Pablo Neruda
Pablo Neruda foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha e no México.
1904-07-12 Parral, Chile
1973-09-23 Santiago, Chile
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Canto I - A Lâmpada Mágica
Amor América (1400)
Antes do chinó e do fraque
foram os rios, rios arteriais:
foram as cordilheiras em cuja vaga puída
o condor ou a neve pareciam imóveis;
foi a umidade e a mata, o trovão,
sem nome ainda, as pampas planetárias.
O homem terra foi, vasilha, pálpebra
do barro trêmulo, forma de argila,
foi cântaro caraíba, pedra chibcha,
taça imperial ou sílica araucana.
Terno e sangrento foi, porém no punho
de sua arma de cristal umedecido
as iniciais da terra estavam escritas.
Ninguém pôde
recordá-las depois: o vento
as esqueceu, o idioma da água
foi enterrado, as chaves se perderam
ou se inundaram de silêncio ou sangue.
Não se perdeu a vida, irmãos pastorais.
Mas como uma rosa selvagem
caiu uma gota vermelha na floresta
e apagou-se uma lâmpada da terra.
Estou aqui para contar a história.
Da paz do búfalo
até as fustigadas areias
da terra final, nas espumas
acumuladas de luz antártica,
e pelas Lapas despenhadas
da sombria paz venezuelana,
te busquei, pai meu,
jovem guerreiro de treva e cobre,
ou tu, planta nupcial, cabeleira indomável,
mãe jacaré, pomba metálica.
Eu, incaico do lodo,
toquei a pedra e disse:
Quem me espera? E apertei a mão
sobre um punhado de cristal vazio.
Porém andei entre flores zapotecas
e doce era a luz como um veado
e era a sombra como uma pálpebra verde.
Terra minha sem nome, sem América,
estame eguinocial, lança de púrpura,
teu aroma me subiu pelas raízes
até a taça que bebia, até a mais delgada
palavra não nascida de minha boca.
I
Vegetações
Às terras sem nomes e sem números
baixava o vento de outros domínios,
trazia a chuva fios celestes,
e o deus dos altares impregnados
devolvia as flores e as vidas.
Na fertilidade crescia o tempo.
O jacarandá levantava espuma
feita de resplendores transmarinos,
a araucária de lanças eriçadas
era magnitude contra neve,
a primordial árvore acaju,
de sua copa destilava sangue,
e no sul dos lariços,
a árvore trovão, a árvore vermelha,
a árvore do espinho, a árvore mãe,
o ceibo vermelhão, a árvore borracha,
eram volume terrenal, a ressoar,
eram existências territoriais.
Um novo aroma propagado
enchia, pelos interstícios
da terra, as respirações
convertidas em fumo e fragrância:
o tabaco silvestre erguia
seu rosal de ar imaginário.
Qual lança terminada em fogo
surgiu o milho, e sua estatura
debulhou-se e de novo nasceu,
disseminou sua farinha, teve
mortos sob as suas raízes,
e, logo, em seu berço, viu
crescer os deuses vegetais.
Ruga e extensão, disseminava
a semente do vento
sobre as plumas da cordilheira,
espessa luz de gérmen e mamilos,
aurora cega amamentada
pelos ungüentos terrenais
da implacável latitude chuvosa,
das cerradas noites mananciais
e das cisternas matutinas.
E ainda nas planuras
como lâminas de planeta,
sob uma suave povoação de estrelas,
rei da selva, o umbuzeiro detinha
o ar livre, o vôo rumoroso
e cavalgava o pampa, dominando-o
com seu ramal de rédeas e raízes.
América arvoredo,
sarça selvagem entre os mares,
de pólo a pólo balançavas,
tesouro verde, a tua mata.
Germinava a noite
em cidades de cascas sagradas,
em sonoras madeiras,
extensas folhas que cobriam
a pedra germinal, os nascimentos.
Útero verde, americana
savana seminal, adega espessa,
um ramo nasceu como uma ilha,
uma folha foi forma da espada,
uma flor foi relâmpago e medusa,
um cacho arredondou seu resumo,
uma raiz desceu às trevas.
II
Algumas bestas
Era o crepúsculo do iguano.
Da arcoirisada rosácea
sua língua como um dardo
fundia-se na verdura,
o formigueiro monacal pisava
com melodioso pé a selva,
o guanaco fino como o oxigênio
nas largas alturas pardas
ia calçando botas de ouro,
enquanto a lhama abria cândidos
olhos na delicadeza do mundo cheia de rocio.
