinastias
No meu tempo eu era o príncipe e tu a imagem
mais pura do menino Jean-Nicolas-Arthur Rimbuad
Dois saltimbancos cruzando a cidade e os dias
Também cruzávamos os dedos mas isso agora não importa
dois rapazolas roubando meio croissant e três goles de suco
às mesas impecavelmente postas dos hotéis mais bonitos da cidade
A comida não era de todo o que mais nos interessava
se pensarmos que a paixão alucinante era rastilho suficiente
para rebentar-nos o estômago até ao nível da alegria
Havia sempre alguém disposto a pagar-nos refeições
assim como nós estávamos sempre prontos a pular o fogo mágico
Acostumámo-nos desde muito cedo a sair das celebrações
de joelhos chamuscados e com as roupas mais ou menos rasgadas
Isso era motivo suficiente para que um de nós pegasse a moto
e então os dois acelerávamos até à praia mais deserta do país
Nem por isso deixámos de nos escapar aos acontecimentos
mas aqueles foram indubitavelmente os mergulhos de ouro
Agora as fogueiras levantam-se muito mais altas do que as magias
às quais dedicámos quase toda a nossa juventude igualitária
Hoje temos mais de trinta anos e da minha janela dá para ver
os disparos dos incontáveis snipers das barricadas de Kiev
Desta varanda podem ouvir-se os gritos das ruas venezuelanas
se sobrepondo ao viejo papá que só quer dizer pásame el pan
Daqui dá para cheirar a ameaça de pólvora semi-invisível saindo
do documento que declara o estado de exceção no sul da Bahia
Parece que a primavera do mundo é um trabalho em progresso
mas o caminho até lá está sendo todo feito entre as veredas
e entre os galhos de fogo de um gigante inverno
No nosso tempo eu acreditava muito nas notícias e na televisão
Hoje eu acredito tudo nas experiências que me contam os homens
Ontem éramos os filhos dos netos da revolução
E explicaram-nos que a tabuada e a paixão alucinante eram tudo
o que precisávamos e precisaríamos para o exercício da construção
Hoje somos pais de algumas crianças e pais de nós mesmos
e já vamos sabendo algumas coisas sobre a palavra desconstrução
O amor ainda é o estandarte onde vamos pendurando as bandeiras
A coragem ainda é o ferro onde vamos pendurando as roupas
Sim ainda rasgamos nossas roupas Sim ainda esfolamos os joelhos
Mas agora é tudo em nome de uma certa mudança universal
Onde andarás tu e teu sonho nesta manhã eu já não sei
Muito menos que espécie de alimentos entregas ao domicílio
Seja como for o amor ainda me faz bastante fome
e o relento ainda me parece o asfalto justo para toda a revolução
Portanto (apesar dos vouchers) hoje meu miúdo e eu escolhemos
tomar um café da manhã na rua e deixar para lá o domicílio.
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