Francisco José Tenreiro

Francisco José Tenreiro

Francisco José Tenreiro, foi um geógrafo e poeta são-tomense. Foi docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, atual Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa.

1921-01-20 Roça do Rio do Ouro, São Tomé
1963-12-31 Lisboa
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Alguns Poemas

Mãos

Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.

Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da aventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!

Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.

Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!

Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!

Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.

Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!

Canção em África

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sl sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos de trigo sem bocas
das ruas sem alegrias com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em Á'frica.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não.
Ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho:
Oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) -
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillen
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am America
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações nos belos
poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do
Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em
África,
de coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delicias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna
picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que tem a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha
um negro (óptimo), olha um mulato (tanto faz)
olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho a brisa da tarde.
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata perdida na carapinha
alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou as riscas
e o coração entristece a beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África
e chora fino na arritmia de um relójio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens negros escravos dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos aliseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antipoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.
Geógrafo, docente universitário, ensaísta e poeta.Nascido em São Tomé, de pai português, Emílio Marques Tenreiro, e de mãe santomense, Carlota Maria Amélia, veio com cerca de dois anos para Lisboa, onde fez os estudos primários e secundários. Seguiu depois estudos superiores na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e na então Escola Superior Colonial, tendo-se doutorado em Ciências Sociais na London School of Economics and Political Sciences da Universidade de Londres (1955). Nesta Universidade deu especial atenção ao estudo da Geografia da Colonização, com o Prof. Harrison-Church, e da Antropologia da África Ocidental, com o Prof. Daryll Forde.Iniciou o seu trabalho como geógrafo, era ainda estudante, no Centro de Estudos Geográficos do Instituto para a Alta Cultura, com o Prof. Orlando Ribeiro, de quem viria a ser assistente, na Faculdade de Letras de Lisboa. Trabalhou nas missões geográficas da Junta de Investigações do Ultramar e, como docente, no Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Como geógrafo, são incontornáveis os seus ensaios sobre São Tomé. Quando morreu, de um acidente, tinha em preparação os livros Lourenço Marques: Formação e Desenvolvimento de Uma Cidade e O Território dos Saloios: Estudos de Geografia Regional.A sua actividade literária inicia-se com a publicação, em 1942, do livro de poemas Ilha de Nome Santo, editado em Coimbra na colecção «Novo Cancioneiro». Por essa altura, organiza e edita, com Carlos Alberto Lança, dois volumes antológicos, Contos e Poemas de Modernos Autores Portugueses, incluindo, no segundo volume, um conto seu, «Nós Voltaremos Juntos». Este conto constituirá, juntamente com «Tarde de Tédio», publicado na Seara Nova em 1946, a sua limitada incursão na ficção narrativa. Nesta primeira fase, quer os poemas do seu livro, quer os autores escolhidos para a antologia de que foi co-autor podem inserir-se na linha de preocupações sociais e estéticas seguida pelos neo-realistas.É ainda nesta fase e nessa linha de pensamento que podemos situar também os seus trabalhos sobre a literatura dos Estados Unidos e sobre a situação do negro naquele país: o ensaio Panorâmica da Literatura Norte-Americana (1946) e os dois artigos «Laugston Hugues, Poeta da América» e «Sobre o Valor Económico e Social do Negro», publicados na Seara Nova (1945). Publicará ainda na Seara Nova outros artigos de interesse africano, sobretudo abordando a arte negra.Em 1951, colabora, com Mário de Andrade e com outros jovens intelectuais nascidos em África, na criação do Centro de Estudos Africanos. E, em 1953, com o mesmo Mário de Andrade, publica o folheto Poesia Negra de Expressão Portuguesa, onde insere um poema seu, «Coração em África», e assina a «Nota Final». Pode-se dizer que, com esse folheto, começa uma nova fase do seu percurso literário, durante a qual poderemos encontrar nos seus poemas «uma vinculação definida às propostas de negritude, pelo menos na expressão que lhe deram alguns poetas africanos de língua francesa» (Fernando J. B. Martinho).Mais tarde, já nos últimos anos da sua vida, deixará essa vinculação para regressar ao melhor do seu primeiro livro. Sobre o seu percurso literário, é fundamental ler a tese do Prof. Pires Laranjeira, Neo-Realismo e Negritude na Poesia de Francisco Tenreiro (1994).Tenreiro, marco fundamental e dinamizador da literatura africana de expressão portuguesa, está representado em numerosas antologias, nomeadamente: Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa, de Mário de Andrade (Paris, 1958); Líricas Portuguesas, 3ª. Série, de Jorge de Sena (Lisboa, 1958); Poetas de São Tomé e Príncipe, da Casa dos Estudantes do Império (Lisboa, 1963); Literatura Africana de Expressão Portuguesa: Poesia, de Mário de Andrade (Argel, 1967); Antologia Temática de Poesia Africana, Vol. 1, de Mário de Andrade (Lisboa, 1975); No Reino de Caliban, Vol. 2, de Manuel Ferreira (Lisboa, 1976); Antologia Poética de São Tomé e Príncipe (São Tomé, 1977); 50 Poetas Africanos, de Manuel Ferreira (Lisboa, 1989).O seu livro de poemas Ilha de Nome Santo, o livro que deixou inédito, Coração em África, e mais oito poemas a que foi dado o título de Regresso à Ilha foram publicados sob o título geral de Obra Poética de Francisco José Tenreiro, num volume que incluía uma introdução à sua poesia por Mário António e um estudo sobre a sua actividade científica e a sua bibliografia por Raquel Soeiro de Brito (1967). A sua obra poética foi ainda reeditada, sob o título de Coração em África, introduzida por um estudo de Fernando J. B. Martinho (1982), e pela Imprensa Nacional, sob o título de Obra Poética (1994). Deixou inédita uma antologia de poesia africana a que dera o título de Processo Poesia.
Francisco José Tenreiro
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