Charles Bukowski
poeta, contista e romancista estadunidense
1920-08-16 Andernach
1994-03-09 San Pedro
265197
9
27
Consumação do Pesar
ainda escuto as montanhas
o modo como elas riem
de cima a baixo por seus perfis azuis
e mergulhando na água
os peixes lamentam
e toda a água
é fruto de suas lágrimas.
escuto as águas
nas noites de bebedeira
e a tristeza é tanta que posso
ouvi-la em meu relógio
transforma-se nos puxadores da minha cômoda
transforma-se no papel sobre o chão
transforma-se numa calçadeira
no bilhete da lavanderia
transforma-se
na fumaça do cigarro
escalando uma capela de videiras negras...
pouco importa
um pouquinho só de amor não é tão mal assim
ou um pouquinho só de vida
o que realmente importa
é esperar entre paredes
eu nasci para isso
nasci para arrastar rosas pelas avenidas da morte.
Minha mãe gritou ao abrir a porta.
– Filho, é você, filho?
– Preciso dormir um pouco.
– Sua cama está sempre pronta.
Segui até o quarto, me despi e deitei na cama. Fui acordado por volta das seis da tarde pela minha mãe.
– Seu pai está em casa.
Levantei-me e comecei a me vestir. O jantar estava servido quando entrei na sala.
Meu pai era um homem grande, mais alto do que eu, e tinha os olhos castanhos. Os meus eram verdes. Seu nariz era largo demais e não havia como não reparar em suas orelhas: pareciam prestes a fugir de sua cabeça.
– Escute – ele disse –, se você quiser ficar por aqui, vou lhe cobrar pelo quarto, pela comida e mais o serviço de lavanderia. Quando você arranjar um trabalho, o que você nos deve será subtraído de seu salário até que sua dívida conosco esteja encerrada.
Comemos em silêncio.
Minha dívida com quarto, comida, roupa lavada etc. já estava tão alta que foram precisos vários salários para liquidá-la. Assim que isso aconteceu, me mudei de imediato. Eu não tinha condições de pagar os preços praticados lá em casa. Encontrei uma pensão próxima ao trabalho. Fazer a mudança não era difícil. Minhas coisas não enchiam nem a metade de uma mala...
Mama Strader era minha senhoria, uma ruiva apagada de boa aparência, muitos dentes de ouro e um namorado velhusco. Chamou-me na cozinha, logo na primeira manhã, e disse que me daria um copo de uísque se eu fosse lá fora alimentar as galinhas. Depois de cumprir a missão, sentei-me para beber com Mama e seu namorado, Al. Estava uma hora atrasado para o trabalho.
Na segunda noite, houve uma batida na minha porta. Era uma gorda já entrada nos quarenta. Trazia uma garrafa de vinho.
– Moro num quarto do outro lado do corredor, me chamo Martha. Você está sempre escutando boa música. Pensei em lhe trazer uma bebida.
Martha entrou. Vestia uma espécie de bata verde e, depois de alguns copos de vinho, começou a me mostrar suas pernas.
– Tenho pernas legais.
– Sou vidrado em pernas.
– Olhe mais pra cima.
Suas pernas eram muito brancas, gorduchas, flácidas, com veias roxas e protuberantes. Martha me contou sua história.
Era uma prostituta. Tinha percorrido todo o circuito dos bares. Sua principal fonte de renda era o dono de uma loja de departamentos.
– Ele me dá dinheiro. Vou até a loja dele e levo tudo o que quero. Os vendedores não me incomodam. Ele disse pra me deixarem em paz. Ele não quer que a mulher saiba que eu trepo muito melhor do que ela.
Martha se levantou e ligou o rádio. Alto.
– Sou uma ótima dançarina – ela disse. – Veja como eu danço!
Ela girava dentro daquela barraca verde, dando chutes no ar. Estava longe de ser o que alardeava. Logo a bata passava da linha de sua cintura, e ela começou a balançar a bunda bem junto ao meu rosto. A calcinha rosa tinha um enorme furo sobre o glúteo direito. Então a bata já era, e ela ficou só de calcinha. Logo todas as suas vestes estavam no chão, e ela seguiu com o número. Seus pelos pubianos quase desapareciam debaixo da barriga frouxa, que não parava de balançar.
