Charles Bukowski

Charles Bukowski

poeta, contista e romancista estadunidense

1920-08-16 Andernach
1994-03-09 San Pedro
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O Dia Em Que Mandei Meu Pé-De-Meia Pro Espaço

e, eu disse, você pode pegar seus tios e tias ricos
e avós e pais
e todo o petróleo fétido deles
e seus sete lagos
e todos os seus perus
e búfalos
e o estado inteiro do Texas,
quer dizer, seus espantalhos
e suas caminhadas de sábado à noite no calçadão,
e sua biblioteca de 50 centavos
e seus vereadores corruptos
e seus artistas aveadados –
pode pegar tudo isso
e seu jornal semanal
e seus famosos tornados,
e suas nojentas enchentes
e todos os seus gatos miantes
e sua assinatura da Time,
e enfiar no rabo, baby,
bem no meio do rabo.
posso voltar a manusear uma picareta e um machado (acho)
e posso arranjar
25 pratas por uma luta de 4 assaltos (talvez);
claro, estou com 38
mas um pouco de tintura pode esconder os fios
grisalhos do meu cabelo;
e ainda posso escrever um poema (às vezes),
não se esqueça disso, e mesmo que
não rendam nada,
é melhor do que esperar por mortes e petróleo,
e dar tiros em perus selvagens,
e esperar que o mundo
comece a girar.
tudo bem, vagabundo, ela disse,
dê o fora.
o quê? eu disse
dê o fora. você teve seu
último acesso de fúria.
cansei dos seus acessos de fúria:
você sempre atua como um
personagem de uma peça de O’Neill.
mas eu sou diferente, baby,
não consigo
evitar.
você é diferente, essa é boa!
Nossa, quanta diferença!
não bata
a porta
quando sair.
mas, baby, eu amo o seu
dinheiro!
você nunca me disse
que me ama!
o que você quer afinal
um mentiroso ou um
amante?
de você não quero nada! se manda, vagabundo,
se manda!
... mas baby!
volta lá pro seu O’Neill!
fui até a porta,
fechei-a com cuidado e me afastei,
pensando: tudo o que elas querem
é um índio de madeira
que diga sim e não
e fique parado junto ao fogo e
não faça muito barulho;
mas acontece que você já não é mais
uma criança, rapaz;
da próxima vez jogue visando
o pé-de-
meia.