Os macacos trançavam um fio
interminavelmente erótico
nas ribeiras da aurora,
derrubando muros de pólen
e espantando o vôo violeta
das borboletas de Muzo.
Era a noite dos jacarés,
a noite pura e pululante
dos focinhos saindo do lodo,
e dos lamaçais sonolentos
um ruído opaco de armaduras
retornava à origem terrestre.
O jaguar tocava as folhas
com a sua ausência fosforescente,
o puma corre nas ramagens
como o fogo devorador
enquanto ardem nele os olhos
alcoólicos da selva.
Os texugos coçam os pés
do rio, farejam o ninho
cuja delícia palpitante
atacarão com dentes rubros.
E no fundo da água magna,
como o círculo da terra,
está a sucuri gigante
coberta de barros rituais,
devoradora e religiosa.
III
Vêm os pássaros
Tudo era vôo em nossa terra.
Como gotas de sangue e plumas
os cardeais mergulhavam em sangue
o amanhecer de Anáhuac.
O tucano era uma adorável
caixa de frutas envernizadas,
o colibri guardou as chispas
originais do relâmpago
e suas minúsculas fogueiras
ardiam no ar imóvel.
Os ilustres papagaios enchiam
as profundidades da folhagem
como lingotes de ouro verde
recém-saídos da massa
dos pântanos submersos,
e de seus olhos circulares
mirava uma argola amarela,
velha como os minerais.
Todas as águias do céu
nutriam sua estirpe sangrenta
no azul não-habitado,
e sobre as penas carnívoras
voava acima do mundo
o condor, rei assassino,
frade solitário do céu,
talismã negro da neve,
furacão da falcoaria.
A engenharia do joão-de-barro
fazia do barro fragrante
pequenos teatros sonoros
onde aparecia cantando.
O atalha-caminhos ia
dando o seu grito umedecido
na margem dos poços.
A torcaz araucana fazia
ásperos ninhos de mato
onde deixava a real prenda
de seus ovos azulados.
A loica do sul, fragrante,
doce carpinteira de outono,
mostrava o seu peito estrelado
de constelação escarlate,
e o chincol austral erguia
sua flauta recém-recolhida
da eternidade da água.
Mas, úmido como um nenúfar,
o flamingo abria as suas portas
de rosada catedral
e voava como a aurora
longe do bosque bochornoso
onde se pendura a pedraria
do quetzal, que de repente acorda,
se mexe, desliza, fulgura
e faz voar a sua brasa virgem.
Voa uma montanha marinha
para as ilhas, uma lua
de aves que vão para o sul,
sobre as ilhas fermentadas
do Peru.
É um rio vivo de sombra,
é um cometa de pequenos
corações inumeráveis
que escurecem o sol do mundo
como um astro de cauda espessa
palpitando para o arquipélago.
E no final do iracundo
mar, na chuva do oceano,
surgem as asas do albatroz
como dois sistemas de sal.
instituindo no silêncio,
entre as rajadas torrenciais.
com a sua espaçosa hierarquia,
a ordem das soledades.
IV Os rios acodem
Amada dos rios, combatida
por água azul e gotas transparentes,
uma árvore de veias é teu espectro
de deusa escura que morde maçãs:
então ao acordares despida
eras tatuada pelos rios,
e nas alturas molhadas a tua cabeça
enchia o mundo de novos orvalhos.
A água te estremecia na cintura.
Eras de mananciais construída
e lagos te brilhavam na fronte.
De tua floresta mãe recolhias
a água como lágrimas vitais,
e arrastavas as torrentes às areias
- através da noite planetária,
cruzando ásperas pedras dilatadas,
quebrando no caminho
todo o sal da geologia,
cortando bosques de compactos muros,
separando os músculos do quartzo.
Orinoco
Orinoco, deixa-me em tuas margens
daquela hora sem hora:
deixa-me como outrora partir despido
em tuas trevas batismais.
Orinoco de água escarlate,
deixa-me mergulhar as mãos que retornam
a tua maternidade, a teu transcurso,
rio de raças, pátria de raízes,
teu largo rumor, tua lâmina selvagem
vem de onde eu venho, das pobres
e altivas soledades, dum segredo
como um sangue, de uma silenciosa
mãe de argila.
Amazonas
Amazonas,
capital das sílabas da água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
te caem os rios como aves, te cobrem
os pistilos cor de incêndio,
os grandes troncos mortos te povoam de perfume,
a lua não pode vigiar-te ou medir-te.