O suor fazia com que sua maquiagem escorresse. Subitamente seus olhos se estreitaram. Eu estava sentado na beirada da cama. Ela se jogou sobre mim antes que eu pudesse reagir. Sua boca já aberta foi pressionada contra a minha. Tinha gosto de cuspe e cebolas e vinho barato e (imaginei) dos espermas de quatrocentos homens. Enfiou sua língua na minha boca. Estava grossa pela quantidade de saliva, o que me fez engasgar e empurrá-la para longe. Ela se pôs de joelhos, baixou meu zíper, e em um segundo meu pau frouxo estava em sua boca. Ela chupou e bateu. Martha usava uma pequena fita amarela em seu cabelo grisalho e curto. Tinha verrugas e grandes pintas marrons no pescoço e nas bochechas.
Meu pênis subiu; ela gemeu e me deu uma mordida. Gritei, segurei-a pelos cabelos e a afastei. Fiquei de pé no centro do quarto, aterrorizado e ferido. Tocavam uma sinfonia do Mahler no rádio. Antes que eu pudesse me mover, ela estava novamente de joelhos. Agarrou minhas bolas sem qualquer piedade com as duas mãos. Sua boca se abriu, ela me tomou; sua cabeça ia e vinha, chupando, masturbando. Ela me obrigou a deitar no chão, dando um tremendo puxão no meu saco, quase partindo meu pau ao meio com os dentes. Os sons da chupada enchiam o quarto, enquanto o rádio tocava Mahler. Era como se eu estivesse sendo devorado por um animal impiedoso. Meu pau endureceu, coberto de cuspe e sangue. A visão daquilo a enlouqueceu. Era como ser devorado vivo.
Se eu gozar, pensei em desespero, jamais me perdoarei.
Quando consegui dar um jeito de agarrar seus cabelos para afastá-la, ela apertou novamente minhas bolas e as esmagou sem pena. Seus dentes cravaram na metade do meu pau como se quisessem, feito uma tesoura, parti-lo ao meio. Gritei, soltei-lhe o cabelo, deitei no chão. Sua cabeça seguia em ação, sem qualquer remorso. Tinha certeza de que essa chupada podia ser ouvida ao longo de toda a pensão.
– NÃO! – gritei.
Ela prosseguiu com uma fúria inumana. Comecei a gozar. Era como sugar o interior de uma serpente que estivesse presa. Sua fúria mesclava-se à loucura; ela engoliu todo o esperma, fazendo-o gorgolejar em sua garganta. Ela continuou masturbando e chupando.
– Martha! Chega! Acabou!
Ela não iria parar. Era como se tivesse se transformado numa enorme boca, capaz de devorar tudo. Continuou chupando e masturbando. Seguiu e seguiu.
– NÃO! – gritei novamente.
Desta vez ela bebeu como se fosse uma batida de baunilha, de canudinho.
Desfaleci. Ela se ergueu e começou a se vestir. Cantou:
“When a New York baby says goodnight
it’s early in the morning
goodnight, sweetheart
it’s early in the morning
goodnight, sweetheart
milkman’s on his way home…”[8]
Com esforço fiquei de pé, agarrando-me aos bolsos da minha calça em busca da carteira. Saquei uma nota de US$ 5, passei a ela. Pegou a nota e enfiou-a entre os seios, pela parte frontal do vestido, deu mais uma agarrada, bem faceira, nas minhas bolas, apertou-as, soltou e seguiu bailando quarto afora.
Trabalhei o tempo necessário para juntar o dinheiro para comprar uma passagem para outro lugar qualquer, mais uns poucos dólares para as despesas iniciais. Larguei o emprego, peguei o mapa dos Estados Unidos e dei uma olhada. Decidi-me por Nova York.
Coloquei cinco garrafas de uísque dentro da mala que levei comigo no ônibus. Toda vez que alguém sentava ao meu lado e começava a falar, eu puxava uma das garrafas e dava um longo trago. Cheguei lá.
A rodoviária de Nova York ficava próxima a Times Square. Ganhei a rua com minha velha mala. Anoitecia. As pessoas saíam em grandes enxames das estações do metrô. Como insetos, sem rostos, dementes, elas se lançavam sobre mim, me cercavam, em grande intensidade. Batiam-se e se empurravam, faziam sons terríveis.
Busquei refúgio no vão de uma porta e terminei a última das garrafas.
