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Marcelo Felipe Toledo Bortolotto, ou apenas, O louco no ápice dos seus 24 anos, nascido em Curitiba, vivendo em Laranjeiras do Sul, PR. Escrevendo mais do que vivendo, e consequentemente vivendo mais pelas histórias inventadas do que a própria vida.

1997-02-15 Laranjeiras do Sul, PR
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Ensaio sobre a loucura.

Não decorreu muito tempo, desde a última vez que senti a loucura tomando conta do meu corpo e corrompendo a existência deste ser que vos escreve. Mas para explicar melhor, é preciso voltar alguns meses no tempo, até o dia em que pensei que a morte beijaria minha carne nua e envolta por pecados hediondos. Fazia frio naquela noite, mas não tanto quanto o frio que sentia dentro do meu corpo, também pudera não sentir frio e estar em estado quase de hipotermia depois desses longos meses solitários no mar e sem pisar em terra firme. O que aquecia toda a tripulação da Princesa Helena II era o rum e mesmo assim não era o suficiente, o infortúnio da minha vida foi não ter dado a devida atenção necessária as palavras sábias de minha mãe. Ela que sempre me dizia que havia me criado não para o trabalho pesado, mas para as belas artes, isto é, a poesia e pinturas tendo em vista que desde os meus sete anos de vida sempre fui aficionado por retratar com fidelidade eventos ou tempo decorrido de algum evento passado. Era uma criança feliz, correndo livre pelos grandes jardins da casa onde minha mãe prestava serviços, uma gente de requinte e certo renome na cidade de onde vim, mas muito cruel com seus empregados também. 
 
O dono da casa tinha uma afeição por mim, que nunca entendi bem mas não ligava muito também, era bem tratado por ele que sempre me presenteava com telas em branco e tintas para minhas pinturas. Certa noite, Senhor Philips chamou-me até a sala de reuniões, um comodo peculiar que nunca tinha entrado mas mesmo assim minha imaginação que muito fértil, fez questão de idealizar em meus pensamentos. Falou em tom de seriedade com um olhar vago em seu rosto estampado, quase via a tristeza presente ao teu lado sentada junto de ti, na poltrona estofada com detalhes de tapeçaria indiana. O que ele disse naquela noite, para aquela pobre criança que havia completado oito anos de vida, não era algo tragável aos ouvidos delicados que possuía, mas mesmo assim eu já deveria ter previsto que algo do tipo aconteceria, cedo ou tarde. 

-"Veja bem Willian, a guerra está prestes a chegar a este continente e não posso mais sustentar tantos empregados como estou fazendo por todos esses anos, devo investir meus últimos recursos em minha própria segurança e de minha família, mas não posso deixar que seja envolvido em atos inumanos como os que ocorrem nos campos de batalha, por isto tomei de antemão a decisão de lhe assegurar um emprego em um navio que parte hoje mesmo para sabe deus onde, porém eu não vou força-lo a ir." Disse o Senhor Philips com uma voz vaga e demorada em tons cinza de tristeza e saudade. 

Já deve imaginar, qual foi a primeira coisa que perguntei ao homem logo após ouvir o que tinha para dizer. -"Senhor Philips, e minha mão? ela ira comigo neste navio?"

O Senhor petrificou me olhando e era nítido a resposta, muito embora ela demorou a vir, pensei estar envolto em um pesadelo no primeiro momento, pois vi o choro sendo engolido por ele e uma respiração funda e pesada até que a resposta atingiu os campos mais profundos do meu pensamentos devastando toda a paisagem bela que tinha em mente até o momento.

-"Sua mãe vai comigo e com a minha família, ela é nossa melhor empregada e sabe bem disto, não queria ter que fazer uma criança como você passar por algo tão aterrador assim mas infelizmente não há outra escolha."

Pensei comigo mesmo "sempre há outra escolha" afinal, era o que minha bela mãe sempre me dizia. -"Se chegar a uma situação onde não consegue ver outra escolha a não ser a pior possível, pare e deixe teu coração se acalmar e vera que logo outra escolha ou caminho ira brotar em teus pensamentos."
Eu chorei, chorei muito depois de ouvir o que o Senhor me disse, e mesmo não querendo isto eu tive de aceitar as condições. 

-"Dou-te vinte minutos para arrumar tudo que tem de valor e que deseja levar contigo nesta nova vida, e então vou leva-lo até o navio que parte logo mais."

Subi até meu quarto e peguei meus pincéis e telas em branco, porém não cabia dentro da pequena mala que me deram, então coloquei apenas as tintas e pincéis, e entre outros apetrechos artísticos. Não tinha muito o que levar, nem muitas roupas e nem nada de valor real, apenas de valor pessoal, fechei a mala, olhei o comodo onde dormia junto de minha mãe pela última vez e desci as escadas daquela casa. Realmente a casa não era muito grandiosa, mas naquele momento me parecia, cada porta que via pelo corredor que percorri até chegar na escada, me fazia lembrar de algo que vivi naquele lugar magico e seguro.

