Cora Coralina

Cora Coralina

Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, foi uma poetisa e contista brasileira.

1889-08-20 Goiás, Brasil
1985-04-10 Goiás, Goiás, Brasil
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Alguns Poemas

Antiguidades

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.

Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmão mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas !

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversar
que davam sono.
Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.

Ô de Casa!

(...)

Acontecia à noite, alta noite com chuva, frio ou lua clara,
passantes com cargueiros e família darem: "Ô, de casa..."
Meu avô era o primeiro a levantar, abrir a janela:
"Ô de fora... Tome chegada."
O chefe do comboio se adiantava:
"De passagem para o comércio levando cargas, a patroa perrengue,
mofina, pedia um encosto até "demanhã".
Mais, um fecho para os "alimais".
Meu avô abria a porta, franqueava a casa.
Tia Nhá-Bá, de candeia na mão, procurava a cozinha,
acompanhada de Ricarda sonolenta. Avivar o fogo, fazer café, a praxe,
Aquecer o leite. Meu avô ouvia as informações. Não especulava.
Oferecia acomodação, no dentro, quarto de hóspedes.
Quase sempre agradeciam. Se arrumavam ali mesmo no vasto alpendre
[coberto
Descarregavam as mulas, encostavam a carga.
Tia Nhá-Bá comparecia, oferecia bacião de banho à dona, e aos
[meninos,
quitandas.
Aceitavam ou não. Queriam, só mais, aquele encosto,
estendiam os couros, baixeiros, arreatas, se encostavam.
Meu avô franqueava o paiol. Milho à vontade para os animais de sela,
[de carga.
Eles acendiam fogo, se arranjavam naquele agasalho bondoso,
[primitivo.
Levantávamos curiosas, afoitas, ver os passantes.
Acompanhá-los ao curral, oferecer as coisas da casa.
Ajoujavam os cargueiros, remetiam as bruacas nas cangalhas.
Faziam suas despedidas, pediam a conta das despesas.
Meu avô recusava qualquer pagamento — Lei da Hospitalidade.
Os camaradas já tinham feito o almoço lá deles. Já tinha madrugado
para as restantes cinco léguas. Convidava-se a demorar mais na volta.
Despediam-se em gratidão e repouso.
Era assim no antigamente, naqueles velhos reinos de Goiás.


In: CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 4. ed. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 198
Cora Coralina (Goiás GO 1889 - Goiânia GO 1985) fez apenas os estudos primários, com a professora Silvina Ermelinda Xavier de Brito (Mestra Silvina), por volta de 1899 e 1901. Em 1910 teve seu conto Tragédia na Roça publicado no Anuário Histórico Geográfico e Descritivo do Estado de Goiás, do professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Mudou-se para o interior de São Paulo em 1911. Na década de 30, tornou-se colaboradora do jornal O Estado de São Paulo; foi vendedora da Livraria José Olympio, em São Paulo, e proprietária do estabelecimento Casa dos Retalhos, em Penápolis SP. Voltou para Goiás em 1956, onde exerceu por mais de vinte anos a profissão de doceira. Seu primeiro livro de poesia, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, saiu em 1965. Seguiram-se Meu Livro de Cordel, publicada em 1976, numa edição restrita em Goiás, por P. D. Araújo, e Vintém de Cobre (1983). Em 1984 recebeu o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores.
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