És carregado de esperma verde
como árvore nupcial, és prateado
pela primavera selvagem,
és avermelhado de madeiras,
azul entre a lua das pedras,
vestido de vapor ferruginoso,
lento como um caminho de planeta.
Tequendama
Tequendama, lembras
tua passagem solitária nas alturas
sem testemunha, fio
de solidões, vontade fina,
linha celeste, flecha de platina,
lembras passo a passo
abrindo muros de ouro
até cair do céu no teatro
aterrador da pedra vazia?
Bío-bío
Fala-me no entanto, Bío-Bío,
são as tuas palavras na minha boca
as que deslizam, tu me deste
a linguagem, o canto noturno
mesclado de chuva e folhagem.
Tu, sem que ninguém olhasse um menino,
me contaste o amanhecer
da terra, a poderosa
paz de teu reino, o machado enterrado
com um ramo de flechas mortas,
o que as folhas da caneleira
em mil anos te relataram.
e logo te vi ao entregar-te ao mar
dividido em bocas e seios,
largo e florido, murmurando
uma história cor de sangue.
V
Minerais
Mãe dos metais, te queimaram,
te morderam, te martirizaram,
te corroeram, te apodreceram
mais tarde, quando os ídolos
já não podiam defender-te.
Cipós subindo aos cabelos
da noite selvática, acajus
formadores do centro das Flechas,
ferro agrupado no desvão florido,
garra altaneira das condutoras
águias de minha terra,
água desconhecida, sol malvado,
vaga de cruel espuma,
tubarão espreitante, dentadura
das cordilheiras antárticas,
deusa serpente vestida de plumas
e enrarecida por azul veneno,
febre ancestral inoculada
por migrações de asas e formigas,
tremedais, borboletas
de aguilhão ácido, madeiras
avizinhando-se do mineral,
por que o coro dos hostis
não defendeu o tesouro?
Mãe das pedras
escuras que tingiam
de sangue as tuas pestanas!
A turquesa
de suas etapas, do brilho larvário
apenas nascia para as jóias
do sol sacerdotal, dormia o cobre
em seus sulfúricos estratos,
e o antimônio ia de camada em camada
à profundidade de nossa estrela.
A hulha brilhava em resplendores-negros
como o total reverso da neve,
negro gelo enquistado na secreta
tormenta imóvel da terra,
quando um fulgor de pássaro amarelo
enterrou as correntes do enxofre
ao pé das glaciais cordilheiras.
O vanádio vestia-se de chuva
para entrar na câmara do ouro,
afiava facas o tungstênio
c o bismuto trançava
medicinais cabeleiras.
Os vaga-lumes equivocados
ainda continuavam nos altos,
soltando goteiras de fósforo
nos sulcos dos abismos
e nos cumes ferruginosos.
São as vinhas do meteoro,
os subterrâneos da safira.
O soldadinho nas mesetas
dorme com roupa de estanho.
O cobre funda os seus crimes
nas trevas insepultas
carregadas de matéria verde,
e no silêncio acumulado
dormem as múmias destrutoras.
Na doçura chibcha o ouro
sai de opacos oratórios
lentamente até os guerreiros,
converte-se em rubros estames,
em corações laminados,
em fosforescência terrestre,
em dentadura fabulosa.
Durmo então com o sonho
de uma semente, de uma larva,
e as escadas de Querétaro
desço contigo.
Me esperaram
as pedras de lua indecisa,
a jóia pesqueira da opala,
a árvore morta numa igreja
gelada pelas ametistas.
Como podias, Colômbia oral,
saber que tuas pedras descalças
ocultavam uma tormenta
de ouro iracundo,
como, pátria
da esmeralda, ias perceber
que a jóia de morte e mar,
o fulgor no seu calafrio,
escalaria as gargantas
dos dinastas invasores?
Eras pura noção de pedra,
rosa educada pelo sal,
maligna lágrima enterrada,
sereia de artérias adormecidas,
beladona, serpente negra.
(Enquanto a palmeira dispersava
sua coluna em altas travessas,
ia o sal destituindo
o resplendor das montanhas,
convertendo em veste de quartzo
as gotas de chuva nas folhas
e transmutando os abetos
em avenidas de carvão.
)
Corri pelos ciclones até o perigo
e desci à luz da esmeralda,
ascendi ao pâmpano dos rubis,
mas calei-me para sempre na estátua
do nitrato estendido no deserto.