Então segui em frente, empurrando, acotovelando, até avistar um sinal de “há vagas” na Terceira Avenida. A gerente era uma velha senhora judia.
– Preciso de um quarto – disse-lhe.
– Precisa de um bom terno, meu garoto.
– Estou falido.
– É um terno dos bons, uma pechincha. Meu marido toca a alfaiataria do outro lado da rua. Venha comigo.
Paguei por meu quarto, levei a mala para o andar de cima. Depois a acompanhei até o outro lado da rua.
– Herman, mostre o terno ao garoto.
– Ah, é um ótimo terno.
Herman o trouxe lá de dentro; era azul-marinho, um pouco gasto.
– Parece muito pequeno.
– Não, não, vai servir direitinho.
Saiu de trás do balcão com o terno.
– Aqui. Experimente o paletó.
Herman me ajudou a vesti-lo.
– Viu só? Serve... Quer provar a calça?
Segurou-a na minha frente. Ia da minha cintura aos dedos do pé.
– Parece bem.
– Dez dólares.
– Estou falido.
– Sete dólares.
Dei a Herman os sete dólares, levei o terno para o meu quarto, escada acima. Saí atrás de uma garrafa de vinho. Ao voltar, tranquei a porta, tirei a roupa, preparava-me para a primeira noite verdadeira de sono em um bom tempo.
Deitei na cama, abri a garrafa, dobrei o travesseiro nas costas para ter um bom apoio, respirei fundo e sentei na escuridão olhando a janela. Era a primeira vez que eu estava sozinho em cinco dias. Eu era um homem que se fortalecia na solidão; ela era para mim a comida e a água dos outros homens. Cada dia sem solidão me enfraquecia. Não que me orgulhasse dela, mas dela eu dependia. A escuridão do quarto era como um dia ensolarado para mim. Tomei um gole de vinho.
Subitamente o quarto se encheu de luz. Houve um estrépito e um rugido. A linha elevada do trem passava ao nível da minha janela. Havia uma estação do metrô ali. Olhei para a fila de rostos nova-iorquinos, que me olharam de volta. O trem se demorou e, então, partiu. O quarto ficou escuro. Logo voltou a se encher de luz. Outra vez olhei para os rostos. Era como uma visão do inferno constantemente repetida. Cada novo carregamento de rostos era mais feio, demente e cruel que o anterior. Bebi o vinho.
Aquilo continuou: escuridão, depois luz; luz, depois escuridão. Terminei a garrafa e fui em busca de mais. Voltei, tirei a roupa, retornei para a cama. As partidas e chegadas dos rostos continuavam; era como se eu estivesse tendo uma visão. Eu era visitado por centenas de demônios que o diabo em pessoa não podia tolerar. Bebi mais vinho.
Finalmente me levantei e peguei meu terno novo no armário. Vesti o paletó. Estava apertado. Parecia menor do que quando o experimentei na alfaiataria. De repente, o tecido se rasgou. O paletó abrira completamente no meio das costas. Joguei o que restara fora. Ainda tinha a calça. Enfiei as pernas. Havia botões na frente em vez de zíper. Ao tentar abotoá-los, a costura abriu nos fundilhos. Passei minha mão atrás e senti minhas cuecas.
Durante quatro ou cinco dias, caminhei a esmo. Depois me embebedei por dois dias seguidos. Mudei do meu quarto e fui para o Greenwich Village. Certo dia, li na coluna de Walter Winchell[9] que O. Henry costumava escrever todos os seus textos na mesa de um famoso bar de escritores. Encontrei o bar e fui procurar pelo que mesmo?
Era meio-dia. Eu era o único cliente, apesar da coluna de Winchell. Fiquei ali plantado, sozinho, na frente de um enorme espelho, do bar e do atendente.
– Sinto muito, senhor, não podemos servi-lo.
Fiquei chocado, incapaz de responder. Esperei por uma explicação.
– O senhor está bêbado.
Era possível que estivesse embriagado, mas eu não bebia uma gota de álcool havia doze horas. Resmunguei alguma coisa sobre O. Henry e fui embora.
Parecia uma loja abandonada. Havia um cartaz na janela: Precisa-se de ajudante. Entrei. Um homem com um bigodinho fino me sorriu.
– Sente-se.
Deu-me uma caneta e uma ficha de inscrição, que preenchi.
