Nelson Ascher

São Paulo SP
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Alguns Poemas

Festas do intelecto e da desordem

Há muito de semelhante nas trajetórias que levaram (ou trouxeram) Waly Salomão e Antonio Risério aos seus respectivos primeiros volumes de poemas. Primeiros, sim _pois o que Waly fazia antes era um tipo de prosa, e o volume de estréia de Risério (incorporado neste novo) estava mais para um ensaio geral, oculto, além disso, no segredo de uma edição mínima. Bom, quanto às semelhanças, ambos vêm do mesmo Estado _a Bahia_, ligaram-se e/ou descendem _mais ou menos_ da MPB de lá (Caetano, Gil & cia.) e da poesia concreta paulista, agitaram revistas nos anos 70 (Navilouca um, Muda o outro) etc.
Mas as diferenças são importantes. "Algaravia" de Waly é um livro cosmopolita, embora claramente enraizado na sua origem. "Fetiche" de Risério, no que tem de mais realizado, é étnico, ou melhor, interétnico. O primeiro metaboliza _sem negá-las_ as influências que formaram o poeta. O segundo oscila entre algo de fato próprio/pessoal e um lastro de tributos pagos explicitamente. Um atrai, entre outras razões, pelo que já não é. O outro, pelo que poderia ser mais plenamente.
As intenções de Waly são claras e ele as declara: "Um poema deve ser uma festa do intelecto"; "_O que é que você quer ser quando crescer?/_Poeta polifônico." A festa polifônica do intelecto se realiza sobretudo na memória que, para ele, "é uma ilha de edição", em que são trabalhados diversos tempos e lugares, reais ou imaginários, evocados de distintas maneiras, mas principalmente por meio de frases em outras línguas (inglês, francês, catalão).
Atravessa o livro uma perpétua perplexidade em face do quê e pelo quê se passou e, curiosamente, sobressai em seus poemas não tanto a nostalgia quanto a náusea _por exemplo, dos anos 60/70 em "Pesadelo de Classe"_ e, quando se celebra (dubiamente) a viagem em "Poema Jet-Lagged", ela é logo após negada em "Anti-Viagem", texto que, com o anterior, espelha-se num díptico oximoresco.
Waly faz do poema uma des-re-montagem da experiência, mas sua meta, obviamente, não é a fixação desta e sim o próprio poema, que, aliás, é continuamente discutido dentro e por dentro sem que se transforme em metapoesia. E as próprias citações eruditas brotam, por assim dizer, organicamente do argumento e da "persona" lírica inventada. E aqui, no conjunto, ele barroquiza tropicalmente, na melhor tradição de seu Estado: "Uns ouvindo o canto intuem Orfeu, outros sentem/ Oxum" _porque sua poesia se faz com "Alaúde, cuíca e pau-de-chuva". Mais que o citado, portanto, conta mesmo é quem cita, pois, afinal, "Alguém acha que ritmo jorra fácil,/ pronto rebento do espontaneismo?".
Em "Fetiche", por sua vez, o mais duradouro é o que se vincula a/e decorre do ensaísmo do poeta.
Risério, conhecido como um dos mais talentosos ensaístas de sua geração, estudou com originalidade a poesia brasileira moderna, a MPB, o carnaval e certos temas _sua marca registrada_ que poderiam ser chamados de etnopoéticos. Quando sua própria poesia se aproxima desse último conjunto de inquietações, ela ganha singularidade. Quando, por outro lado, envolve-se com as admirações literárias e musicais do autor, ela deixa a rigor de ser "sua própria poesia" e torna-se poesia alheia.