Vi como na cinza
do ossudo altiplano
levantava o estanho
suas corais ramagens de veneno
até estender como uma selva
a névoa equinocial, até cobrir o sinete
de nossas cereais monarquias.
VI
Os homens
Como a taça da argila era a raça mineral, o homem
feito de pedras e atmosfera,
limpo como os cântaros, sonoro.
A lua fez a massa dos caraíbas,
extraiu oxigênio sagrado,
macerou as flores e as raízes.
Andou o homem das ilhas
tecendo ramos e grinaldas,
de panos cor de enxofre,
e soprando o tritão marinho
à beira das espumas.
O tarahumara vestiu-se de aguilhão
e nas extensões do noroeste
com sangue e pederneiras criou o fogo,
enquanto o universo ia nascendo
outra vez na argila do tarasco:
os mitos das terras amorosas,
a exuberância úmida de onde
lodo sexual e frutas derretidas
viriam a ser atitudes dos deuses
ou pálidas paredes de vasilhas.
Como faisões deslumbrantes
desciam os sacerdotes
das escadarias astecas.
Os degraus triangulares
sustinham o inumerável
relâmpago das vestimentas.
E a pirâmide augusta,
pedra por pedra, agonia e ar,
em sua estrutura dominadora
guardava como uma amêndoa
um coração sacrificado.
Num trovão como um uivo
caía o sangue pelas
escarlinatas sagradas.
Mas multidões de povoados
teciam a fibra, guardavam
o porvir das colheitas,
trançavam o fulgor da pluma,
convenciam a turquesa,
e em trepadeiras têxteis
expressavam a luz do mundo.
Maias, havíeis derrubado
a árvore do conhecimento.
Com aroma de raças celeiras
erguiam-se as estruturas
do exame e da morte,
e perscrutáveis nos poços,
arrojando-lhes noivas de ouro,
a permanência dos germes.
Chichén, teus amores cresciam
no amanhecer da selva.
Os trabalhadores iam fazendo
a simetria dos favos de mel
em tua cidade amarela,
e o pensamento ameaçava
o sangue dos pedestais,
desmontava o céu na sombra,
conduzia a medicina,
escrevia sobre as pedras.
Era o sul um assombro dourado.
As altas soledades
de Machu Picchu na porta do céu
estavam cheias de azeite e cantos,
o homem desfizera as moradas.
e no novo domínio, entre os cumes,
o lavrador tocava a semente
com seus dedos feridos pela neve.
O Cuzco amanhecia como um
trono de torreões e celeiros
e era a flor pensativa do mundo
aquela raça de pálida sombra
em cujas mãos abertas tremulavam
diademas de imperiais ametistas.
Germinava nos terraços
o milho das altas serras
e nas vulcânicas sendas
iam os vasos e os deuses.
A agricultura perfumava
o reino das cozinhas
e estendia sobre os tetos
um manto de sol debulhado.
(Doce raça, folha de serras,
estirpe de torre e turquesa;
fecha-me os olhos agora,
antes de irmos ao mar
de onde as dores chegam.
)
Aquela selva azul era uma gruta
e no mistério de árvores e treva
o guarani cantava como
o fumo que sobe na tarde,
a água sobre as folhagens,
a chuva mim dia de amor,
a tristeza junto aos rios.
No fundo da América sem nome
estava Arauco entre as águas
vertiginosas, apartado
por todo o frio do planeta.
Olhai o grande sul solitário.
Não se vê a fumaça nas alturas.
Vêem-se apenas as nevascas
e o vendaval rechaçado
pelas ásperas araucárias.
Não procures sob o verde fechado
o canto da olaria.
Tudo é silêncio de água e vento.
Mas nas folhas espia o guerreiro.
Entre os lariços um grito.
Uns olhos de tigre ao meio
das alturas da neve.
Olha as lanças a descansar.
Escuta o sussurro do ar
atravessado pelas flechas.
Olha os peitos e as pernas
e as cabeleiras sombrias
brilhando à luz da lua.
Olha o vazio dos guerreiros.
Não há ninguém.
Trina a diuca
feito água na noite pura.
Cruza o condor o seu vôo negro.
Não há ninguém.
Escutas? É o passo
do puma no ar e nas folhas.
Não há ninguém.
Escuta.
Escuta a árvore,
escuta a árvore araucana.
Não há ninguém.
Olha as pedras.