– Ah? Faculdade?
– Não exatamente.
– Estamos no ramo da publicidade.
– É?
– Não está interessado?
– Bem, veja você, eu andava envolvido com pintura. Um pintor, entende? Fiquei sem dinheiro. Não conseguia vender o material.
– Chegam aqui vários desses.
– Também não gosto dos tipos.
– Alegre-se. Talvez você fique famoso depois da morte.
Seguiu falando que o trabalho acarretava, para começo de conversa, fazer o turno da noite, mas que sempre se podia ascender na carreira.
Eu lhe disse que gostava do turno da noite. Ele me disse que eu podia começar no metrô.
Dois caras mais velhos esperavam por mim. Encontrei-os dentro do metrô, onde os vagões estavam estacionados. Deram-me uma braçada de pôsteres e um pequeno instrumento de metal que parecia um abridor de latas. Subimos todos em um dos vagões estacionados.
– Veja como eu faço – disse um dos caras mais velhos.
Subiu em cima dos assentos sujos, arrancando os velhos pôsteres com seu abridor de latas ao longo do percurso. Então é assim que esses negócios vão parar ali, pensei. As pessoas os colocam ali.
Cada pôster era preso por duas tiras de metal que precisavam ser removidas para que um novo pudesse ser colocado. As tiras eram presas com molas e curvas para se encaixarem no contorno da parede.
Deixaram que eu tentasse. As tiras de metal resistiram aos meus esforços. Não iriam se mover. As pontas afiadas cortavam minhas mãos enquanto eu trabalhava. Comecei a sangrar. Para cada pôster retirado, era preciso colocar outro no lugar. Cada troca levava uma eternidade. Parecia uma atividade sem fim.
– Há besouros por toda Nova York – disse um dos caras mais velhos depois de um tempo.
– É mesmo?
– Sim. Você é novo em Nova York?
– Sim.
– Não sabe que todas as pessoas em Nova York sofrem com esses besouros?
– Não.
– Sim. A mulher quis trepar comigo na noite passada. Eu disse, “Não, baby, não vai rolar”.
– É?
– É. Disse pra ela que faria a coisa por cinco pratas. Porque é preciso umas cinco pratas em carne pra repor a porra que eu gastaria.
– Ela lhe deu as cinco pratas?
– Que nada. Ofereceu-me uma lata de sopa Campbell’s de cogumelo.
Seguimos com o trabalho até chegarmos ao fim do vagão. Os dois homens saíram pela traseira e caminharam em direção ao próximo carro do metrô, que estava estacionado a cerca de quinze metros de distância. Estávamos a uns bons dez metros acima do chão, com nada além dos trilhos para caminhar. Vi que não seria nada difícil para um corpo passar por entre os vãos e cair lá embaixo.
Saí do vagão e comecei a avançar lentamente em direção ao próximo, cuidando onde pisava, o abridor de latas numa mão e os pôsteres na outra. Um metrô cheio de passageiros partiu, as luzes iluminando o caminho.
O veículo se foi, deixando-me na escuridão total. Não conseguia sequer ver os trilhos e as vigas horizontais. Esperei.
Os dois caras mais velhos gritaram lá do outro vagão:
– Vamos! Depressa! Temos muito trabalho pela frente!
– Esperem! Não vejo nada!
– Não temos nenhuma lanterna!
Meus olhos começavam a se adaptar. Avancei lentamente, passo a passo. Assim que entrei no outro carro, coloquei os pôsteres sobre o chão e me sentei. Minhas pernas estavam bambas.
– Qual é o problema?
– Não sei.
– O que é?
– Um homem pode morrer nesse negócio.
– Ninguém nunca caiu.
– Senti que podia ser o primeiro.
– Tudo está na cabeça.
– Eu sei. Como faço pra dar o fora daqui?
– Há uma escada para aqueles lados. Mas você terá que cruzar várias vias, além de cuidar os trens em movimento.
– Sim.
– E não pise no terceiro trilho.
– O que é isso?
– É o condutor de força. É um trilho dourado. Parece feito de ouro. Você vai ver.
Desci para a pista e comecei a caminhar. Os dois caras mais velhos ficaram me olhando. Ali estava o trilho dourado. Passei dando o passo mais largo que pude sobre ele.
