Herberto Helder
Herberto Helder de Oliveira foi um poeta português, considerado por alguns o 'maior poeta português da segunda metade do século XX' e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.
1930-11-23 Funchal
2015-03-23 Cascais
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Os Ritmos 10
O meu estúdio é uma espécie de túnel: longo e estreito, com o tecto muito baixo em forma de ferradura.
Ao fundo há uma janela, sugerindo que se pode escapar, pela visão de uma paisagem assente, cheia de equilíbrio — verde e branca.
No decorrer dos anos, a assinalar a minha caminhada pela sabedoria, fui escrevendo nas paredes frases obscuras, palavras soltas, anúncios de jornais, obscenidades, passagens de autores desconhecidos.
Escrevi também nomes de países que não existem, indicando por baixo a fauna e a flora, e as fontes da sua pobreza.
O estúdio transborda de objectos inúteis e a poeira, cobrindo-os, deu-lhes tempo, gratuidade — uma dignidade mítica.
Encontram-se elevados a um nível de beleza indecifrável, fora do seu clima.
Há uma porta — uma só.
Fica no lado oposto à janela.
Quando entro tenho a visão súbita e global do estúdio: as suas possibilidades e dificuldades.
Ao meio deste túnel, pendurada pelos cabelos obscenamente compridos, está uma cabeça.
Foi decepada pela base do pescoço.
O rosto volta-se para a porta.
Se uma corrente de ar se estabelece entre a janela e a porta, a cabeça balança, move-se, pretende às vezes apresentar-se de perfil, fugitivamente.
São tão longos os cabelos que, se eu avançasse da porta em direcção à janela, não poderia evitar que a cabeça fria roçasse pela minha, a boca morta batesse na minha, me beijasse — aquela boca escurecida pelo tempo, quase negra.
Negra.
De resto, os caçadores de cabeças da América do Sul estão cheios de medo.
Eles pensam: é preciso ocultar, disfarçar estas cabeças, desembaraçarmo-nos delas.
Quebram o crânio.
Extraem os fragmentos pelo buraco do pescoço decepado.
Lavam as cabeças mortas e deitam-lhes dentro areia quente.
As cabeças vão-se reduzindo, aos poucos, até ficarem do tamanho de um punho.
As feições mantêm-se fiéis, na nova escala.
Dentro dessa escala, cortam as pestanas.
A boca é cosida com linha forte, para que nada revele.
Trata-se de vender aquilo ao turista empolgado por uma espécie de conivência no pequeno crime índio.
É o folclore.
É um souvenir da América do Sul.
A pessoa pode ter, barato, o seu arrepio de horror, europeiamente em casa, durante o ano comercial.
Mas a cabeça do meu estúdio possuía uma boca livre, poderia talvez falar, tinha os olhos abertos — e como olhavam.
Estavam vivos, vivos — luzindo da feroz inteligência de quem está ali para compreender, testemunhar, para agir.
Além disso, parecia maior que o natural.
Quando se encontrava completamente imóvel, pendurada pelos longos cabelos cor de mel, exoftálmica, quase sorrindo com a boca negra, não me deixando passar até à janela, onde, à janela onde, sei lá, onde eu poderia respirar, ver as árvores e as nuvens e o rio lá em baixo — às vezes parecia enorme, vibrando de colérica ironia — autónoma, inteligente, presente, suspensa.
Meu Deus, seria sempre assim, sempre?
Imagino que durante o ano há alguns dias de primavera.
É uma suposição.
Pelo menos, assim acontecia antigamente.
Havia manhãs em que as folhas das árvores tremiam e a luz se desenvolvia pelas avenidas fora, com as casas no meio, parecendo mais altas, e um cheiro vegetal que vinha não se sabia de que sítios.
Se a gente conseguia apanhar o ritmo destes dias, era possível descobrir muitas coisas.
Nos arrabaldes apareciam cavalos brancos, havia cães que andavam de um lado para outro, como se tivessem várias ideias para decifrar os labirintos de um mundo de cães.
Era possível ver as pessoas por toda a parte, e eram um espanto os vestidos das mulheres.
Junto da porta, procurando escamotear a cabeça pendurada pelos cabelos, o meu olhar tentava descobrir pela janela esses dias hipotéticos.
Mas como era possível?
Os olhos da cabeça fixavam os meus, liam-me, e eu ficava fascinado.
Dizia: ela pensa que ainda existe em mim qualquer esperança.
E então encostava-me à porta e perguntava se seria sempre assim.
Um dia, enchera-me de coragem, avançara pelo túnel, até junto da cabeça.