Olha as pedras de Arauco.
Não há ninguém, somente as árvores.
Somente as pedras, Arauco.
Antes do chinó e do fraque
foram os rios, rios arteriais:
foram as cordilheiras em cuja vaga puída
o condor ou a neve pareciam imóveis;
foi a umidade e a mata, o trovão,
sem nome ainda, as pampas planetárias.
O homem terra foi, vasilha, pálpebra
do barro trêmulo, forma de argila,
foi cântaro caraíba, pedra chibcha,
taça imperial ou sílica araucana.
Terno e sangrento foi, porém no punho
de sua arma de cristal umedecido
as iniciais da terra estavam escritas.
Ninguém pôde
recordá-las depois: o vento
as esqueceu, o idioma da água
foi enterrado, as chaves se perderam
ou se inundaram de silêncio ou sangue.
Não se perdeu a vida, irmãos pastorais.
Mas como uma rosa selvagem
caiu uma gota vermelha na floresta
e apagou-se uma lâmpada da terra.
Estou aqui para contar a história.
Da paz do búfalo
até as fustigadas areias
da terra final, nas espumas
acumuladas de luz antártica,
e pelas Lapas despenhadas
da sombria paz venezuelana,
te busquei, pai meu,
jovem guerreiro de treva e cobre,
ou tu, planta nupcial, cabeleira indomável,
mãe jacaré, pomba metálica.
Eu, incaico do lodo,
toquei a pedra e disse:
Quem me espera? E apertei a mão
sobre um punhado de cristal vazio.
Porém andei entre flores zapotecas
e doce era a luz como um veado
e era a sombra como uma pálpebra verde.
Terra minha sem nome, sem América,
estame eguinocial, lança de púrpura,
teu aroma me subiu pelas raízes
até a taça que bebia, até a mais delgada
palavra não nascida de minha boca.
I
Vegetações
Às terras sem nomes e sem números
baixava o vento de outros domínios,
trazia a chuva fios celestes,
e o deus dos altares impregnados
devolvia as flores e as vidas.
Na fertilidade crescia o tempo.
O jacarandá levantava espuma
feita de resplendores transmarinos,
a araucária de lanças eriçadas
era magnitude contra neve,
a primordial árvore acaju,
de sua copa destilava sangue,
e no sul dos lariços,
a árvore trovão, a árvore vermelha,
a árvore do espinho, a árvore mãe,
o ceibo vermelhão, a árvore borracha,
eram volume terrenal, a ressoar,
eram existências territoriais.
Um novo aroma propagado
enchia, pelos interstícios
da terra, as respirações
convertidas em fumo e fragrância:
o tabaco silvestre erguia
seu rosal de ar imaginário.
Qual lança terminada em fogo
surgiu o milho, e sua estatura
debulhou-se e de novo nasceu,
disseminou sua farinha, teve
mortos sob as suas raízes,
e, logo, em seu berço, viu
crescer os deuses vegetais.
Ruga e extensão, disseminava
a semente do vento
sobre as plumas da cordilheira,
espessa luz de gérmen e mamilos,
aurora cega amamentada
pelos ungüentos terrenais
da implacável latitude chuvosa,
das cerradas noites mananciais
e das cisternas matutinas.
E ainda nas planuras
como lâminas de planeta,
sob uma suave povoação de estrelas,
rei da selva, o umbuzeiro detinha
o ar livre, o vôo rumoroso
e cavalgava o pampa, dominando-o
com seu ramal de rédeas e raízes.
América arvoredo,
sarça selvagem entre os mares,
de pólo a pólo balançavas,
tesouro verde, a tua mata.
Germinava a noite
em cidades de cascas sagradas,
em sonoras madeiras,
extensas folhas que cobriam
a pedra germinal, os nascimentos.
Útero verde, americana
savana seminal, adega espessa,
um ramo nasceu como uma ilha,
uma folha foi forma da espada,
uma flor foi relâmpago e medusa,
um cacho arredondou seu resumo,
uma raiz desceu às trevas.
II
Algumas bestas
Era o crepúsculo do iguano.
Da arcoirisada rosácea
sua língua como um dardo
fundia-se na verdura,
o formigueiro monacal pisava
com melodioso pé a selva,
o guanaco fino como o oxigênio
nas largas alturas pardas
ia calçando botas de ouro,
enquanto a lhama abria cândidos
olhos na delicadeza do mundo cheia de rocio.