Então cheguei à escada. Meio caindo, meio correndo, venci os degraus. Havia um bar do outro lado da rua.
– Factótum
o modo como elas riem
de cima a baixo por seus perfis azuis
e mergulhando na água
os peixes lamentam
e toda a água
é fruto de suas lágrimas.
escuto as águas
nas noites de bebedeira
e a tristeza é tanta que posso
ouvi-la em meu relógio
transforma-se nos puxadores da minha cômoda
transforma-se no papel sobre o chão
transforma-se numa calçadeira
no bilhete da lavanderia
transforma-se
na fumaça do cigarro
escalando uma capela de videiras negras...
pouco importa
um pouquinho só de amor não é tão mal assim
ou um pouquinho só de vida
o que realmente importa
é esperar entre paredes
eu nasci para isso
nasci para arrastar rosas pelas avenidas da morte.
Minha mãe gritou ao abrir a porta.
– Filho, é você, filho?
– Preciso dormir um pouco.
– Sua cama está sempre pronta.
Segui até o quarto, me despi e deitei na cama. Fui acordado por volta das seis da tarde pela minha mãe.
– Seu pai está em casa.
Levantei-me e comecei a me vestir. O jantar estava servido quando entrei na sala.
Meu pai era um homem grande, mais alto do que eu, e tinha os olhos castanhos. Os meus eram verdes. Seu nariz era largo demais e não havia como não reparar em suas orelhas: pareciam prestes a fugir de sua cabeça.
– Escute – ele disse –, se você quiser ficar por aqui, vou lhe cobrar pelo quarto, pela comida e mais o serviço de lavanderia. Quando você arranjar um trabalho, o que você nos deve será subtraído de seu salário até que sua dívida conosco esteja encerrada.
Comemos em silêncio.
Minha dívida com quarto, comida, roupa lavada etc. já estava tão alta que foram precisos vários salários para liquidá-la. Assim que isso aconteceu, me mudei de imediato. Eu não tinha condições de pagar os preços praticados lá em casa. Encontrei uma pensão próxima ao trabalho. Fazer a mudança não era difícil. Minhas coisas não enchiam nem a metade de uma mala...
Mama Strader era minha senhoria, uma ruiva apagada de boa aparência, muitos dentes de ouro e um namorado velhusco. Chamou-me na cozinha, logo na primeira manhã, e disse que me daria um copo de uísque se eu fosse lá fora alimentar as galinhas. Depois de cumprir a missão, sentei-me para beber com Mama e seu namorado, Al. Estava uma hora atrasado para o trabalho.
Na segunda noite, houve uma batida na minha porta. Era uma gorda já entrada nos quarenta. Trazia uma garrafa de vinho.
– Moro num quarto do outro lado do corredor, me chamo Martha. Você está sempre escutando boa música. Pensei em lhe trazer uma bebida.
Martha entrou. Vestia uma espécie de bata verde e, depois de alguns copos de vinho, começou a me mostrar suas pernas.
– Tenho pernas legais.
– Sou vidrado em pernas.
– Olhe mais pra cima.
Suas pernas eram muito brancas, gorduchas, flácidas, com veias roxas e protuberantes. Martha me contou sua história.
Era uma prostituta. Tinha percorrido todo o circuito dos bares. Sua principal fonte de renda era o dono de uma loja de departamentos.
– Ele me dá dinheiro. Vou até a loja dele e levo tudo o que quero. Os vendedores não me incomodam. Ele disse pra me deixarem em paz. Ele não quer que a mulher saiba que eu trepo muito melhor do que ela.
Martha se levantou e ligou o rádio. Alto.
– Sou uma ótima dançarina – ela disse. – Veja como eu danço!
Ela girava dentro daquela barraca verde, dando chutes no ar. Estava longe de ser o que alardeava. Logo a bata passava da linha de sua cintura, e ela começou a balançar a bunda bem junto ao meu rosto. A calcinha rosa tinha um enorme furo sobre o glúteo direito. Então a bata já era, e ela ficou só de calcinha. Logo todas as suas vestes estavam no chão, e ela seguiu com o número. Seus pelos pubianos quase desapareciam debaixo da barriga frouxa, que não parava de balançar.
