Alguns Poemas

Nu como um Yanomami

A Soares Feitosa, e à sua criação: PSI, a Penúltima!

Percorro o meu interior
E me vejo nu como um yanomami.
Ando pelas encostas do meu ser
e vejo claramente as florestas
largas e repletas de árvores fortes e floridas;
largas e repletas de frutos maduros;
largas e repletas de plantas verdes.
Ando em meio as árvores e não percebo o bosque.
em meio aos frutos e não posso comer;
em meio as plantas e não sinto o seu aroma.
Caminho em direção ao rio que vejo ao longe;
rio que tem curso calmo.
Às vezes suas águas, que nunca são as mesmas,
descem velozmente ao encontro de um mar
que é só meu, único e indescritível...impenetrável.
Ando ao encontro desse rio, cujas águas são azuis,
e chego exausto e trêmulo.
Nele molho a minh’alma que se encanta e se enleva,
e chego a perceber o bosque: imenso e úmido.
Ouço o cantar dos pássaros!
E como dos frutos das árvores próximas: maduros e doces.
Que me são permitidos comer!
E sinto o aroma das plantas adjacentes: perfume silvestre.
Cheiro suave!
Sigo atravessando o rio e não desejo chegar.
As suas margens ainda estão largas,
mas se estreitam à medida que caminho:
a passos lentos e firmes...inseguros às vezes: não desejo ainda chegar.
As suas águas continuam a bater nas encostas do meu ser.
Volto-me a mim e reconstituo o caminho de volta.
Deixo para trás um rio lento e suave a caminho do mar
que não consigo enxergar, ainda que o veja: não estou mais nu,
não me conheço. Continuo, contudo, um yanomami.

Salvador, à meia noite de 11 de janeiro/97.

Em Busca do Tempo Perdido

"Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas
e a destruição das coisas - sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais
mais persistentes, mais fiéis - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo,
como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais,
e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação."
Marcel Proust, in No Caminho de Swann

Busco em reentrância,
minha vida em Conquista,
a infância
à semelhança do personagem
de Proust, que, aturdido,
busca a imagem
do tempo perdido
ao comer um pedaço de madalena.
Tem o seu passado presente,
ao tomar uma xícara de chá de tília na
casa de sua mãe: comovente!

Nessa visão em túnel, ouço um som.
Mesmo efeito embriagante do chá de tília.
É Garfunkel: Mr. Robinson;
Cecília!
E a suave música que passa,
de chofre, faz-me reviver o Beco dos Artistas; o Jurema
e o velho pé de Cajá, que virou praça.
Madalena!

Caleidoscópio de minha viagem que doura,
em busca do que sempre fui ali,
prossigo para o Beco da Tesoura
e ingresso no ‘Bar Aracy’:
"Que foi feito de meu arroz doce com canela?"...
Alegre e satisfeito, saio para o Colégio Anísio Teixeira
na doce irresponsabilidade do ser - e pensando nela -,
sem nenhum tostão na algibeira.
Redivivo, assim, meu cérebro emocional em
amálgama perfeito - hipocampo e amígdala - em doce recordação redolente
de uma vida distante que vem
trazer-me de volta: Clemente!

Campinas, águas de março de 1997.

Notas:
1.Conquista - município baiano de Vitória da Conquista, lugar de nascimento do autor deste poema.
2. "Em Busca do Tempo Perdido" - (parte inicial: "No Caminho de Swann") - obra máxima de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana - Editor Victor Civita.
3.Logradouros públicos e estabelecimentos citados: permanecem com seus nomes inalterados.
4.As expressões: "cérebro emocional" e as palavras: "amígdala" e "hipocampo" são usadas no mesmo sentido na obra "Inteligência Emocional" de Daniel Goleman, tradução de Marcos Santarrita - Editora Objetiva Ltda.
5.Clemente: pai do autor deste poema, falecido em acidente de automóvel aos 37 anos de idade chegando em Vit. da Conquista.

Tormento

Para Maristela Mendes
Porque, enquanto um homem permanece
entre os vivos, há esperança.
Eclesiastes, IX, 4

Há essa angústia de ser humano
E os répteis
se entrincheiram no hospital
E os vermes
se preparam para devorar uma linda criança
Indecorosa orgia da dor
Cruel da degenerescência humana...

E há essa indiferença de ser humano
que transcende as raias do absurdo
Insensatez:
"Onde está o teu crachá?"
"Não tem ninguém para examinar o sangue!"
"Já estou no meu horário de saída..."

E há essa alegria de ser humano
De ter com quem contar
Ter a quem buscar
Que paira sobre todos
E a todos domina
E ama

E há essa esperança de ser humano
Na manhã que vem suave e forte
sobre a embriaguez sonora do vento
apavorando vermes e répteis

E entre a angústia, alegria e esperança
um trilho imenso de leito ao lar
onde enfermeiras e médicos
crachás e pessoas; vozes e braços
harmonizam o cântico singelo e belo:
"Ela está salva — vai!...
Maristela vive — vem!."
Domingo, 29 de julho de 1990.

Notas:
1.Conquista - município baiano de Vitória da Conquista, lugar de nascimento do autor deste poema.
2. "Em Busca do Tempo Perdido" - (parte inicial: "No Caminho de Swann") - obra máxima de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana - Editor Victor Civita.
3.Logradouros públicos e estabelecimentos citados: permanecem com seus nomes inalterados.
4.As expressões: "cérebro emocional" e as palavras: "amígdala" e "hipocampo" são usadas no mesmo sentido na obra "Inteligência Emocional" de Daniel Goleman, tradução de Marcos Santarrita - Editora Objetiva Ltda.
5.Clemente: pai do autor deste poema, falecido em acidente de automóvel aos 37 anos de idade chegando em Vit. da Conquista.

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