Os macacos trançavam um fio
interminavelmente erótico
nas ribeiras da aurora,
derrubando muros de pólen
e espantando o vôo violeta
das borboletas de Muzo.
Era a noite dos jacarés,
a noite pura e pululante
dos focinhos saindo do lodo,
e dos lamaçais sonolentos
um ruído opaco de armaduras
retornava à origem terrestre.
O jaguar tocava as folhas
com a sua ausência fosforescente,
o puma corre nas ramagens
como o fogo devorador
enquanto ardem nele os olhos
alcoólicos da selva.
Os texugos coçam os pés
do rio, farejam o ninho
cuja delícia palpitante
atacarão com dentes rubros.
E no fundo da água magna,
como o círculo da terra,
está a sucuri gigante
coberta de barros rituais,
devoradora e religiosa.
III
Vêm os pássaros
Tudo era vôo em nossa terra.
Como gotas de sangue e plumas
os cardeais mergulhavam em sangue
o amanhecer de Anáhuac.
O tucano era uma adorável
caixa de frutas envernizadas,
o colibri guardou as chispas
originais do relâmpago
e suas minúsculas fogueiras
ardiam no ar imóvel.
Os ilustres papagaios enchiam
as profundidades da folhagem
como lingotes de ouro verde
recém-saídos da massa
dos pântanos submersos,
e de seus olhos circulares
mirava uma argola amarela,
velha como os minerais.
Todas as águias do céu
nutriam sua estirpe sangrenta
no azul não-habitado,
e sobre as penas carnívoras
voava acima do mundo
o condor, rei assassino,
frade solitário do céu,
talismã negro da neve,
furacão da falcoaria.
A engenharia do joão-de-barro
fazia do barro fragrante
pequenos teatros sonoros
onde aparecia cantando.
O atalha-caminhos ia
dando o seu grito umedecido
na margem dos poços.
A torcaz araucana fazia
ásperos ninhos de mato
onde deixava a real prenda
de seus ovos azulados.
A loica do sul, fragrante,
doce carpinteira de outono,
mostrava o seu peito estrelado
de constelação escarlate,
e o chincol austral erguia
sua flauta recém-recolhida
da eternidade da água.
Mas, úmido como um nenúfar,
o flamingo abria as suas portas
de rosada catedral
e voava como a aurora
longe do bosque bochornoso
onde se pendura a pedraria
do quetzal, que de repente acorda,
se mexe, desliza, fulgura
e faz voar a sua brasa virgem.
Voa uma montanha marinha
para as ilhas, uma lua
de aves que vão para o sul,
sobre as ilhas fermentadas
do Peru.
É um rio vivo de sombra,
é um cometa de pequenos
corações inumeráveis
que escurecem o sol do mundo
como um astro de cauda espessa
palpitando para o arquipélago.
E no final do iracundo
mar, na chuva do oceano,
surgem as asas do albatroz
como dois sistemas de sal.
instituindo no silêncio,
entre as rajadas torrenciais.
com a sua espaçosa hierarquia,
a ordem das soledades.
IV Os rios acodem
Amada dos rios, combatida
por água azul e gotas transparentes,
uma árvore de veias é teu espectro
de deusa escura que morde maçãs:
então ao acordares despida
eras tatuada pelos rios,
e nas alturas molhadas a tua cabeça
enchia o mundo de novos orvalhos.
A água te estremecia na cintura.
Eras de mananciais construída
e lagos te brilhavam na fronte.
De tua floresta mãe recolhias
a água como lágrimas vitais,
e arrastavas as torrentes às areias
- através da noite planetária,
cruzando ásperas pedras dilatadas,
quebrando no caminho
todo o sal da geologia,
cortando bosques de compactos muros,
separando os músculos do quartzo.
Orinoco
Orinoco, deixa-me em tuas margens
daquela hora sem hora:
deixa-me como outrora partir despido
em tuas trevas batismais.
Orinoco de água escarlate,
deixa-me mergulhar as mãos que retornam
a tua maternidade, a teu transcurso,
rio de raças, pátria de raízes,
teu largo rumor, tua lâmina selvagem
vem de onde eu venho, das pobres
e altivas soledades, dum segredo
como um sangue, de uma silenciosa
mãe de argila.
Amazonas
Amazonas,
capital das sílabas da água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
te caem os rios como aves, te cobrem
os pistilos cor de incêndio,
os grandes troncos mortos te povoam de perfume,
a lua não pode vigiar-te ou medir-te.