Pensava eu que pretendia chegar à janela, ver ao menos se ainda existia a cidade, com as casas, roupa a secar, ruas, automóveis, pessoas, as pessoas em baixo.
A cabeça encostara-se à minha, era como se tremesse contra o meu rosto que absorvia esse tremor frio.
Meu Deus, pensava eu, será sempre assim, sempre, sempre?
Esperei porventura ouvir uma voz.
Enfim, a boca dela não fora cosida, era uma cabeça normal, ainda que decepada.
Tinha ouvidos, olhos, boca.
Olhava-me, estava encostada ao meu rosto e, embora gelada, quase negra, estremecia de encontro ao meu rosto de homem desesperado.
Não, não era a cidade que eu desejava observar, do alto da minha janela.
Desejaria fazer um pacto com aquela cabeça?
E que pacto?
Não existia já um pacto?
Ah, não sei.
Que pacto existiria já?
Pensei também: é uma cabeça morta, não pode entrar em pactos.
Morta?
E então comecei a chorar em silêncio, e as minhas lágrimas quentes molhavam também o rosto, o outro rosto, iam-no ensopando, e parece que ele tremia cada vez mais.
Talvez fosse do vento que entrava pela janela.
Que posso eu fazer, eu, um homem desesperado que escreve coisas absurdas nas paredes do seu estúdio, eu que não durmo nunca, nem amo, que já tudo desaprendi?
Eu que apenas possuo uma cabeça decepada, suspensa pelos cabelos do tecto do meu estúdio?
Que apenas possuo a cabeça de minha mãe.
É a cabeça de minha mãe, e de uma coisa tenho a certeza: fui eu mesmo quem a decepou.
Não sei quando, mas fui eu quem a cortou de um só golpe.
Mas atirei-a fora, penso que a atirei ao rio, de noite, embrulhada num jornal.
Contudo, ela voltou, a cabeça, teatral, verdadeira.
Suponho que foi ela própria que se pendurou no tecto, no meio do estúdio, entre a porta e a janela, e será sempre assim — nunca de lá sairá.
Começo a pensar, como os tribunais, que o crime não compensa.
E a cabeça olha-me, quase docemente, por este meu pensamento.
Ah, meu Deus, e se a polícia tivesse razão, se o crime na verdade não compensa?
E cada vez mais doce, mais pendurada e horrível, aquela cabeça inteligente no meio da minha vida.
Suspensa.
Sorri?
Há entre mim e ela uma cumplicidade tenebrosa.
Ao fundo há uma janela, sugerindo que se pode escapar, pela visão de uma paisagem assente, cheia de equilíbrio — verde e branca.
No decorrer dos anos, a assinalar a minha caminhada pela sabedoria, fui escrevendo nas paredes frases obscuras, palavras soltas, anúncios de jornais, obscenidades, passagens de autores desconhecidos.
Escrevi também nomes de países que não existem, indicando por baixo a fauna e a flora, e as fontes da sua pobreza.
O estúdio transborda de objectos inúteis e a poeira, cobrindo-os, deu-lhes tempo, gratuidade — uma dignidade mítica.
Encontram-se elevados a um nível de beleza indecifrável, fora do seu clima.
Há uma porta — uma só.
Fica no lado oposto à janela.
Quando entro tenho a visão súbita e global do estúdio: as suas possibilidades e dificuldades.
Ao meio deste túnel, pendurada pelos cabelos obscenamente compridos, está uma cabeça.
Foi decepada pela base do pescoço.
O rosto volta-se para a porta.
Se uma corrente de ar se estabelece entre a janela e a porta, a cabeça balança, move-se, pretende às vezes apresentar-se de perfil, fugitivamente.
São tão longos os cabelos que, se eu avançasse da porta em direcção à janela, não poderia evitar que a cabeça fria roçasse pela minha, a boca morta batesse na minha, me beijasse — aquela boca escurecida pelo tempo, quase negra.
Negra.
De resto, os caçadores de cabeças da América do Sul estão cheios de medo.
Eles pensam: é preciso ocultar, disfarçar estas cabeças, desembaraçarmo-nos delas.
Quebram o crânio.
Extraem os fragmentos pelo buraco do pescoço decepado.
Lavam as cabeças mortas e deitam-lhes dentro areia quente.
As cabeças vão-se reduzindo, aos poucos, até ficarem do tamanho de um punho.
As feições mantêm-se fiéis, na nova escala.
Dentro dessa escala, cortam as pestanas.
A boca é cosida com linha forte, para que nada revele.
Trata-se de vender aquilo ao turista empolgado por uma espécie de conivência no pequeno crime índio.
