António Ramos Rosa

António Ramos Rosa

António Victor Ramos Rosa, foi um poeta, português, tradutor e desenhador. Ramos Rosa estudou em Faro, não tendo acabado o ensino secundário por questões de saúde.

1924-10-17 Faro
2013-09-23 Lisboa
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Estamos À Sombra de Uma Grande Folha Verde

Estamos à sombra de uma grande folha verde.
Uma grande folha de água.
Sem vertigens, mergulhamos na materna espessura de um paraíso vegetal. Toda a densidade do obscuro mundo animal se resolveu na paciência forte e suave de uma terna e acolhedora superfície arborescente que nos envolve na sensual flexuosidade dos seus ramos robustos, linhas determinadas, completas e compactas na sua generosa amplitude de promessa que em folhas, frutos, flores mantém a integridade da energia única que as compõe e as conduz ao seu termo último.
É a metamorfose de uma flora abolindo a fronteira entre o terrestre e o aquático, é o mar e a floresta, é a amorosa e firme direcção do desejo incandescente que encontra o limite da forma terminal e se manifesta na pujante plenitude do compacto, a energia viva visível em toda a sua extensão, como se todo o impulso criador se configurasse no limite máximo da fixação, da imobilidade.
Uma flora iridiscente mas cálida, paciente e impetuosa.

como o rio do pulso que a rasga
como a seiva das veias harmoniosas
árvore marinha
liberta em volutas e espirais
com ramos densos como lâmpadas,
delicadeza vegetal, aquática,
dança navegada.

A grande folha verde olha-nos liberta das suas profundezas. Que vegetal suavidade há nesse olhar de um mocho liberto da incandescente noite dos seus olhos, liberto da densa noite animal, da negrura cósmica, todo ele restituído à cálida pureza de uma verde claridade diurna arrancada às trevas brilhantes do olhar profundo e vazio. Há nesta doce e tranquila claridade verde a ligeira ondulação de certas superfícies de água cuja imobilidade não anula o ténue fluir da corrente que a conduz. É a densidade mansa da espessura materna, o sol verde coado pelo fundo e vindo à tona como uma larga e lisa folha de água.

A circulante fronteira
entre a terra e a água
entre o verde e a treva
entre a raiz e a flor
entre a noite e a luz
entre as veias e o espaço.

Habitamos a espessura do fundo obscuro da floresta-mar, mas somos ao mesmo tempo reconduzidos a um campo de claridade em que o informulado se metamorfoseou na límpida e fixa pureza de um olhar.
Habitamos a superfície, a verdadeira superfície, a verde pele de um corpo, um seio de terra e água onde a boca dos olhos e o olho da boca se dessedentam desde as raízes da sede, onde todos os poros do olhar se nutrem como pólipos que se distendessem até atingirem a aderência pura à lisa parede de água materna. Formas cumpridas como frutos fixos, compactos, límpidos, nutridos do radioso vigor de todo um percurso de seiva irradiando na amplitude mas cuja nítida generosidade evitou a dissipação mantendo a plenitude concêntrica no aberto movimento da irradiação.
No interior, na perfeita suavidade do interior aberto, visão no limite em que a imobilidade, ou a suspensão, dir-se-ia oferecer-nos a própria matéria do olhar, a libertação da visão em si mesma, essa delicadíssima flutuação de algas, anémonas, estrelas-do-mar, captação viva do movimento de uma subtilíssima percepção a um tempo musical e poética e todavia essencialmente pictórica. Tal percepção mantém a compacidade do objecto, o contorno, a luz e o sabor das suas formas, a sua densidade de coisa. Mas para além da fixidez e da retenção que poderiam congelar a vida das formas, para além dos respeitados limites objectivos que poderiam circunscrever-se à fria perfeição das linhas, existe este vigor verde, este maternal e puro saber da vida que vai encontrando as flexões, os ritmos e o pulsar da verdadeira terra original, de um mundo descoberto na sua pureza radiosa.
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