Pedro Tierra

Pedro Tierra

Hamilton Pereira da Silva, conhecido pelo pseudônimo de Pedro Tierra, é um poeta e político brasileiro.

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Ressurreição

1.
Ñancauazu
já não te aguarda.
Vallegrande já não te guarda.
Bolívia já não te guarda
em seu coração de estanho.
Você desceu dos Andes.
Não se subjuga o corpo estendido dos ventos
Che.

A luz recorta o rosto inclinado sobre mapas ou livros,
os cabelos, a boina, a estrela de cinco pontas.
A fumaça do charuto dissolve
todos os contornos e te semeia num campo arado
para além da região maíscula dos mitos:
Che

Os rios do continente percorrem tuas veias
e as minhas, a caminho de Santa Clara.
Que el Gran Caimán te recolha,
em nome de todos nós.
Os rios do continente visitam os olhos
da terceira geração tocada
pela tirania de tua luz:
Che.

Tuas mãos deixaram o fuzil
e a palavra.
Há o tempo dos fuzis
e o tempo da palavra.
A palavra se faz verso,
aço
e ternura.
Por isso a palavra vaza o tempo,
sempre visitará a boca dos insubmissos.

Neste tempo de desertos, Che,
cabe aos poetas a temerária
tarefa das ressurreições.
2.
Antes que
a madrugada
limpasse o carvão da sombra
e da morte,
e o tempo deitasse
sem pressa,
trinta anos contados, suas vagas de luz
sobre os destroços da vida,
fiz, pela palavra, um exército impossível
fluir do coração da terra.
Uma torrente inumerável de abelhas,
operárias do mel e da ternura,
a recobrir o dorso das serras,
o tronco das árvores,
a pedra dos abismos,
a merda abundante dos animais,
flores, brejos, veredas,
a larga vastidão dos gerais,
o campo de espadas verdes do chapadão,
até mergulhar a última rama
no caldo cor de ferrugem
e se fazer o sertão
viveiro voraz dos insetos,
caldeira escura fervendo
lamento, dor e memória.
3.
Poro a
poro,
gota a gota,

como a noite,
tempo a tempo
destila a luz das estrelas

e a chuva amamenta
as bocas exaustas da terra,

como o angico goteja
o ouro de sua resina,

as abelhas untadas
na ciência de todos os sucos

vão rejuntando
o corpo do Comandante
Ernesto Guevara:
memória dispersa do povo.

No canto mais fresco,
na grota mais funda,
no cerne da noite
de nãncauazú remontam:
os pés:
calejados pés
do sempre retirante,
alicerces do mundo,
passo do povo em marcha.

As mãos:
arado da terra e do tempo
pátria primeira do pão de todos.

Os braços:
força contida do povo,
fúria de vulcões acorrentados,
mastros erguidos na tormenta.

O sangue:
mar vermelho derramado,
vento de furacão,
matéria do Tempo Novo.

O sonho:
vôo de pássaros iguais
- tão diferentes em sua pluma -
água viva, libertada,
canto dos cantos gerais.

E a voz,
corda a corda resgatada
dos socavões do silêncio,
como os galos condenados
resgatam da escuridão
sementes de alvorada,
recompõe-se obstinada,
em trovão subterrâneo,
anúncio de tempestades.

4.
Quando
o Tempo regressar dos seus labirintos
para inquirir a pedra dos séculos
- armado com a artilharia dos relâmpagos -,
este século de cinza e rebeldia
oferecerá a face fugidia deste homem
que escapa aos desígnios do mercado
e sempre recusará o altar dos deuses.
Ernesto Che Guevara: apenas um homem,
talhado em ternura e valentia.
Comandante, companheiro,
que meu verso possa te devolver ao Continente:
dou por terminada a temerária tarefa da ressurreição.
Brasília,
outubro/97

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kawanny
Muito lindo
29/novembro/2015

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