O suor fazia com que sua maquiagem escorresse. Subitamente seus olhos se estreitaram. Eu estava sentado na beirada da cama. Ela se jogou sobre mim antes que eu pudesse reagir. Sua boca já aberta foi pressionada contra a minha. Tinha gosto de cuspe e cebolas e vinho barato e (imaginei) dos espermas de quatrocentos homens. Enfiou sua língua na minha boca. Estava grossa pela quantidade de saliva, o que me fez engasgar e empurrá-la para longe. Ela se pôs de joelhos, baixou meu zíper, e em um segundo meu pau frouxo estava em sua boca. Ela chupou e bateu. Martha usava uma pequena fita amarela em seu cabelo grisalho e curto. Tinha verrugas e grandes pintas marrons no pescoço e nas bochechas.
Meu pênis subiu; ela gemeu e me deu uma mordida. Gritei, segurei-a pelos cabelos e a afastei. Fiquei de pé no centro do quarto, aterrorizado e ferido. Tocavam uma sinfonia do Mahler no rádio. Antes que eu pudesse me mover, ela estava novamente de joelhos. Agarrou minhas bolas sem qualquer piedade com as duas mãos. Sua boca se abriu, ela me tomou; sua cabeça ia e vinha, chupando, masturbando. Ela me obrigou a deitar no chão, dando um tremendo puxão no meu saco, quase partindo meu pau ao meio com os dentes. Os sons da chupada enchiam o quarto, enquanto o rádio tocava Mahler. Era como se eu estivesse sendo devorado por um animal impiedoso. Meu pau endureceu, coberto de cuspe e sangue. A visão daquilo a enlouqueceu. Era como ser devorado vivo.
Se eu gozar, pensei em desespero, jamais me perdoarei.
Quando consegui dar um jeito de agarrar seus cabelos para afastá-la, ela apertou novamente minhas bolas e as esmagou sem pena. Seus dentes cravaram na metade do meu pau como se quisessem, feito uma tesoura, parti-lo ao meio. Gritei, soltei-lhe o cabelo, deitei no chão. Sua cabeça seguia em ação, sem qualquer remorso. Tinha certeza de que essa chupada podia ser ouvida ao longo de toda a pensão.
– NÃO! – gritei.
Ela prosseguiu com uma fúria inumana. Comecei a gozar. Era como sugar o interior de uma serpente que estivesse presa. Sua fúria mesclava-se à loucura; ela engoliu todo o esperma, fazendo-o gorgolejar em sua garganta. Ela continuou masturbando e chupando.
– Martha! Chega! Acabou!
Ela não iria parar. Era como se tivesse se transformado numa enorme boca, capaz de devorar tudo. Continuou chupando e masturbando. Seguiu e seguiu.
– NÃO! – gritei novamente.
Desta vez ela bebeu como se fosse uma batida de baunilha, de canudinho.
Desfaleci. Ela se ergueu e começou a se vestir. Cantou:
“When a New York baby says goodnight
it’s early in the morning
goodnight, sweetheart
it’s early in the morning
goodnight, sweetheart
milkman’s on his way home…”[8]
Com esforço fiquei de pé, agarrando-me aos bolsos da minha calça em busca da carteira. Saquei uma nota de US$ 5, passei a ela. Pegou a nota e enfiou-a entre os seios, pela parte frontal do vestido, deu mais uma agarrada, bem faceira, nas minhas bolas, apertou-as, soltou e seguiu bailando quarto afora.
Trabalhei o tempo necessário para juntar o dinheiro para comprar uma passagem para outro lugar qualquer, mais uns poucos dólares para as despesas iniciais. Larguei o emprego, peguei o mapa dos Estados Unidos e dei uma olhada. Decidi-me por Nova York.
Coloquei cinco garrafas de uísque dentro da mala que levei comigo no ônibus. Toda vez que alguém sentava ao meu lado e começava a falar, eu puxava uma das garrafas e dava um longo trago. Cheguei lá.
A rodoviária de Nova York ficava próxima a Times Square. Ganhei a rua com minha velha mala. Anoitecia. As pessoas saíam em grandes enxames das estações do metrô. Como insetos, sem rostos, dementes, elas se lançavam sobre mim, me cercavam, em grande intensidade. Batiam-se e se empurravam, faziam sons terríveis.
Busquei refúgio no vão de uma porta e terminei a última das garrafas.
Então segui em frente, empurrando, acotovelando, até avistar um sinal de “há vagas” na Terceira Avenida. A gerente era uma velha senhora judia.