Assim há no livro poemas que poderiam ser atribuídos, por exemplo, a Haroldo de Campos ("Dêuteros Hélios" remete obviamente aos "Opúsculos Goetheanos"); a Paulo Leminski ("Leminskiana" naturalmente, mas também "Estreito de Behring"); a Décio Pignatari ("Caras Pintadas", em que frases inteiras ganham outro sentido quando deformadas pela troca de letras);
Caetano Veloso ("Noche de Ronda" descende de "Podres Poderes", "Vaca Profana" etc.), Affonso Avilla, José Paulo Paes e até mesmo Drummond (compare-se "Toque Árabe", que não é um mau poema, com "Anedota Búlgara").
O tributo mais pesado, porém, é pago a Augusto de Campos. E não se trata apenas do caráter visual do livro, com poemas espacializados, transcritos em diversas famílias e corpos de letra e processados por computador, ou de "intraduções", mas de praticamente metade dos textos do livro operando num estilo que, com poucas alterações generacionais, são augustianos sem tirar nem pôr.
Poetas foram feitos para serem imitados, seguidos, mas também alterados. O problema é que Augusto é um dos mais singulares que existem, particularmente quando desenvolve paralela e articuladamente o verbal e o visual, algo no que ele é provavelmente único. Ou seja, uma vez que se chegue ao "ovo novelo" de Colombo, torna-se fácil imitá-lo, mas o resultado acaba sendo precisamente isso _uma imitação, com as consequências de praxe: o que for bom no poema pertence ao mestre, enquanto cabe ao discípulo assumir plena responsabilidade pelos seus defeitos.
Em outras palavras, Augusto é inimitável e metade de "Fetiche" o demonstra bem: quando os poemas funcionam, eles não são, em última instância, de autoria do autor.
Essa autoria se firma e patenteia, isto sim, nos poemas em que Riséio busca sua _com perdão da palavra_ inspiração, em outras culturas, na alteridade, na procura do _com redobrado perdão da palavra_ "outro", uma entidade cantada, decantada e entrevistada, mas raramente entrevista.
É aqui _em "Via Papua" e "Antiskoklaan" (um poema judaico), na algaravia multicultural (no bom sentido) de "Herrera", em "Padê", "Poema de Catequese" e outros_ que o poeta retoma uma das melhores vertentes do primeiro modernismo _a de Oswald, Raul Bopp e do Mario macunaímico_ para começar a trabalhá-la, enquanto fetiche "so to say" primitivo _sem fetichismo primitivista_, num outro patamar de conhecimento antropológico, informado agora menos pelos delírios de Bachofen que pelos estudos de um Mircea Eliade ou um Lévi-Strauss. A chave disso, é Risério mesmo quem a dá em sua "Arte Poética": "Na serra da desordem/ no piracambu tapiri/ em cada igarapé do pindaré/ em cada igarapé do gurupi/ existe uma palavra/ uma palavra nova para mim".
Lançamento - "Algaravias", de Waly Salomão, será lançado no Rio, no dia 8, a partir das 20h, na Livraria Timbre (r. Marquês de São Vicente, 52, loja 221, tel. 021/274-1146), e em São Paulo, no dia 15, a partir das 20h, na Livraria Antes do Baile Verde (al. Gabriel Monteiro da Silva, 1.374, tel. 011/881-9721).