És carregado de esperma verde
como árvore nupcial, és prateado
pela primavera selvagem,
és avermelhado de madeiras,
azul entre a lua das pedras,
vestido de vapor ferruginoso,
lento como um caminho de planeta.
Tequendama
Tequendama, lembras
tua passagem solitária nas alturas
sem testemunha, fio
de solidões, vontade fina,
linha celeste, flecha de platina,
lembras passo a passo
abrindo muros de ouro
até cair do céu no teatro
aterrador da pedra vazia?
Bío-bío
Fala-me no entanto, Bío-Bío,
são as tuas palavras na minha boca
as que deslizam, tu me deste
a linguagem, o canto noturno
mesclado de chuva e folhagem.
Tu, sem que ninguém olhasse um menino,
me contaste o amanhecer
da terra, a poderosa
paz de teu reino, o machado enterrado
com um ramo de flechas mortas,
o que as folhas da caneleira
em mil anos te relataram.
e logo te vi ao entregar-te ao mar
dividido em bocas e seios,
largo e florido, murmurando
uma história cor de sangue.
V
Minerais
Mãe dos metais, te queimaram,
te morderam, te martirizaram,
te corroeram, te apodreceram
mais tarde, quando os ídolos
já não podiam defender-te.
Cipós subindo aos cabelos
da noite selvática, acajus
formadores do centro das Flechas,
ferro agrupado no desvão florido,
garra altaneira das condutoras
águias de minha terra,
água desconhecida, sol malvado,
vaga de cruel espuma,
tubarão espreitante, dentadura
das cordilheiras antárticas,
deusa serpente vestida de plumas
e enrarecida por azul veneno,
febre ancestral inoculada
por migrações de asas e formigas,
tremedais, borboletas
de aguilhão ácido, madeiras
avizinhando-se do mineral,
por que o coro dos hostis
não defendeu o tesouro?
Mãe das pedras
escuras que tingiam
de sangue as tuas pestanas!
A turquesa
de suas etapas, do brilho larvário
apenas nascia para as jóias
do sol sacerdotal, dormia o cobre
em seus sulfúricos estratos,
e o antimônio ia de camada em camada
à profundidade de nossa estrela.
A hulha brilhava em resplendores-negros
como o total reverso da neve,
negro gelo enquistado na secreta
tormenta imóvel da terra,
quando um fulgor de pássaro amarelo
enterrou as correntes do enxofre
ao pé das glaciais cordilheiras.
O vanádio vestia-se de chuva
para entrar na câmara do ouro,
afiava facas o tungstênio
c o bismuto trançava
medicinais cabeleiras.
Os vaga-lumes equivocados
ainda continuavam nos altos,
soltando goteiras de fósforo
nos sulcos dos abismos
e nos cumes ferruginosos.
São as vinhas do meteoro,
os subterrâneos da safira.
O soldadinho nas mesetas
dorme com roupa de estanho.
O cobre funda os seus crimes
nas trevas insepultas
carregadas de matéria verde,
e no silêncio acumulado
dormem as múmias destrutoras.
Na doçura chibcha o ouro
sai de opacos oratórios
lentamente até os guerreiros,
converte-se em rubros estames,
em corações laminados,
em fosforescência terrestre,
em dentadura fabulosa.
Durmo então com o sonho
de uma semente, de uma larva,
e as escadas de Querétaro
desço contigo.
Me esperaram
as pedras de lua indecisa,
a jóia pesqueira da opala,
a árvore morta numa igreja
gelada pelas ametistas.
Como podias, Colômbia oral,
saber que tuas pedras descalças
ocultavam uma tormenta
de ouro iracundo,
como, pátria
da esmeralda, ias perceber
que a jóia de morte e mar,
o fulgor no seu calafrio,
escalaria as gargantas
dos dinastas invasores?
Eras pura noção de pedra,
rosa educada pelo sal,
maligna lágrima enterrada,
sereia de artérias adormecidas,
beladona, serpente negra.
(Enquanto a palmeira dispersava
sua coluna em altas travessas,
ia o sal destituindo
o resplendor das montanhas,
convertendo em veste de quartzo
as gotas de chuva nas folhas
e transmutando os abetos
em avenidas de carvão.
)
Corri pelos ciclones até o perigo
e desci à luz da esmeralda,
ascendi ao pâmpano dos rubis,
mas calei-me para sempre na estátua
do nitrato estendido no deserto.