Passei o Natal com Betty. Ela assou um peru e nós bebemos. Betty sempre gostou de grandes árvores de Natal. Essa devia ter uns dois metros de altura por um de largura, coberta com luzes, lâmpadas elétricas, lantejoulas e outras porcarias. Bebemos várias doses de uísque, fizemos amor, comemos nosso peru, bebemos mais um pouco. O prego da base estava frouxo e a base não era grande o suficiente para dar suporte à árvore. Eu ficava tentando ajeitá-lo. Betty se esticou na cama e apagou. Eu bebia no chão, de cuecas. Então também me estiquei. Fechei os olhos. Alguma coisa me despertou. Abri os olhos. Bem a tempo de ver a enorme árvore coberta de luzes quentes se inclinar devagar em minha direção, a estrela pontuda descendo como uma adaga. Não consegui entender muito bem o que estava acontecendo. Parecia o fim do mundo. Não conseguia me mexer. Os galhos da árvore me impediam. Eu estava debaixo dela. As lâmpadas incandesciam.
– Oh, OH, JESUS CRISTO, TENHA PIEDADE! SENHOR, ME AJUDE! JESUS! JESUS! SOCORRO!
As lâmpadas me queimavam. Rolei para a esquerda, mas não consegui me libertar, depois rolei para a direita.
– AI!
Finalmente consegui escapar rolando de baixo da árvore. Betty estava de pé, parada.
– O que aconteceu? O que é isso?
– NÃO ESTÁ VENDO? ESSA MALDITA ÁRVORE TENTOU ME MATAR!
– O quê?
– SIM, OLHA PRA MIM!
Meu corpo estava coberto de marcas vermelhas.
– Oh, pobrezinho!
Segui até a parede e desliguei a árvore da tomada. As luzes se apagaram. A coisa estava morta.
– Oh, minha pobre arvorezinha!
– Pobre arvorezinha?
– É, me deu tanta pena!
– Amanhã de manhã eu boto ela de pé de novo. Não confio nela agora. Vou deixar que descanse durante a noite.
Ela não gostou da ideia. Senti que teria de enfrentar um bate-boca, então coloquei o negócio de pé, apoiado numa cadeira, e acendi as luzes outra vez. Se a coisa tivesse queimado seus peitos ou seu rabo, ela teria jogado o negócio pela janela. Aquilo me pareceu uma extrema gentileza da minha parte.
Alguns dias depois do Natal apareci na casa de Betti para vê-la. Ela estava sentada em seu quarto, bêbada, às 8h45 da manhã. Seu aspecto não era nada bom, o que também se poderia dizer de mim naquela ocasião. Era como se cada um dos pensionistas tivesse dado a ela um pouco de bebida. Havia de tudo: vinho, vodca, uísque, scotch. Das marcas mais baratas. As garrafas enchiam o quarto.
– Esses cretinos! Será que eles não conhecem ninguém melhor? Se você beber todo esse negócio é morte na certa!
Betty apenas me olhou. Pude perceber tudo naquele olhar.
Ela tinha um filho e uma filha que nunca vinham visitá-la, sequer lhe escreviam. Era uma faxineira num hotel barato. Quando a conheci, suas roupas eram caras, tornozelos bem torneados em sapatos de luxo. Era toda rija, quase bela. Olhos selvagens. Sorridente. Vinda de um marido rico, recém-divorciada, ele que logo morreria num acidente de carro, bêbado, queimado vivo em Connecticut.
– Você jamais irá domá-la – me diziam.
Ali estava ela. Mas eu tinha recebido alguma ajuda.
– Escute – eu disse –, tenho que levar uma parte desse negócio. Quero dizer, de vez em quando eu lhe entrego uma garrafa. Não vou bebê-las.
– Deixe as garrafas – disse Betty. Não me olhava. Seu quarto ficava no último andar e ela se sentava junto à janela, acompanhando o tráfego da manhã.
Me aproximei.
– Veja, estou acabado. Tenho que ir embora. Mas pelo amor de Deus, pegue leve com esse negócio!
– Claro – ela disse.
Inclinei-me e lhe dei um beijo de despedida.
Retornei cerca de uma semana e meia depois. Não houve qualquer resposta para as minhas batidas.
– Betty! Betty! Você está bem?
Girei a maçaneta. A porta estava aberta. A cama estava virada. Havia uma enorme mancha de sangue no lençol.
– Ah, caralho! – eu disse. Olhei em volta. Todas as garrafas tinham sumido.
Então olhei mais uma vez ao meu redor. Ali estava a francesa de meia-idade que era dona do lugar. Ficou junto à porta.
– Ela está no Hospital Geral do Condado. Estava muito doente. Chamei a ambulância na noite passada.
– Ela bebeu todo aquele negócio?
– Teve alguma ajuda.
Desci correndo as escadas e entrei no meu carro. Logo cheguei lá. Conhecia bem o lugar. Informaram-me o número do quarto.
Havia três ou quatro camas num quarto apertado. Uma mulher estava sentada sobre a sua no sentido cruzado, mastigando uma maçã e rindo com duas visitantes do sexo feminino. Puxei a cortina divisória que circundava a cama de Betty, sentei-me no banquinho e me inclinei sobre ela.
– Betty! Betty!
Toquei seu braço.
– Betty!
Seus olhos se abriram. Eram novamente belos. De um azul sereno e brilhante.
– Tinha certeza de que era você – ela disse.
Em seguida voltou a fechar os olhos. Seus lábios estavam ressecados. Restos de saliva amarelada haviam se acumulado no canto esquerdo de sua boca. Peguei um lenço e removi os resíduos. Limpei seu rosto, suas mãos, sua garganta. Peguei outro lenço e espremi um pouco de água em sua língua. Depois um pouco mais. Molhei seus lábios. Ajeitei seus cabelos. Podia ouvir as mulheres rindo através da cortina que nos separava.