(in Folha de São Paulo)

Leia obra poética de Nelson Ascher

O purgatório do Boca do Inferno

Mistérios gregorianos

Desde sua morte, há prováveis 300 anos, até os dias de hoje, a pessoa e a poesia de Gregório de Matos são objeto de uma polêmica ininterrupta Gregório de Matos e Guerra, cujo tricentenário da morte ocorre provavelmente no presente ano, é geralmente considerado a figura literária mais relevante do Brasil colonial. Ainda assim, o Boca do Inferno encontra-se há cerca de 150 anos num purgatório crítico, depois de ter passado outros tantos numa espécie de limbo. Tão ou mais célebre do que o satirista barroco é a ininterrupta polêmica que, por século e meio, mas, de certa forma, há já, pelo menos, três séculos, tem posto em questão tudo que diz respeito à sua pessoa, obra, reputação, época etc.
Nascido em Salvador, talvez em 1636, ou seja, há 360 anos, ele teria estudado na Bahia e em Portugal (Coimbra), e vivido dos dois lados do Atlântico, numa trajetória que incluiria um exílio em Angola, algo que, segundo a lenda, decorreria de uma reação de autoridades ofendidas pela virulência de suas sátiras. Julga-se que, já de retorno ao Brasil, teria morrido no Recife em 1696 ou 1695 (a segunda hipótese é defendida pelo historiador Fernando da Rocha Peres em texto nesta página).
A primeira "biografia" foi escrita um século depois. Acerca de sua vida há, portanto, pouquíssimos fatos, bastante conjetura e muito mais ignorância.
Os mistérios que cercam sua obra são ainda maiores, pois, enquanto vivia o provável autor, seus poemas — jamais recolhidos por ele mesmo num volume autógrafo — circularam em folhas soltas, copiados e recopiados à mão, e seu texto se alterava de versão em versão. Como discutir então suas intenções originais? Virtualmente "desaparecida" depois de sua morte, a obra volta realmente a circular aos poucos apenas em 1850. E, embora o poeta já tivesse sido atacado em vida enquanto imitador, foi só com a publicação de meados do século passado que principiou de verdade a "questão gregoriana".
Como se poderia esperar, essa polêmica dizia amiúde menos respeito ao poeta ou aos poemas do que às preocupações dos polemistas e de seu tempo. Num primeiro momento, que cobre cerca de cem anos, há sem dúvida textos sérios, mas o que se discute em geral é menos a qualidade dos textos, seu contexto histórico e outras tantas coisas do gênero, do que seu "caráter":
Gregório é autor original ou mero plagiário? Trata-se de um grande poeta que torna grande a poesia brasileira desde seus primórdios ou será ele, alternativamente, um português ou um mulato sem relevância. Ufanemo-nos dele e do nosso país ou não?
A mudança qualitativa da querela vem na segunda metade dos anos 40, primeiro com a publicação, por parte de Segismundo Spina, de uma antologia comentada e prefaciada por um minucioso estudo favorável ao poeta, tudo isso realizado segundo critérios de discussão mais congeniais aos dias que correm. Em seguida, a posição contrária também se renova por meio de alguns estudos de Paulo Rónai, que não tanto repete os velhos argumentos quanto os modifica ao repô-los em bases filológicas e estilísticas mais seguras.
Uma observação contundente, porém, que João Carlos Teixeira Gomes faz em seu "Gregório de Matos - O Boca-de-Brasa", é a de que nem uma vez sequer usa Rónai, para se referir ao poeta, o termo "barroco". Pode-se argumentar que o crítico húngaro formou-se num país e num período quando esse nome era sinônimo de decadência não só literária, mas social, econômica, nacional. Isso talvez ajude a explicar a posição de Rónai que, defensor de primeira hora de Drummond e de Guimarães Rosa, não pode ser qualificado de literato conservador.
Em todo caso, a omissão de Rónai demarca o signo sob o qual a polêmica viria a continuar e segue se travando: o da importância do barroco. A reavaliação do barroco, efetuada sobretudo nos anos 20, por gente como T.S. Eliot na Inglaterra, García Lorca na Espanha e Walter Benjamin na Alemanha, foi mais do que uma discussão meramente erudita e resumia, à sua maneira, muitos dos pontos programáticos do modernismo internacional. A partir dos anos 50, a "questão gregoriana" que inicialmente pouco tinha a ver com isso tudo, revestiu-se também desse significado que no Brasil parece agora ser o central. Esse é seguramente o tema principal do estudo de Haroldo de Campos, como se pode ver até mesmo em seu título —"O Sequestro do Barroco".
Ser hoje contra ou a favor de Gregório implica principalmente tomar partido num debate sobre o barroco, seu significado e sua relevância para a literatura moderna. É claro que há outras discussões paralelas como, segundo o gosto de nosso tempo, sobre o sentido político da obra de Gregório, se suas sátiras são, de acordo com os padrões de sua época ou da nossa, anticolonialistas, progressistas, talvez revolucionárias, ou conformistas, reacionárias e mesmo racistas. É justo que estas e outras questões sejam esmiuçadas e é provável que encontrem tão pouca resolução, ou pelo menos consenso, quanto as mais antigas. Para todos os efeitos, quanto mais "sub judice", mais presente a obra contestada de Gregório se torna na literatura brasileira, embora sua presença se configure sob a forma do paradoxo —provavelmente perpétuo.
Original e revolucionário.
(in Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 20/10/96)

Leia obra poética de Nelson Ascher

Nelson Ascher (São Paulo SP, 1958) formou-se em Administração de Empresas, pela Fundação Getúlio Vargas, em 1981; mas desde 1979 já colaborava, como jornalista literário, em periódicos como Jornal da Tarde e Folha de S. Paulo. Em 1983 publicou seu primeiro livro de poemas, Ponta da Língua. Traduziu, em 1984, com Paulo Leminski e outros, o livro Vida Sem Fim, de Lawrence Ferlinghetti. Nos anos seguintes, trabalhou como jornalista cultural da Folha de S. Paulo, tornando-se editor do suplemento Folhetim e, posteriormente, responsável pela seção Rodapé do suplemento Letras. Em 1998 publicou o livro Poesia Alheia, 124 poemas traduzidos, seleção de poetas desde os latinos aos contemporâneos. Em seus poemas, a ironia e o diálogo com a tradição literária marcam a abordagem de temas como a memória, a transitoriedade e a própria literatura, em versos livres afiados e musicais ou em sonetos, que ele constrói com maestria.
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