Vi como na cinza
do ossudo altiplano
levantava o estanho
suas corais ramagens de veneno
até estender como uma selva
a névoa equinocial, até cobrir o sinete
de nossas cereais monarquias.
VI
Os homens
Como a taça da argila era a raça mineral, o homem
feito de pedras e atmosfera,
limpo como os cântaros, sonoro.
A lua fez a massa dos caraíbas,
extraiu oxigênio sagrado,
macerou as flores e as raízes.
Andou o homem das ilhas
tecendo ramos e grinaldas,
de panos cor de enxofre,
e soprando o tritão marinho
à beira das espumas.
O tarahumara vestiu-se de aguilhão
e nas extensões do noroeste
com sangue e pederneiras criou o fogo,
enquanto o universo ia nascendo
outra vez na argila do tarasco:
os mitos das terras amorosas,
a exuberância úmida de onde
lodo sexual e frutas derretidas
viriam a ser atitudes dos deuses
ou pálidas paredes de vasilhas.
Como faisões deslumbrantes
desciam os sacerdotes
das escadarias astecas.
Os degraus triangulares
sustinham o inumerável
relâmpago das vestimentas.
E a pirâmide augusta,
pedra por pedra, agonia e ar,
em sua estrutura dominadora
guardava como uma amêndoa
um coração sacrificado.
Num trovão como um uivo
caía o sangue pelas
escarlinatas sagradas.
Mas multidões de povoados
teciam a fibra, guardavam
o porvir das colheitas,
trançavam o fulgor da pluma,
convenciam a turquesa,
e em trepadeiras têxteis
expressavam a luz do mundo.
Maias, havíeis derrubado
a árvore do conhecimento.
Com aroma de raças celeiras
erguiam-se as estruturas
do exame e da morte,
e perscrutáveis nos poços,
arrojando-lhes noivas de ouro,
a permanência dos germes.
Chichén, teus amores cresciam
no amanhecer da selva.
Os trabalhadores iam fazendo
a simetria dos favos de mel
em tua cidade amarela,
e o pensamento ameaçava
o sangue dos pedestais,
desmontava o céu na sombra,
conduzia a medicina,
escrevia sobre as pedras.
Era o sul um assombro dourado.
As altas soledades
de Machu Picchu na porta do céu
estavam cheias de azeite e cantos,
o homem desfizera as moradas.
e no novo domínio, entre os cumes,
o lavrador tocava a semente
com seus dedos feridos pela neve.
O Cuzco amanhecia como um
trono de torreões e celeiros
e era a flor pensativa do mundo
aquela raça de pálida sombra
em cujas mãos abertas tremulavam
diademas de imperiais ametistas.
Germinava nos terraços
o milho das altas serras
e nas vulcânicas sendas
iam os vasos e os deuses.
A agricultura perfumava
o reino das cozinhas
e estendia sobre os tetos
um manto de sol debulhado.
(Doce raça, folha de serras,
estirpe de torre e turquesa;
fecha-me os olhos agora,
antes de irmos ao mar
de onde as dores chegam.
)
Aquela selva azul era uma gruta
e no mistério de árvores e treva
o guarani cantava como
o fumo que sobe na tarde,
a água sobre as folhagens,
a chuva mim dia de amor,
a tristeza junto aos rios.
No fundo da América sem nome
estava Arauco entre as águas
vertiginosas, apartado
por todo o frio do planeta.
Olhai o grande sul solitário.
Não se vê a fumaça nas alturas.
Vêem-se apenas as nevascas
e o vendaval rechaçado
pelas ásperas araucárias.
Não procures sob o verde fechado
o canto da olaria.
Tudo é silêncio de água e vento.
Mas nas folhas espia o guerreiro.
Entre os lariços um grito.
Uns olhos de tigre ao meio
das alturas da neve.
Olha as lanças a descansar.
Escuta o sussurro do ar
atravessado pelas flechas.
Olha os peitos e as pernas
e as cabeleiras sombrias
brilhando à luz da lua.
Olha o vazio dos guerreiros.
Não há ninguém.
Trina a diuca
feito água na noite pura.
Cruza o condor o seu vôo negro.
Não há ninguém.
Escutas? É o passo
do puma no ar e nas folhas.
Não há ninguém.
Escuta.
Escuta a árvore,
escuta a árvore araucana.
Não há ninguém.
Olha as pedras.
Olha as pedras de Arauco.
Não há ninguém, somente as árvores.
Somente as pedras, Arauco.
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