Chegando a ponta da frente da casa com minha mala na mão direita e o coração na mão esquerda, encontrei o Senhor e o chofer que iria conduzir a carruagem. 
Se me pedissem para entrar em detalhes sobre a casa e os jardins nos dias de hoje, seria impossível e frustrante qualquer tentativa que fosse, pois em minha memória um maú terrível havia devastado as boas lembranças que tinha. Durou bem pouco o percurso de carruagem da casa até o porto onde conheci a Princesa Helena II.
O capitão um homem muito ríspido pegou minha mala assim que cheguei e jogou para dentro do convés e disse em tom de raiva e bem apressado. 
-"Entre logo, vamos partir em cinco minutos." 

Entrando daquela enorme embarcação, pude sentir um frio indescritível em meu corpo todo, um calafrio subia da ponta dos meus pés até o último e mais longo fio de meu cabelo. Novamente eu comecei a chorar, e pedir para que o Senhor Philips não me deixasse ali. Sem exito algum, apenas aceitei o fato de que não veria novamente minha mãe e nem aqueles jardins. 

-"Você, novato. Pegue sua mala e venha comigo, vou te mostrar o seu novo quarto de hoje em diante." Clarence foi o primeiro dos marujos que conheci, um rapaz um tanto peculiar, era manco de uma das pernas e tinha um cabelo meio alaranjado e pintas no rosto, as quais estranhas que nunca tinha visto em nenhum outros ser humano até aquele dia.

-"Sim, já estou indo!" Disse ainda em meio as lágrimas que rolavam pelo meu rosto, e peguei a mala e fui o mais depressa que pude. Embora a tristeza e o sentimento de abandono que sentia naquele momento, eu queria muito conhecer o tal quarto. A embarcação possuía nove quartos, sem contar o do capitão, pois transformou a cabina de comando em seus próprios aposentos, cada quarto detinha um número em sua porta, indo de zero a nove, e como pode imaginar o meu quarto era o último.

Nove nunca foi um número que me chamou muita atenção, eu costumava dizer que meu número da sorte era o sete pela forma bela de se escrever, mas naquela hora eu me contentei com o número nove. Nenhuma grande exuberância nem muito conforto como todos os outros quartos, mas mesmo assim era o meu quarto. Clarence ordenou que eu arrumasse minhas coisas e depois fosse até a cozinha para receber instruções e algumas informações de grande valia para um marinheiro de primeira viagem.
O quarto tinha uma cama ao centro encostada na parede e logo abaixo da escotilha pequena e redonda, um baú ao pé da cama para guardar os pertences e algumas alças para pendurar chapéu e camisas usada. Simplório como deve ser os aposentos de um marinheiro, mas não o de uma criança. Coloquei todas as minhas coisas de valor quase nulo dentro do baú, e me dirigi até a cozinha. 
Vinte minutos, foi o tempo decorrido de todos os acontecimentos, desde entrar na Princesa Helena II até estar diante de um velho barrigudo, com uma imensa barba suja e um cutelo em mãos, que seria o meu superior.
-"Qual o seu nome garoto?" 
-"Meu nome é Willian senhor." Disse quase sussurrando para responder a pergunta do cozinheiro, pois o medo se fazia presente em mim ao olhar para aquele colossal homem de poucos bons modos.

-"Pois bem filhos, eu não sei e não quero saber se sabe ou não descascar batatas, mas ali no canto tem um saco chamando por teu nome, então sem demora vá e descasque duas duzias de batatas." Logo me ordenando assim de cara, sem nem se apresentar. 

Pois bem, não questionei e nem perguntei o nome do meu parceiro de cozinha, apenas cumpri com o que me foi ordenado e comecei logo a descascar as batatas. Sentado no canto próximo ao saco das batatas havia uma faca, não muito grande e nem muito pequena mas muito bem afiada. Logo que comecei a descascar as batatas vi o olhar do chefa da cozinha, e sem demoras meio a primeira ofensa.
-"Garoto imprestável, metade da batata foi jogada fora junto com a casca não sabe nem usar uma faca." 
Me desculpei pelo empecilho que fui em cumprir a única coisa que me foi ordenada, mas logo comecei a me derramar em lágrimas e soluçar a ponto de me afogar com a angústia e o medo que percorria o interior do meu corpo pequeno e frágil. 

-"Engula esse choro e termine de fazer o que te foi ordenado." Falou em tons de raiva e de desgosto, o homem que nem sabia o nome até o então momento. E pensou em voz alta logo depois "o que deu na cabeça do capitão, ficar aceitando garotos chorões" e continuou a preparar o ensopado de porco e legumes. -"Poderia me dizer seu nome, se não for incômodo." Perguntei enquanto limpava as lágrimas do rosto.
Fiquei sem resposta, mas em troca recebi uma ajuda para ao menos aprender a descascar as batatas. -"Clarence venha já aqui, este garoto vai me deixar louco até o ensopado ficar pronto." Gritou enquanto batia com o cutelo em um rígido osso da perna do porco. 
Clarence demorou parar chegar até a cozinha, devido a sua perna não muito boa. -"Chamou senhor Severo?" 