– Preciso de um quarto – disse-lhe.
– Precisa de um bom terno, meu garoto.
– Estou falido.
– É um terno dos bons, uma pechincha. Meu marido toca a alfaiataria do outro lado da rua. Venha comigo.
Paguei por meu quarto, levei a mala para o andar de cima. Depois a acompanhei até o outro lado da rua.
– Herman, mostre o terno ao garoto.
– Ah, é um ótimo terno.
Herman o trouxe lá de dentro; era azul-marinho, um pouco gasto.
– Parece muito pequeno.
– Não, não, vai servir direitinho.
Saiu de trás do balcão com o terno.
– Aqui. Experimente o paletó.
Herman me ajudou a vesti-lo.
– Viu só? Serve... Quer provar a calça?
Segurou-a na minha frente. Ia da minha cintura aos dedos do pé.
– Parece bem.
– Dez dólares.
– Estou falido.
– Sete dólares.
Dei a Herman os sete dólares, levei o terno para o meu quarto, escada acima. Saí atrás de uma garrafa de vinho. Ao voltar, tranquei a porta, tirei a roupa, preparava-me para a primeira noite verdadeira de sono em um bom tempo.
Deitei na cama, abri a garrafa, dobrei o travesseiro nas costas para ter um bom apoio, respirei fundo e sentei na escuridão olhando a janela. Era a primeira vez que eu estava sozinho em cinco dias. Eu era um homem que se fortalecia na solidão; ela era para mim a comida e a água dos outros homens. Cada dia sem solidão me enfraquecia. Não que me orgulhasse dela, mas dela eu dependia. A escuridão do quarto era como um dia ensolarado para mim. Tomei um gole de vinho.
Subitamente o quarto se encheu de luz. Houve um estrépito e um rugido. A linha elevada do trem passava ao nível da minha janela. Havia uma estação do metrô ali. Olhei para a fila de rostos nova-iorquinos, que me olharam de volta. O trem se demorou e, então, partiu. O quarto ficou escuro. Logo voltou a se encher de luz. Outra vez olhei para os rostos. Era como uma visão do inferno constantemente repetida. Cada novo carregamento de rostos era mais feio, demente e cruel que o anterior. Bebi o vinho.
Aquilo continuou: escuridão, depois luz; luz, depois escuridão. Terminei a garrafa e fui em busca de mais. Voltei, tirei a roupa, retornei para a cama. As partidas e chegadas dos rostos continuavam; era como se eu estivesse tendo uma visão. Eu era visitado por centenas de demônios que o diabo em pessoa não podia tolerar. Bebi mais vinho.
Finalmente me levantei e peguei meu terno novo no armário. Vesti o paletó. Estava apertado. Parecia menor do que quando o experimentei na alfaiataria. De repente, o tecido se rasgou. O paletó abrira completamente no meio das costas. Joguei o que restara fora. Ainda tinha a calça. Enfiei as pernas. Havia botões na frente em vez de zíper. Ao tentar abotoá-los, a costura abriu nos fundilhos. Passei minha mão atrás e senti minhas cuecas.
Durante quatro ou cinco dias, caminhei a esmo. Depois me embebedei por dois dias seguidos. Mudei do meu quarto e fui para o Greenwich Village. Certo dia, li na coluna de Walter Winchell[9] que O. Henry costumava escrever todos os seus textos na mesa de um famoso bar de escritores. Encontrei o bar e fui procurar pelo que mesmo?
Era meio-dia. Eu era o único cliente, apesar da coluna de Winchell. Fiquei ali plantado, sozinho, na frente de um enorme espelho, do bar e do atendente.
– Sinto muito, senhor, não podemos servi-lo.
Fiquei chocado, incapaz de responder. Esperei por uma explicação.
– O senhor está bêbado.
Era possível que estivesse embriagado, mas eu não bebia uma gota de álcool havia doze horas. Resmunguei alguma coisa sobre O. Henry e fui embora.
Parecia uma loja abandonada. Havia um cartaz na janela: Precisa-se de ajudante. Entrei. Um homem com um bigodinho fino me sorriu.
– Sente-se.
Deu-me uma caneta e uma ficha de inscrição, que preenchi.
– Ah? Faculdade?
– Não exatamente.