– Betty, Betty, Betty. Por favor, quero que você beba um pouco de água, apenas um golinho, não precisa ser muito, só um gole.
Ela não respondeu. Tentei aquilo por uns dez minutos. Nada.
Mais restos de saliva se formaram em sua boca. Removi-os.
Então me levantei e fechei a cortina. Fiquei olhando para as três mulheres.
Me afastei e falei com a enfermeira encarregada.
– Escute, por que ninguém faz nada em relação à mulher do 45-c? Betty Williams.
– A gente faz o que pode, senhor.
– Mas não há ninguém ali.
– Fazemos nossas rondas regulares.
– Mas onde estão os médicos? Não vi nenhum médico.
– O doutor já a examinou, senhor.
– Como é que vocês a abandonam lá daquele jeito?
– A gente faz o que pode, senhor.
– SENHOR! SENHOR! SENHOR! ESQUEÇA ESSA PORRA DE “SENHOR”! Aposto que se fosse o presidente ou o governador ou o prefeito ou um filho da puta qualquer cheio da grana, então haveria um montão de médicos ao redor do quarto fazendo alguma coisa! Por que vocês simplesmente não deixam o pessoal morrer? Que pecado há em ser pobre?
– Já lhe disse, meu senhor, estamos fazendo TUDO ao nosso alcance.
– Voltarei em duas horas.
– O senhor é o marido?
– Eu vivia com ela em concubinato.
– Pode nos deixar seu nome e um número de telefone?
Passei-lhe as informações e saí apressado.
O funeral estava marcado para as dez e meia e já fazia calor. Eu vestia um terno preto barato, comprado e ajustado às pressas. Era o meu primeiro terno novo em anos. Conseguira localizar o filho. Seguimos em seu Mercedes-Benz novinho. Tinha conseguido localizá-lo com a ajuda de uma tira de papel com o endereço de seu sogro. Duas chamadas de longa distância e cheguei até ele. Quando finalmente conseguiu se deslocar até aqui, sua mãe já estava morta. Morreu enquanto eu fazia as ligações. O rapaz, Larry, jamais tinha se enquadrado nas normas da sociedade. Tinha o hábito de roubar os carros dos amigos, mas entre os amigos e o tribunal dava um jeito de resolver as coisas. Então o exército o apanhou, e, de alguma maneira, entrou para um programa de treinamento, o que fez com que, assim que saísse, arranjasse um emprego muito bem pago. Foi quando deixou de ver a mãe, quando conseguiu esse bom emprego.
– Onde está sua irmã? – perguntei.
– Não sei.
– É um carro bacana. Não dá nem pra ouvir o motor.
Larry sorriu. Gostou do comentário.
Havia apenas três pessoas acompanhando o funeral: o filho, o amante e a irmã retardada da dona do hotel. Seu nome era Marcia. Marcia nunca dizia nada. Ficava apenas sentada, com um sorriso vazio nos lábios. Sua pele era branca como esmalte. Tinha um cabelo armado, de um amarelo mortiço, e um chapéu que não assentava. Marcia havia sido mandada pela dona do hotel para representá-la. A dona não podia perder seu negócio de vista.
Claro, eu estava com uma ressaca dos diabos. Paramos para tomar um café.
Àquela altura, então, já tinham ocorrido alguns problemas com o funeral. Larry tivera uma discussão com o padre católico. O padre não queria realizar o serviço. Finalmente foi decidido que ele faria o serviço pela metade. Bem, metade era melhor do que nada.
Tivemos problemas até com as flores. Eu havia comprado uma coroa de rosas, rosas misturadas, que foram arranjadas de modo a compor uma coroa. A floricultura passou a tarde inteira em cima do arranjo. A dona da floricultura tinha conhecido Betty. Haviam tomado umas e outras na época em que Betty e eu, alguns anos antes, morávamos numa casa com cachorro. Seu nome era Delsie. Sempre desejara chegar ao que estava debaixo das calcinhas de Delsie, mas nunca tinha conseguido.
Delsie tinha me telefonado.
– Hank, qual é o problema com esses cretinos?
– Que cretinos?
– Esses caras da funerária.
– Qual é o problema?
– Bem, eu mandei um rapaz na caminhonete para entregar a coroa e eles não deixaram ele entrar. Disseram que estavam fechados. Você sabe, é uma distância enorme.
– E aí, Delsie?
– Bem, por fim os caras deixaram ele pôr as flores para dentro, mas não pôde colocá-las no refrigerador. Então o rapaz teve que deixar elas ali mesmo. Que diabos há com essas pessoas?
– Não sei. Que diabos há com todo mundo?
– Não conseguirei ir ao funeral. Você está bem, Hank?
– Por que você não vem me consolar?
– Teria que levar o Paul.
Paul era seu marido.
– Esqueça.
Então assim estávamos, a caminho de nosso meio-funeral.
Larry ergueu os olhos do café.
– Vou escrever para você mais tarde para a gente ver o negócio da lápide. Agora estou pelado.
– Tudo bem – eu disse.
Larry pagou os cafés, então nós saímos e embarcamos no Mercedes-Benz.
– Espere um minuto – eu disse.
– O que foi? – perguntou Larry.
– Acho que esquecemos alguma coisa.
Retornei ao café.
– Marcia.
Ela seguia sentada à mesa.
– Estamos indo, Marcia.
Ela se levantou e me seguiu até a rua.
– Cartas na rua
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