-"Sim Clarence, ensine aquela criatura odiosa a não desperdiçar mais batatas." E foi assim que descobri o nome do cozinheiro sem que ele mesmo notasse. Pois bem, Clarence começou a descascar e falar como era o jeito mais fácil e que não iria desperdiçar batata no processo. Não demorou muito até que eu entendesse o processo, muito embora as mãos de uma criança de oito anos não fossem de grande tamanho comparada as batatas, mas ainda assim a habilidade com o pincel me foi útil, logo a faca se tornou meu novo objeto de diversão e quando vi o saco já estava pela metade. -"Por ter descascado demasiadas batatas, sua janta hoje vai ser as primeiras batatas que descascou errado." Disse Severo balançando aquele cutelo com sangue e fragmento de ossos ainda na lamina.

Apenas aceitei, já que não queria passar fome o que eu não sabia era que eu mesmo teria que preparar as minhas batatas, sendo que nunca havia pegado em uma faca e agora já teria que cozinhar para mim mesmo. Enfim, fiz do jeito que me parecia mais sensato, cozinhei em água fervente e depois usei os restos de carne de porco que estavam jogadas em cima da mesa, não foi um banquete e nem chegou perto, mas por hora me alimentou bem. Posteriormente ao jantar, Clarence me instruiu de minhas obrigações, que seria ajudar na cozinha e quando não houvesse o que ser feito lá, iria limpar o convés. Rapidamente ia me adaptando por mais que as funções motoras e cognitivas para realizar as tarefas não fossem das melhores.
As coisas começaram a dar errado a partir do terceiro dia, enquanto descascava batatas na cozinha com a companhia de Severo, mesmo que calado e sério, me perdi em devaneios e acabei cortando o dedo com a faca. O sangue logo estava por toda a minha roupa, devido ao corte profundo, e começou a regar as batatas já sem cascas no cesto, foi ai que Severo notou o ocorrido e me jogou um pano para estancar o sangramento e disse para eu ir me trocar e lavar minha mão. Lavei minha mão e troquei as vestes, mas não tinha avisado o Severo sobre o sangue nas batatas. Corri até a cozinha para lavar elas em água corrente assim tirar aquele sangue delas, mas chegando lá já era tarde. Severo já tinha colocado elas inteiras dentro da grande panela, eu não quis falar nada para não o aborrecer nem atrapalhar seu serviço, mas naquela noite eu não jantei. Meu estômago começou a revirar como as ondas do grande oceano, e de fato o oceano se fazia revolto e tempestuoso, passei grande parte da noite vomitando pela escotilha do meu quarto. 

Quando me levantei na manhã seguinte, me dirigi até a cozinha como habitualmente fazia, e notei algo estranho, não havia encontrado nenhum dos marujos e nem o capitão pelo caminho que leva a cozinha. Muito embora o oceano estivesse mais calmo do que na noite passada, ainda balançava muito o barco. Meu estômago foi se embrulhando novamente e tive que correr até o convés para vomitar.
Vomitei até o que não tinha para ser vomitado, e ainda com náusea olhei em volta e notei que o convés estava vazio, o que era ainda mais estranho pois a esta hora todos já deviam estar em seus postos de trabalho. Fui até a cabine do capitão, bati na porta duas vezes e esperei. Ninguém respondeu, bati mais duas vezes e chamei em seguida, de novo sem resposta, então tomei a decisão de abrir a porta.

-"Com a sua licença Senhor, estou entrando." 
Assim que abro a porta, o aroma da morte beija meu rosto e deixa meus cabelos em pé, os pelos do meu corpo se ouriçam e o vomito sobe até a boca e como se não fosse o suficiente eu vomito novamente. A cena era terrível e devastadora, havia sangue e vomito para todos os lados. Cheguei próximo ao capitão deitado em sua cama, e seus olhos estavam pálidos e sem vida como os olhos de um peixe morto, tinha espuma saindo de sua boca, sangue saindo dos seus ouvidos e nariz, a cama estava toda molhada em meio a urina e vomito. Entrei em choque.
Ainda em estado de insanidade, resolvi ir até os outros quartos e não poderia esperar menos, todos estavam no mesmo estado e até pior. Comecei a pensar. 
-"Eu os matei, eu os matei, eu os matei." 
Subi até o convés novamente, com as pernas bambas e deitei no deck olhando o céu e as gaivotas que voavam acima. E ali fiquei, o dia todo e a noite toda sem me mover, entrei em um estado de dormência em decorrência ao choque que tive após vislumbrar com meus olhos ingênuos todo aquele horror.
Acordei somente no raiar do outro dia, com um estrondo oriundo da proa. Uma batida, a embarcação havia chegado em terra firme, mas inóspita o que piorava mil vezes o cenário atual. Escrevi com o pincel uma carta a qualquer que fosse o destinatário, coloquei dentro de uma garrafa vazia e tapei com uma rolha, arremessando ao mar posteriormente.  
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