– Estamos no ramo da publicidade.
– É?
– Não está interessado?
– Bem, veja você, eu andava envolvido com pintura. Um pintor, entende? Fiquei sem dinheiro. Não conseguia vender o material.
– Chegam aqui vários desses.
– Também não gosto dos tipos.
– Alegre-se. Talvez você fique famoso depois da morte.
Seguiu falando que o trabalho acarretava, para começo de conversa, fazer o turno da noite, mas que sempre se podia ascender na carreira.
Eu lhe disse que gostava do turno da noite. Ele me disse que eu podia começar no metrô.
Dois caras mais velhos esperavam por mim. Encontrei-os dentro do metrô, onde os vagões estavam estacionados. Deram-me uma braçada de pôsteres e um pequeno instrumento de metal que parecia um abridor de latas. Subimos todos em um dos vagões estacionados.
– Veja como eu faço – disse um dos caras mais velhos.
Subiu em cima dos assentos sujos, arrancando os velhos pôsteres com seu abridor de latas ao longo do percurso. Então é assim que esses negócios vão parar ali, pensei. As pessoas os colocam ali.
Cada pôster era preso por duas tiras de metal que precisavam ser removidas para que um novo pudesse ser colocado. As tiras eram presas com molas e curvas para se encaixarem no contorno da parede.
Deixaram que eu tentasse. As tiras de metal resistiram aos meus esforços. Não iriam se mover. As pontas afiadas cortavam minhas mãos enquanto eu trabalhava. Comecei a sangrar. Para cada pôster retirado, era preciso colocar outro no lugar. Cada troca levava uma eternidade. Parecia uma atividade sem fim.
– Há besouros por toda Nova York – disse um dos caras mais velhos depois de um tempo.
– É mesmo?
– Sim. Você é novo em Nova York?
– Sim.
– Não sabe que todas as pessoas em Nova York sofrem com esses besouros?
– Não.
– Sim. A mulher quis trepar comigo na noite passada. Eu disse, “Não, baby, não vai rolar”.
– É?
– É. Disse pra ela que faria a coisa por cinco pratas. Porque é preciso umas cinco pratas em carne pra repor a porra que eu gastaria.
– Ela lhe deu as cinco pratas?
– Que nada. Ofereceu-me uma lata de sopa Campbell’s de cogumelo.
Seguimos com o trabalho até chegarmos ao fim do vagão. Os dois homens saíram pela traseira e caminharam em direção ao próximo carro do metrô, que estava estacionado a cerca de quinze metros de distância. Estávamos a uns bons dez metros acima do chão, com nada além dos trilhos para caminhar. Vi que não seria nada difícil para um corpo passar por entre os vãos e cair lá embaixo.
Saí do vagão e comecei a avançar lentamente em direção ao próximo, cuidando onde pisava, o abridor de latas numa mão e os pôsteres na outra. Um metrô cheio de passageiros partiu, as luzes iluminando o caminho.
O veículo se foi, deixando-me na escuridão total. Não conseguia sequer ver os trilhos e as vigas horizontais. Esperei.
Os dois caras mais velhos gritaram lá do outro vagão:
– Vamos! Depressa! Temos muito trabalho pela frente!
– Esperem! Não vejo nada!
– Não temos nenhuma lanterna!
Meus olhos começavam a se adaptar. Avancei lentamente, passo a passo. Assim que entrei no outro carro, coloquei os pôsteres sobre o chão e me sentei. Minhas pernas estavam bambas.
– Qual é o problema?
– Não sei.
– O que é?
– Um homem pode morrer nesse negócio.
– Ninguém nunca caiu.
– Senti que podia ser o primeiro.
– Tudo está na cabeça.
– Eu sei. Como faço pra dar o fora daqui?
– Há uma escada para aqueles lados. Mas você terá que cruzar várias vias, além de cuidar os trens em movimento.
– Sim.
– E não pise no terceiro trilho.
– O que é isso?
– É o condutor de força. É um trilho dourado. Parece feito de ouro. Você vai ver.
Desci para a pista e comecei a caminhar. Os dois caras mais velhos ficaram me olhando. Ali estava o trilho dourado. Passei dando o passo mais largo que pude sobre ele.
Então cheguei à escada. Meio caindo, meio correndo, venci os degraus. Havia um bar do outro lado da rua.
– Factótum
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