Nos labirintos da escrita e dos afetos (conto)
Naquele final de semana, março de 2014, em que ocorria Le Salon du Livre à Paris, entediado com a sua condição, o papel, a partir de um certo lugar, resolveu iniciar um diálogo com a caneta. Estava cansado da tirania daquela criatura que o utilizava na hora que desejava e que se postava a rascunhá-lo como bem queria, sem que indagasse sobre os seus desejos e sonhos. Achava absurdo que a caneta despejasse sobre si somente relatórios, prestação de contas, balanços e recados sem nenhum afeto. Essas marcas não o satisfaziam. Nunca sobrava à caneta um tempinho de nada para registrar em seu corpo um só verso, uma melodia, um haicai, ou, uma florzinha rabiscada. Com isso, o seu destino era sempre uma gaveta, um arquivo, a lixeira, ou a devolução para uma empresa de reciclagem, sem que houvesse nenhum gesto de carinho em seu corpo. Ficava pensando... e se fosse utilizado para imprimir uma tradução em Português das Cartas de Walter Benjamim, ou uma reedição da obra de Manoel de Barros? Quem sabe um livro de Simone de Beauvoir? E o que dizer de compor a obra do Saramago? Poderia viajar, participar de feiras, ter um lugar especial na biblioteca de alguém que zelasse por ele, que o levasse à sua cabeceira e que lhe fizesse companhia nas horas vagas. Ficava até pensando: e se virasse um caderninho de notas e fosse parar na escrivaninha de Ângela Davis? Poderia estar a contribuir na composição de uma obra humanitária! Ou quem sabe se não poderia compor um livro de Fernando Pessoa, e ir parar na biblioteca de Chico Buarque de Hollanda, que poderia manuseá-lo em busca de inspiração para a sua própria escrita?
Que sorte teria, se fosse um livro, para ter a possibilidade de acompanhar leitores e leitoras, pessoas sensíveis e portadoras desse sentimento ímpar de amor ao conhecimento e aos sentimentos do mundo.
Ficou nessa digressão durante todo o final de semana, pensando em si, em suas razões e destino. Destino: substantivo masculino, trissílabo, palavra sonora, fardo que agora o comprimia. Sentia-se sem nenhuma importância naquele escritório sem vida, um lugar aprisionado por paredes cinzas, onde ácaros e poeiras sutis até lembravam o escritório de Wall Street onde trabalhou Bartlebly, o escrivão revolucionário de Herman Melville. Lembrava também da apatia do escriturário e, sobretudo, da sua rebeldia diante de afazeres tão repetitivos, ao responder às demandas do chefe com uma só frase:
– “Prefiro não fazer”.
Como suportava a caneta fazer sempre o mesmo tipo de escrita?
Era final de semana. Iria aproveitar para planejar uma ação que ajudasse a mudar esse estado de coisas em sua vida.
Na noite de sábado teve vários pesadelos. Primeiro sonhou com um incêndio de grandes proporções onde teve a sua vida ceifada. Virou cinzas e foi parar nos esgotos da cidade. Acordou suado e em pânico. Tomou chá para acalmar-se e voltar a dormir. Entretanto, novo pesadelo veio acordá-lo com um barulho ensurdecedor. No segundo pesadelo foi triturado por uma máquina que o transformou em pó prensado. Ainda assustado, ao acordar, pensou: a despeito das dores e da certeza da morte, nesse pesadelo teria direito a uma outra vida. Menos mal. Quem sabe ao voltar a uma nova condição de papel reciclado teria mais sorte? Mas, o pior de tudo era essa incerteza sobre seu destino.
Persistia na mente a ideia de acolher em seu corpo romances, poesias, ilustrações e ganhar espaço numa estante de algum leitor ou leitora sensível, de preferência um escritor ou escritora.
Acordou no domingo sob o efeito desses pesadelos e com a ideia fixa de dialogar com a caneta. Ensaiou, por todo aquele dia, palavras que criassem empatia no diálogo que dar-se-ia na segunda-feira. E, nesse dia, tão logo a caneta chegou ao escritório, cumprimentou-a efusivamente:
- Bom dia, parceira!!!
A caneta levantou a cabeça surpresa com o tom de intimidade, mas parou para escutá-lo e para retribuir, sem nenhum entusiasmo, o cumprimento.
- Bom dia !
E o papel prosseguiu, de uma forma instigante:
- Que tal conversarmos sobre o conteúdo da sua escrita?
- Não entendi.
Respondeu a caneta.
- Falo sobre o que escreves, afinal sem papel teu trabalho não se realiza.
A caneta respondeu disparada:
- Você não é nada sutil, hein !? Que insulto!
- Como se atreve a falar uma asneira dessas?
- Você não sabe da existência das telas, onde se lê e escreve tal como se escreve no papel?
- Nem sei porque ainda uso essas velharias de papel ?