É o folclore.
É um souvenir da América do Sul.
A pessoa pode ter, barato, o seu arrepio de horror, europeiamente em casa, durante o ano comercial.
Mas a cabeça do meu estúdio possuía uma boca livre, poderia talvez falar, tinha os olhos abertos — e como olhavam.
Estavam vivos, vivos — luzindo da feroz inteligência de quem está ali para compreender, testemunhar, para agir.
Além disso, parecia maior que o natural.
Quando se encontrava completamente imóvel, pendurada pelos longos cabelos cor de mel, exoftálmica, quase sorrindo com a boca negra, não me deixando passar até à janela, onde, à janela onde, sei lá, onde eu poderia respirar, ver as árvores e as nuvens e o rio lá em baixo — às vezes parecia enorme, vibrando de colérica ironia — autónoma, inteligente, presente, suspensa.
Meu Deus, seria sempre assim, sempre?
Imagino que durante o ano há alguns dias de primavera.
É uma suposição.
Pelo menos, assim acontecia antigamente.
Havia manhãs em que as folhas das árvores tremiam e a luz se desenvolvia pelas avenidas fora, com as casas no meio, parecendo mais altas, e um cheiro vegetal que vinha não se sabia de que sítios.
Se a gente conseguia apanhar o ritmo destes dias, era possível descobrir muitas coisas.
Nos arrabaldes apareciam cavalos brancos, havia cães que andavam de um lado para outro, como se tivessem várias ideias para decifrar os labirintos de um mundo de cães.
Era possível ver as pessoas por toda a parte, e eram um espanto os vestidos das mulheres.
Junto da porta, procurando escamotear a cabeça pendurada pelos cabelos, o meu olhar tentava descobrir pela janela esses dias hipotéticos.
Mas como era possível?
Os olhos da cabeça fixavam os meus, liam-me, e eu ficava fascinado.
Dizia: ela pensa que ainda existe em mim qualquer esperança.
E então encostava-me à porta e perguntava se seria sempre assim.
Um dia, enchera-me de coragem, avançara pelo túnel, até junto da cabeça.
Pensava eu que pretendia chegar à janela, ver ao menos se ainda existia a cidade, com as casas, roupa a secar, ruas, automóveis, pessoas, as pessoas em baixo.
A cabeça encostara-se à minha, era como se tremesse contra o meu rosto que absorvia esse tremor frio.
Meu Deus, pensava eu, será sempre assim, sempre, sempre?
Esperei porventura ouvir uma voz.
Enfim, a boca dela não fora cosida, era uma cabeça normal, ainda que decepada.
Tinha ouvidos, olhos, boca.
Olhava-me, estava encostada ao meu rosto e, embora gelada, quase negra, estremecia de encontro ao meu rosto de homem desesperado.
Não, não era a cidade que eu desejava observar, do alto da minha janela.
Desejaria fazer um pacto com aquela cabeça?
E que pacto?
Não existia já um pacto?
Ah, não sei.
Que pacto existiria já?
Pensei também: é uma cabeça morta, não pode entrar em pactos.
Morta?
E então comecei a chorar em silêncio, e as minhas lágrimas quentes molhavam também o rosto, o outro rosto, iam-no ensopando, e parece que ele tremia cada vez mais.
Talvez fosse do vento que entrava pela janela.
Que posso eu fazer, eu, um homem desesperado que escreve coisas absurdas nas paredes do seu estúdio, eu que não durmo nunca, nem amo, que já tudo desaprendi?
Eu que apenas possuo uma cabeça decepada, suspensa pelos cabelos do tecto do meu estúdio?
Que apenas possuo a cabeça de minha mãe.
É a cabeça de minha mãe, e de uma coisa tenho a certeza: fui eu mesmo quem a decepou.
Não sei quando, mas fui eu quem a cortou de um só golpe.
Mas atirei-a fora, penso que a atirei ao rio, de noite, embrulhada num jornal.
Contudo, ela voltou, a cabeça, teatral, verdadeira.
Suponho que foi ela própria que se pendurou no tecto, no meio do estúdio, entre a porta e a janela, e será sempre assim — nunca de lá sairá.
Começo a pensar, como os tribunais, que o crime não compensa.
E a cabeça olha-me, quase docemente, por este meu pensamento.
Ah, meu Deus, e se a polícia tivesse razão, se o crime na verdade não compensa?
E cada vez mais doce, mais pendurada e horrível, aquela cabeça inteligente no meio da minha vida.
Suspensa.
Sorri?
Há entre mim e ela uma cumplicidade tenebrosa.
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