António Ramos Rosa

António Ramos Rosa

António Victor Ramos Rosa, foi um poeta, português, tradutor e desenhador. Ramos Rosa estudou em Faro, não tendo acabado o ensino secundário por questões de saúde.

1924-10-17 Faro
2013-09-23 Lisboa
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A Metamorfose Branca

Por toda a parte
um corpo
o mesmo corpo
Para mutilar
Para eliminar

Por toda a parte
a anarquia do canto
dos nervos
da escrita
do único corpo?

O universo escreve-se no corpo
Tudo se escreve no corpo
A mulher     o animal     a noite intacta
a morte
a ferida permanente

(A mão fora do abismo tenta escrever ainda mas quê? Com que instrumento subtil paciente impaciente? Com que matéria? Em que rectângulo do ar recortado no vazio?)

Tudo desaparece
A nitidez da letra
apaga-se
no papel
Uma palavra subsiste uma marca
no corpo
no texto

A marca do corpo desfaz
o texto
que se apaga
e arde
de letra em letra
de ferida em ferida

Cruel nudez do texto e do corpo
do corpo perdido
fixo
na letra do texto
que o devora
que o desnuda
anula

O texto apaga-se
e acende-se
no limite
metamorfose da morte do corpo
vida do corpo impossível
em cada letra flui o sangue novo
da palavra do corpo

Uma ferida só uma longa ferida
de terra
vocábulo de sangue e pedra
………………………………………………
Este é o espaço mortal do corpo
Este é o corpo nascente e branco do vocábulo
Esta é a respiração da página
Constelações navios promessas
Sangue da metamorfose da palavra

No limiar do deserto as palavras de fogo branco são a cinza de um fogo perdido de um fogo a acender com a respiração do deserto ou do mar.
As palavras encrespam-se acendem-se ao vento que as despe e as despoja avivando com o ar vivo do sal e da areia a rosa de um dizer que nasce da incessante solidão da sua sede.

Os vocábulos são como um rumor de cavalos
adormecidos
e a sua brancura é vida
através da morte e do branco

Cada caminho de palavras na página
conduz-nos
a uma pedra
Esta pedra é a do sepulcro ou o sinal de um perpétuo adiamento
uma espera indefinida sem esperança
sinal de suspensão
que se anula
para que o caminho prossiga
de novo
as palavras vivem solitárias
o sal o vento e o sol despertam
uma boca ressequida e verde uma boca lenta longínqua de ócio fresco

Vivem as palavras
do suicídio da brancura
renascem     brancas
espuma breve
de que pureza mortal
para que sede sempre insatisfeita
de um início de água
de uma linguagem de água

(A morte das palavras na página será a metamorfose que não foge à morte a vida a outra vida que seria o início sempre possível e impossível do nosso nascimento.)

Mas que palavras dirão a morte impossível inominável? Que morte é a morte da linguagem e do corpo? Simulacro aparência espectáculo fumo de palavras sem sangue e sem corpo
infinita e ridícula hemorragia em torno de um ponto
morto que nada reflecte nem o eco sequer de qualquer vida. Por momentos e num espaço que logo se olvida a palavra morre com a morte sem a morte irrecuperável soberana

o hiato aqui é inenarrável
A linguagem renascerá além na margem fria da manhã
A linguagem será o corpo o corpo nu(lo)

O corpo de metamorfose é o corpo que já não pertence à vida nem à morte tornou-se na linguagem obscura e branca de cada vocábulo fechado e aberto como uma ferida. Quem fala é a língua desta morte-vida aqui e para além sempre no limiar do inacessível. Milhares de pálpebras se fecham sob cada palavra que se levanta e o silêncio desses olhos perturba a palavra, torna-a ilegível na sua legibilidade

O vocábulo não é plano e liso Nos seus subterrâneos milhares de vozes se calaram para que o vocábulo emergisse como a palavra da metamorfose no limiar do nada

Na sua impossibilidade esta é a única voz que atravessa o inexorável a voz paciente e sôfrega ardente e impaciente a voz que espera sem esperança
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