O papel respondeu calmamente, com uma voz melodiosa, mas sem espaço para contraposição:
- Bem lembrado! Tenho em mente o papel e as telas. As telas significam, em parte, uma recriação da função do papel, embora nenhuma sociedade o tenha abolido completamente.
- Com as telas ganhei mais funções e possibilidades. Existo como tela em diversas modalidades e ferramentas, mas continuo de grande utilidade na modalidade antiga. O papel, é um velho aliado das Ciências, das Artes e da Literatura. Desde a minha descoberta, após o papiro, sou um artigo muito importante.
E, para selar a sua busca de parceria, ressaltou:
- Você também é importante, e já passou por muitas transformações ao longo da História. Sabes disso, né?
A caneta inquieta tergiversou:
- Tela não é papel!
E o papel retrucou:
-Teclado também não é caneta, mas cumpre sina semelhante.
- A caneta acrescentou:
- Mas existe a caneta para se escrever nas telas...
Impassível, mas fortalecido em suas decisões, o papel contra-argumentou:
- O meu pensar não se põe sobre a forma, é sobre o conteúdo. Sendo papel ou tela estou a buscar um outro destino, fora dessa normatividade que é a essência dos relatórios e balanços. Não quero ir parar em lixeiras, ou em arquivos para meras consultas. Quero com a escrita estimular a imaginação, motivar a criação, proporcionar viagens.
Ao escutar a caneta fez a seguinte proposta:
- Que tal você fazer intervalos no trabalho e escrever poemas, compor músicas, crônicas, ensaios, cartas, ou escrever pelo menos bilhetes e pensamentos?
A caneta respondeu impaciente:
- Estás louco? Queres que eu perca o meu lugar? Me presto à escrita contábil, não me interessa essas asneiras de que falas.
- Essas “asneiras” a que você se refere são alento, e verdadeiros bálsamos à alma. Retrucou o papel quase entristecido com tamanha positividade.
Nesse momento, chegou a concordar com Byang-Chul Ham sobre a Sociedade do Cansaço e suas implicações. E ficou a refletir com nostalgia, ainda bem que existem papeis cumprindo com outras funções menos pragmáticas e mais poéticas do que as que ele próprio costuma reproduzir.
A caneta pediu licença ao papel e recolheu-se a pensar. Gostava de escrever contas, não achava nada monótono construir dados, nem elaborar os relatórios ... Chegava mesmo a gostar de estabelecer e de cumprir metas. Fazia isso sempre! Era tão bom ver o papel cheinho de contas! Melhor será que ele nem saiba o quanto brinca com os números na cabeça, não no papel!
Mas, agora estava sensível à demanda registrada pelo papel e sem dúvidas pelas telas que manuseava tão frequentemente. Como jamais havia pensado nas questões tão bem postas pelo companheiro de trabalho? Inclusive ficara sensível às suas dores quanto ao próprio destino. Ao pensar sobre o tema veio à sua mente uma indagação:
- Então as canetas e os teclados também têm destino?
Ao acionar os sentidos deu-se conta de que a sua escrita era conduzida por uma mão que a segurava e guiava firmemente.
Agora estava ciente de que o seu destino dependia de um ser humano. Isso posto, não caberia a si nem ao papel as decisões sobre o que escrever. Precisava alertar o seu interlocutor para esses desígnios. Respirou fundo e pensou:
Ah! Os labirintos da vida! Existem objetos e ferramentas tão importantes que podem cumprir com nobres funções, mas tudo esbarra na vontade e decisão dos seres humanos.
Já o papel estava em sua versatilidade a pensar que não se trataria de abolir os relatórios, nem o manuseio de dados, tão necessários à explicação racional do mundo. A seu ver o que é imprescindível é ceder lugar à poesia. Mas isso não implica em banir da sociedade outros estilos de escrita e saberes.
A mão que acionava a escrita levantou, finalmente, uma questão:
- Por que não pensar sobre os Cavalcantis e os Cavalgados, e sobre as costuras do mundo em tempos de paz e de guerra?
Afinal, quem comanda e quem é comandado?
Que filosofia rege a vida de cada um de nós?
Existe lugar para os desejos que em nós habitam?
Dessa querela entre a caneta e o papel resta afirmar que ambas estão sob o jugo da escrita e não há prisões para a palavra quando o desejo de se expressar- é maior que o de calar-se.
A palavra canta, voa e sangra. Ao bem ou ao mal do que se quer comunicar, como demonstrou o Marquês de Sade e prisioneiros políticos que também se valeram da escrita, em suas celas e exílios, ou mesmo sensíveis donas de casa a poetizar as suas vidas, há intenções ou no mínimo mensagens em toda escrita.
Canetas e papeis falantes podem parecer desvarios ou alucinações urbanas, sofrências recalcadas das quais nem Kafka escapou. Mas não esqueçamos que pôr os objetos a falarem e até os narizes a andarem é coisa de quem escreve e isso ocorre em qualquer lugar do mundo.
Fátima Rodrigues
Versão publicada em 25/10/2020.